Capote(
Capote), 2005. EUA. De Bennett Miller
Conceição – autor bom é autor morto, 2007. Brasil. De André Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro
Mais Estranho do que a Ficção (
Stranger than Fiction), 2006. EUA. De Marc Foster
Em
Conceição - autor bom é autor morto (2007), uma das pusilanimidades que assisti no Festival de Tiradentes de 2007, ficou patente o interesse dos aspirantes a diretores em discutir acerca da relação estabelecida entre o autor e o personagem. De que modo a criação literária ou cinematográfica afeta aquele que a originou?
Se formos pensar seriamente nessa matéria, teremos que reconhecer que, em alguns casos, escrever um romance ou um poema é um processo interno de modificação e confrontação – um embate psicológico e íntimo. É reconhecido que, ter redigido
A sangue frio, afetou decisiva e sombriamente a personalidade de Truman Capote.
No filme
Capote, de Bennett Miller, as relações estabelecidas entre esse escritor e os assassinos do massacre de Kansas City salientam o confronto existente entre o narrador e a figura envolta na narrativa. Nesse caso, Truman Capote procurou os criminosos, estabelecendo um contato com eles, na tentativa de compreender os elementos que os condicionaram a realizarem tal chacina. Verifica-se, de um lado, a ação do esteta/documentarista ao criar uma composição, na qual são suas próprias explicações que emergem, estruturando os eventos, uma forma de ter o controle do real vivido. Do outro lado, vemos o interesse dos envolvidos em fazer suas próprias interpretações sobressaírem nos escritos de um terceiro. A derradeira estratégia para a sobrevivência, perpetuação da memória pela canção de um
aedos.
Com efeito, em
Capote, os personagens, retratados como reais, não podem escapar das grades que lhes foram impostas. Já em
Conceição, os personagens, existentes em uma realidade fílmica (como o galante ator que foge das telas do cinema em
A Rosa Púrpura do Cairo) são capazes de promover uma insurreição, desprendendo-se do seu universo de origem e vindo confrontar diretamente seus inventores. Trata-se, de forma pouco elaborada, é verdade, da vingança da criatura (inconsequentemente criada) contra seu criador. Porém, inexiste uma possibilidade de diálogo, a metalinguagem é feita em mão única, um exercício de reflexão de estudantes de cinema, não se ramificando em uma trama adulta, na qual seria necessário um maior conhecimento sobre a razão de ser de cada ficção.
Sem dúvida que, em
Conceição, a estrutura narrativa falha na tentativa de construir uma trama inteligível ao telespectador, capaz de mesclar a auto-citação e auto-referenciação com o desenvolvimento de um enredo coerente e significante.
Longe dessas debilidades também se encontra
Mais Estranho do que a Ficção, na qual um homem comum se descobre personagem, envolto numa trama, parcialmente orientado por uma narradora onisciente. Assim, ele também se encontra preso e indefeso, já que não detém as informações suficientes para salvaguardar sua existência. A qualquer momento a narrativa pode ser encerrada, com a morte do objeto da narração.
Vemos um duplo confronto, em primeiro lugar há que se descobrir em qual narrativa Hardold, que se transformou em uma figura dramática, está inserido. Em seguida, criar caminhos para interação e negociação com a voz da narrativa, poderosa, colocada em uma posição de deus.
Nesse caso, vemos o confronto do homem comum com o universo hegemônico – mesmo que esse universo seja literário. Um simples auditor da receita federal pode ter sido alçado à categoria de herói, se dramático ou cômico ainda não se sabe.
Enfim, nos três casos vemos uma imbricação entre as esferas dos fictícios e a dos demiurgos. Situação mais evidente em
Conceição, na qual personagens são paridos para serem abandonados a própria sorte. Por isso mesmo, eles retornam aos seus “pais”, questionando a razão da existência. Uma ação que não seria muito diferente se o homem tivesse a oportunidade de indagar seu criador.
Em
Capote, os delinqüentes pertencem ao mesmo nível de realidade do escritor, mas ainda assim não deixam de ser personagens, querendo, de idêntica maneira, que Truman Capote interfira sobre suas vidas, ao menos de forma literária – já que não querem ser eternizados como assassinos.
Em
Mais Estranho do que a Ficção, não há distinção entre o personagem, aprisionado em uma trama literária, e sua autora. Há a perspectiva de que eles acabem se encontrando, podendo um interferir na esfera do outro – ainda que as relações de força não sejam iguais. Mas, de qualquer maneira, o embate é franco e sincero.
O que toda essa discussão traz a tona é que os personagens têm vida própria, não são escravos dos seus criadores. Cada unidade tem sua carga dramática, suas especificidade, seria uma trapaça incorrer a qualquer elemento que pudesse contrariar as premissas básicas, sob o risco da incoerência e da inverossimilhança. Conan Doyle não conseguiu matar Sherolck Holmes, isso já nos diz muita coisa. O escritor jaz, mas seu personagem continua vivo, persistindo de diversas maneiras.
De fato, para um escritor, a prova maior de sua perenidade é ser convertido em personagem. Shakespeare virou personagem da história da literatura inglesa, Lima Barreto faz parte da tragédia dos mulatos cariocas, vítimas do preconceito e desdém do governo brasileiro - algo tematizado em seus próprios escritos.
A realização do ficcional pressupõe que o autor pertença aos dois mundos, portanto ele pode ser vítima dos seus escritos. Seus personagens se convertem em algozes, às vezes alcançando um sucesso inaudito e obscurecendo seus criadores.
No cinema isso também é verdade, quando alguém se põe a dirigir um filme em que ele mesmo atua, a sua pretensão é assegurar um controle total sobre os dois universos. Ser pai e ser filho de si mesmo. Uma façanha que, a despeito de todo avanço biotecnológico, só pode ser atingida por intermédio da arte. O
aedos também tem sua parcela de divindade.
Cotação:
Capote: Bom
Conceição: Fraco
Mais estranho que a ficção: Regular