sábado, 29 de março de 2008

Na natureza Selvagem


Na natureza selvagem (Into the wild), 2007. EUA. De Sean Penn

Por trás desse filme há um homem que quase morreu no Everest.

Portanto essa história tem uma poesia que nem todos podem compreender. Na natureza selvagem se baseia no livro homônimo do aventureiro Jon Krakauer que também é autor de No ar rarefeito (no qual ele relata sua escalada ao Everest em uma das expedições mais trágicas da história do alpinismo daquela montanha).

Já o filme, tem direção e roteiro de Sean Penn e, de forma bem eficiente, consegue transmitir o fascínio que os lugares inóspitos exercem sobre algumas pessoas. O enredo, a propósito, é muito mais do que isso, uma vez que relata a trajetória de um rapaz que, ao sair da universidade, decide se tornar um viajante, tendo como objetivo acampar no Alasca.

Trata-se de uma viagem pelos Estados Unidos, bem ao estilo de Jack Kerourac, que mais parece se assimilar a um percurso introspectivo. Nessa caminhada o jovem Christopher McCandless se torna Alex Supertranp, o andarilho. O que vemos, na verdade, é a recusa ao padrão de vida materialista americano.

Em cada parada, em cada quilômetro andado, Alex conhece novas pessoas, que, assim como ele, aspiram escapar desse sonho consumista ocidental. O jovem rapaz se mostra resoluto em sua disposição de cruzar a fronteira e encontrar o wilderness. Como Supertranp insinua, seu interesse é a fuga da civilização e opressão, representadas no hipócrita e destrutivo modo de vida dos seus pais.

A direção de Sean Penn se revela bem sucedida ao criar composições que metaforizam o entendimento do jovem aventureiro. As paisagens naturais aparecem como um plano geral e os embates com a natureza assumem a alegoria de obstáculos que esse jovem coloca a si mesmo.

Entre outros autores, Christopher McCandless é leitor de Tolstoi, o que explicaria sua ânsia por uma vivência simples na natureza que se contrapõe aos vícios da cidade. Em uma cena bem emblemática, o rapaz percorre por uma cidade, enquanto se questiona se deve buscar, ao menos por algum tempo, um pouso mais fixo. Contudo as mazelas da cidade, as desigualdades e a sociedade das aparências o empurram novamente em direção àquela estrada que vai para o Alasca.

Mas ninguém pode negar suas origens de todo. Supertramp nunca deixará de ser McCandless – conforme várias vezes será lembrado em sua trajetória. Ele não é um caçador, ele não é um nativo do Alasca, ele é simplesmente o belo e jovem branco de classe média alta. Cabe questionar sua prontidão para um desafio dessa envergadura proposta. Até onde ela é verdadeira? Mesmo Tolstoi teve que retornar à civilização; por que seria diferente com Supertramp?

Mas não nos esqueçamos que por trás desse filme (contribuindo com o roteiro de Sean Penn) está Jon Krakauer, alguém que quase morreu nas montanhas. Estamos falando de homens para os quais a vida ou a morte se coloca como questão secundária: superar o obstáculo, sentir a fragilidade da vida em seus ínfimos é o que importa.

Aventureiros, simplesmente isso.


Cotação: Bom

A Rainha


A Rainha (The Queen), 2006. Inglaterra/França/Itália. De Stephen Frears.

Trata-se de um forte diálogo com a cinematografia clássica, ao enfocar a biografia de um personagem de forma pouco ambígua (optando por uma coerência quase impossível à natureza humana), pois A Rainha é um filme de um personagem só, a monarca inglesa.

Mesmo que não concordemos com todas as ações dessa personagem, imediatamente simpatizamos com ela, com aquela inteligência aristocrática e soberba não excessiva.

A rainha da Inglaterra é uma mulher clássica que tem de enfrentar a voracidade da mídia e da cultura de massa. Valores como elegância, contenção, descrição se chocam com a necessidade de exposição, com a exigência de uma relação quase umbilical com os meios de comunicação.

Diana entendia isso, mas Elizabeth II não. Esse é o grande valor do filme, mostrar descompassos entre comportamentos diferentes, mas se focando em uma única personagem. Ela é chave para entendermos os paradoxos da monarquia inglesa.

A monarca vem de uma época onde a ostentação é motivo de censura, basta ver que não há nenhum luxo excessivo ao seu redor, até mesmo o televisor, em um dos aposentos, não é dos mais recentes. Claro, a rainha da Inglaterra veio de uma época ainda marcada pela carestia instaurada com a Segunda Guerra Mundial.

Os personagens que a rodeiam são um contraponto interessante, como o primeiro Ministro Tony Blair, que gradualmente vai se simpatizando com as posições da rainha – na verdade há uma certa insinuação, muito deliciosa, de que Blair é um capacho.

Outra insinuação divertida é quando percebemos que príncipe Charles é um covarde, com receio de ser atingido pela onda de insatisfação popular contra a monarquia, quanto a sua recusa de lamentar publicamente a perda da princesa Diana.

Um desafiador filme sobre o contemporâneo, sua propostas é a de ser analítico, sem levantar bandeiras para algum dos lados. Essa suposta isenção contribui para a narrativa, o que evita as prováveis pieguices de uma história muito centrada em uma única personagem.

Não há nada apelativo, nenhuma cena, nenhum acompanhamento musical. Nossa adesão a rainha é mais racional do que emotiva, sentimos certa empatia para com essa dama que lastima o azar de não ter o direito ao voto.

A única ressalva fica para aquela cena em que Tony Blair dá um chilique danado ao ouvir uma crítica à rainha, gordurinha totalmente desnecessária.

Filme de boas interpretações, filme de boa direção, bem incrustado na filmografia clássica. Não inova, mas convence.

Cotação: Bom

O Virgem de 40 anos


O Virgem de 40 anos (The 40-Year-Old Virgin), 2005. EUA. De Judd Apatow

Se eu fosse católico, mais cedo ou mais tarde teria que confessar (pois para eles, esse é um sacramento importante).

Imagino a cena.

- Pequei padre.

- Por que meu filho?

- Assisti ao filme O virgem de 40 anos.

- E daí?

- Senti vontade de matar!

- Por quê?

- Quem fez aquele filme não merece viver.

- O filme é tão ruim assim meu filho?

- É sim padre. Sabe aquela história de “loser or winner”, defesa da monogamia, culpabilização do onanismo e pornografia? Pois é, o filme é sobre tudo isso.

- Então o filme não é tão ruim assim! Pois nós acreditamos nisso!!

- Padre, o cara tem quarenta anos, nunca fez sexo, tem um quarto cheio de brinquedos, é infeliz e anti-social. Um dia seus amigos descobrem seu “segredinho” e tentam ajudá-lo a ter uma primeira transa (desculpe o palavreado padre). O cara se apaixona e cresce, isso significa: livrar dos seus brinquedos, ser promovido no trabalho e desenvolver relação estável com uma única mulher.

- Aonde você quer chegar meu filho?

- Bem padre, o sexo nessa concepção é prisão e não libertação. Amar significa seguir o American Way of Life. Isso sem falar da forma negativa como as mulheres são apresentadas.

- Mas meu filho, esse filme é extremamente conservador, exatamente o discurso que prezamos. Tem tudo a ver com nossa cabeça retrógrada.

- Padre, ele só faz sexo depois de construir uma relação estável, isso aos 40 anos!

- Deus o abençoe por isso. É bom ver que o cinema americano ainda se preocupa com os bons costumes!

É por isso que não sou católico, para não sentir culpa por desejar uma morte dolorosa para todos aqueles envolvidos com essa obra prima do pseudo-puritanismo americano.

Amém!

Cotação: Péssimo

domingo, 9 de março de 2008

Sicko SOS Saúde


Sicko – S0S Saúde (Sicko), 2007. De Michael Moore

Protozoários.

Queria ver Michael Moore fazer um filme sobre protozoários. Já não há como fechar os olhos para suas limitações técnicas e artísticas. Ele insiste sempre nos mesmos argumentos, não conseguir ir além de uma crítica muito rasteira à administração Bush e seus percussores republicanos.

Sua nova abordagem se refere à corrupção e falência dos planos de saúde norte-americanos, como também à ausência de um sistema médico público. Nos Estados Unidos somente aqueles que detêm recursos financeiros podem ter acesso aos hospitais. No país sede do capitalismo o direito à vida também é uma mercadoria. As revelações de Moore são capazes de impactar até os brasileiros insatisfeitos com os sistemas públicos ou privados.

Arrisco dizer que nossos problemas na área médica nem de perto se comparam à situação caótica e lastimável vivenciada pelos Estados Unidos. Vemos, na prática, que iniciativa privada e baixa intervenção do governo trazem um resultado bem diferente daquele prometido pelo discurso dito neoliberal. Curiosidade à parte é observarmos a tal conhecida estupidez do americano médio, aprendendo, desde pequeno, a acreditar que sistema de saúde público é uma prática socialista.

Certo elogio deve ser feito ao filme de Moore, seu interesse em desvelar as mazelas do país e questionar a suposta liderança americana – que ao julgar pelas revelações do filme se restringem ao campo bélico. No entanto, as ferramentas com as quais o cineasta trabalha são limitadas, seus recursos são melodramáticos, apelativos, sensacionalistas. Sua câmera é impertinente e deselegante, não há privacidade a ser respeitada, prevalece certo sadismo na coleta dos sofrimentos individuais, que supostamente se justificariam em proveito de uma causa pública.

A própria estrutura do filme é desinteressante, restringe-se a comparar os Estados Unidos com o Canadá, a Inglaterra e a França, em um modo de argumentação que não respeita as diferenças e seleciona arbitraria (e inescrupulosamente) os aspectos que lhe interessa. Uma das suas atitudes é mostrar que o padrão de consumo dos médicos europeus é tão alto quanto o americano. Em certo momento ele pergunta a uma família francesa de classe média alta se ela é feliz. A resposta é mais ou menos a seguinte: “Tenho uma casa cara, um carro caro, recursos e uma esposa branca, como não seria feliz?”. Em momento algum a sociedade de consumo é posta em xeque, erro fatal na argumentação.

O momento mais constrangedor é quando Moore tenta conduzir bombeiros e voluntários que adoeceram durante os trabalhos de resgate do 11 de setembro à prisão de Guantánamo. A argumentação do cineasta é que os prisioneiros (leia-se perigosos terroristas...) estavam recebendo tratamento médico melhor que o oferecido aos “heróis americanos”. Ele chega a essa conclusão ao ouvir vídeos dos altos militares afirmando a qualidade das instalações do presídio. Aqui, Moore se aproxima em excesso do stupid white man que ele tanto critica. Será que ele não percebeu o caráter propagandístico daquelas declarações? Ou ele simplesmente desconhece as barbaridades que ocorrem naquela prisão?

Alguém deveria ter avisado a Michael Moore que seria contraproducente um centro de tortura não ter uma instalação médica adequada. Em certo momento ele diz que sua intenção era que os heróis do 11 de setembro recebessem o mesmo tratamento aplicado aos detentos. Pobre americano ingênuo!

Nem a seqüência seguinte consegue minimizar o mal estar causado por essa falha insuperável. Ao não obter resultados em Guantánamo, Moore conduz seus acompanhantes até a ilha infernal, no intuito de mostrar a superioridade do sistema médico cubano. Divertido, capaz de agradar os anti-americanistas de plantão.

Tapa na cara. Do Bush.

Remédios que custam mais de cem dólares na terra da livre iniciativa podem ser adquiridos por centavos em qualquer farmácia de Havana. Uma das doentes que acompanham Moore não resiste a essa informação e cai em prantos – compreensível, tal discrepância é demais para qualquer ser humano. É ela quem diz a melhor frase do filme, sintetizando muito bem a argumentação da exposição:

Vou levar uma maleta cheia para casa”.

Contudo, a armação de Michael Moore novamente vem à tona. Ele organiza (é claro que foi ele!) uma confraternização com os bombeiros cubanos, na qual fica evidente o artificialismo da situação. Os soldados, em uma formação muito descuidada, com uma expressão de total desentendimento. Constrangimento visível dos bombeiros americanos em cumprimentar os cubanos. Afinal, tudo bem que receberam tratamento gratuito, mas um inimigo ainda é um inimigo.

Não importa. O que vale é provar que George W. Bush e os republicanos são incompetentes. Mas o filme poderia ser muito mais; um desconcertante questionamento sobre os embates entre Estado de Direito e corporações transnacionais.

Michael Moore contempla o busto de Marx, mas não está pronto para um dialogo. Afinal, um liberal radical ainda é um liberal. É possível que esse polemista se torne um grande documentarista. Mas enquanto isso seria aconselhável abordar temas menos polarizadores. Protozoários, minha sugestão são os protozoários.

Cotação: Fraco

As Branquelas


As Branquelas (White Chicks), 2004. EUA. De Keenan Ivory Wayans

Dois policiais negros se disfarçam em garotas brancas, as típicas “patricinhas”, pertencentes às classes mais abastadas. Objetivo: prender os vilões, os criminosos, os infratores e por aí vai...

Comédia, excelente comédia. Não há nada mais engraçado do que ver um negro fingindo ser um(a) branco(a). Comédia, excelente comédia.

Eu não ri, pois estava mais preocupado em entender a segregação étnica americana. É motivo de piada ver um negro se fingindo de branco.

O momento em que os dois agentes, disfarçados de garotas, dançam “hip hop” na boate é imperdível. Brancas dançando música de negro, pura chacota.

Ri demais.

Também temos outro personagem negro, o atleta típico: musculoso, machista e sem cérebro – cujo objetivo de vida são os afairs (adoro meus eufemismo) com as mulheres brancas. Muito engraçado, morri de rir. Comédia da boa.

A quantidade de filmes norte-americanos sobre troca de identidades, seja envolvendo gênero ou etnia, é bem sugestiva. Dentro de uma vida consumista, o novo é tudo, a experimentação é a diretriz principal, almejam-se novas identidades, a quantidade de cirurgias plástica que o diga. Em um filme, é o jovem que vira velho, em outro é o homem que vira mulher, ainda temos o caso em que se transforma em um animal, isso sem lembrar as trocas de posições sociais (de mendigo a presidente).

No presente caso, somos agraciados com duas mudanças, de homem para mulher, de negro para branco. Não vou discutir o racismo americano, pois já virou clichê. Michael Jackson surge como o símbolo máximo dessa era; a referência ao seu nome já resume a discussão por si só.

Como comédia o filme não se realiza, mas sugiro outra categoria ... trash.

Cotação: Péssimo

sábado, 8 de março de 2008

O Orfanato


O Orfanato (El Orfanato), 2007. México/Espanha. De Juan Antonio Bayona

Um, dois, três, toca na parede.

Alguns imaginários são persistentes e eficientes. Recentemente, em vistia por uma cidade, tive a oportunidade de visitar um antigo casarão sobre o qual circulam algumas lendas acerca de sua propriedade mal-assombrada. Aparentemente era uma construção comum, genuíno exemplar da arquitetura de fazenda do setecentismo mineiro.

Tratava-se de um sobrado de dois andares, construído em pau-a-pique, com assoalho em tábuas largas e algumas divisórias de madeiras, também possuindo vários cômodos, alcovas, porões e despensas. Supostamente, uma família inteira adoeceu de bexiga e pereceu, sendo sepultados em uma das alas do porão. O proprietário, meio bobamente, me relatou as estranhas ocorrências que ele pode observar quando morava no local, como os vários barulhos que ele escutava durante a noite.

Em uma casa de madeira de quase trezentos anos escutar barulhos é mais do que normal, aliás, sobrenatural seria não ouvir a madeira dilatar... Enfim, todo modo, esse casarão tem um bom potencial para nos assustar e nos fazer esperar o confronto com o sobrenatural. Imaginem: um pequeno ruído no porão às três da manhã. Vale a pena descer as escadas? Abrir as portas? Ir conferir o que te espreita na escuridão? O que te motivaria a procurar o desconhecido?

Certamente a representação cinematográfica da casa mal-assombrada se assenta em elementos do imaginário popular. A noção de que alguns espaços contenham conexões com o além é uma recorrência antiga, acionada em diversas ocasiões. O caso do cemitério parece ser o exemplo mais característico: espaço dos vivos para o descanso dos mortos. Curiosamente, é pouco comum que os filmes de terror se ambiente nessas paragens.

A princípio, o cemitério seria local de harmonia e equilíbrio, onde os dois mundos se respeitam. Situação contrária é a de uma casa antiga, na qual há rastros fantasmagóricos que insistem em perambular pelos lugares em que habitavam quando vivos.

Os filmes sobre casas mal-assombradas têm recursos limitados para nos surpreender – somos capazes de antecipar os principais desdobramentos. E é esse aspecto que eu destaco em O Orfanato, trabalho bem feito que consegue nos conduzir a momentos de suspense, mas que, apesar da inteligência do seu desenvolvimento, tem um roteiro incapaz de extrapolar certas convenções do gênero.

Laura, seu esposo e o filho adotivo Simon se mudaram para a casa na qual ela vivera no passado, quando então abrigava um orfanato. Sua intenção é poder cuidar do seu filho que tem uma grave doença. No entanto, o garoto alega estar em companhia de outras crianças. A princípio, Laura não levará a sério essas brincadeiras, até se convencer de que realmente há uma força sobrenatural tentando afastá-lo do filho.

Se os casarões mal-assombrados são elementos recorrentes nas narrativas fantásticas as odisséias das mães que não medem esforços para proteger ou salvar seus filhos também é outro tema constantemente abordado. Convicções de que as mulheres seriam capazes de atravessar o reino dos mortos para salvar seus rebentos. Trata-se de uma atualização do mito do amor materno, de que as mães, por natureza, são protetoras.

Os pais aparecem como o elemento racional, aqueles que se restringem ao campo da lógica e da virilidade para salvar seus filhos. Do amor paterno, espera-se o empunhar das armas e a defesa ao lar, mas o contato como o outro mundo (inconstante e imprevisível) ainda é tarefa feminina. Seriam atualizações do machismo oitocentista?

Há várias sub-tramas no filme que impedem que o expectador desvende o desfecho da história. A criança desaparecida teria sido seqüestrada por uma antiga funcionária? Ou raptada pelos fantasmas do orfanato? Aliás, esses seres existiriam ou seria apenas a imaginação de algumas mulheres histéricas? É de se questionar as causas pelas quais as assombrações sempre preferem aparecer para mulheres e crianças. Seriam incapazes de confrontar a masculinidade e cientificidade dos homens?

Talvez. Mas em O Orfanato, quando o horror já transparece em sua totalidade, Carlos, marido de Laura, prefere negar o ocorrido e opta por abandonar a residência. O que transparece em sua fisionomia é o medo do desconhecido e o rancor por sua esposa, que insiste em buscar o intangível. Aliás, sua expressão nos antecipa qual será o destino de Laura, algo pelo qual, no meio da narrativa, eu já esperava.

De fato, se a resposta ao enigma é surpreendente (e extremamente cruel), o desfecho do filme (ao menos para mim) não surpreende. Final típico para o gênero que se o leitor pensar em outros exemplares já vistos, há de saber a resposta.

Entretanto, o dado mais curioso é que o enredo só involuntariamente se tornar uma história de terror. Isso é dito na primeira cena, quando vemos o orfanato na época de Laura, a fotografia iluminada, a paisagem bucólica e a alegria das crianças dizem inequivocamente que aquele espaço é o recanto dos pequenos, lugar seguro e nada ameaçador.

Embora o garoto Simon, desde o começo, já tivesse uma relação “natural” com o outro mundo, em momento algum ele se encontrava em perigo. A projeção trilha o curso do terror somente em função dos equívocos cometidos e das falhas humanas. Não há como associar o orfanato ao espaço maligno e hostil, pelo contrário, ao final ele pode ser visto como o paraíso perdido. Território benigno e de complacente repetição.

Um, dois, três, toca na parede.

Cotação: Regular

sábado, 1 de março de 2008

Jogos de Poder

Jogos de Poder (Charlie Wilson’s War), 2007. EUA. De Mike Nichols

A possibilidade de um desfecho desfavorável no Iraque tem preocupado largos setores da sociedade americana, da população leiga aos políticos, dos militares nacionalistas a intelectualidade esclarecida.

Nos últimos tempos, várias produções hollywoodianas têm abordado esse tema, com maior ou menor habilidade. Mike Nichols é um cineasta crescido e, supõe-se, ele sabe o que está fazendo. Ora, que Nichols siga a corrente política que bem entender, mas em sua idade a ingenuidade é algo que não cai bem.

Em Jogos de Poder (tradução idiota) temos um genuíno exemplar da direita americana. A projeção nos surpreende desde o começo, quando o nome de Charles Wilson aparece pintado nas cores azul e vermelha, projetado, em seguida, sobre uma bandeira americana.

Como narrativa conservadora, o filme possui uma visão teleológica e facistóide da história. No decorrer de uns 90 minutos somos convencidos do argumento de que aos Estados Unidos cabe o direito de ditar o curso do mundo. Em começos dos anos oitenta a União Soviética invadiu o Afeganistão, iniciava-se um conflito de forças desigual, no qual a população do país invadido tentava, de forma desesperada, resistir ao avanço do exército vermelho

Em Houston, uma socialite, com dons de profetiza, enxergou que essa era a possibilidade da democracia americana derrotar o império comunista. Ela sugere ao congressista Charlie Wilson que intensifique o auxílio bélico ao Afeganistão, com intuito de superaquecer os gastos soviéticos, levando-os a bancarrota. Concepção voluntarista da história, na qual duas pessoas puderam decidir os acontecimentos mais marcantes do último quartel do século XX.

Em última análise, o que se prescreve é que o império soviético estava pré-determinado à falência, o que revela um desconhecimento da dinâmica interna dessa potência. A experiência socialista foi encerrada unicamente porque um congressista, apreciador de bebidas, cocaína e mulheres (até que ele é um cara legal), concluiu que caberia ao governo americano a missão de salvar os afegãos.

Sim, trata-se de uma salvação. Pois o cruel Império Soviético invadiu o Afeganistão. Pois o cruel Império Soviético entrou em uma guerra desigual, usando modernas tecnologias contra rifles ultrapassados. Pois o cruel Império Soviético atirou contra a população civil, destruiu suas casas e torturou pessoas indefesas, aleijando mulheres e crianças. Como o exército soviético é cruel. A democracia americana jamais cometeria tais deslizes.

As cenas do exército vermelho são caricatas, resquícios da propaganda da Guerra Fria. Em um momento, a câmera mostra a perspectiva das armas dos helicópteros russos que atiram contra os civis, a música de fundo é um hino soviético. Em outra cena, antes de partir para o combate, antipáticos soldados riem cinicamente da desgraça dos afegãos, demonstrando total insensibilidade.

Essa denúncia, feita justamente pelo país que inventou o conceito de guerra cirúrgica, só pode ser um sarcasmo pré-meditado.

A mensagem do filme é clara. Ela diz: “Armamos os fundamentalistas, pois eles foram necessários para combater o exército vermelho. Naquele momento essa ação contribuiu com a democracia, infelizmente perdemos o controle sobre esses grupos”.

O que não deixa de ser uma verdade, mas, chamar a realpolitik contemporânea de luta pela liberdade universal já é ume exagero. Aliás, em outra cena, surge novo vidente para alertar que, em um futuro próximo, aqueles mulçumanos gritando o nome de Deus seriam um problema para a América.

Teleologia: o islamismo estaria pré-determinado a se voltar contra o “Ocidente”. A América não teria participação nenhuma nesse processo, esqueça-se a proteção a Israel, suas pretensões geopolíticas e a insaciável sede de petróleo.

Alguns momentos da narrativa deslizam para a pieguice explícita, quando Charlie Wilson visita o campo de refugiados no Paquistão, comovendo-se com a miséria local. Cabe questionar a possível reação desse humanitário político perante a destruição que sua democracia promoveu no Vietnã.

Em suma, o que Jogos de Poder esclarece é a legitimidade da espionagem, o direito dos Estados Unidos interferir de forma direta ou não na vida de outros países. Desde que estejam no sentido contrário do bem comum, que só por acaso coincide com seus interesses particulares.

Em um dos piores momentos do filme, Charlie Wilson confessa para sua assistente puxa-saco seu amor pela América. Os olhos da garota (bem bonitinha por sinal) lacrimejam e ela transparece toda a admiração pelo seu chefe. Alguém menos acrítico diria:

“Então você se apaixonou pela América em função da possibilidade de se manipular os negros nas eleições em proveito de suas pretensões particulares?”

Charlie Wilson, com seu maneirismo típico diria: “Sir, Woman”.

Vindo de um apreciador de álcool, cocaína e strippers, há mesmo certa coerência. Como eu havia dito, Charlie Wilson é um cara legal.

Pelo menos para a Era Reagan.

Cotação: Bom

Pefume

Perfume – a história de um assassino (Perfume: The Story of a Murderer), 2006. Alemanha/Espanha/França. De Tom Tykwer.

O filme se passa na primeira metade do século XVIII, por isso há vários anacronismos que são intoleráveis. Alguns personagens agem como se estivessem em um momento pós-freudiano, ao tentar “entrar na mente do assassino”. Há vários termos que simplesmente inexistiriam naquele momento, a própria noção de perversão sexual, que uma personagem insinua em um dado momento, é incompatível com aquele período.

No século XVIII não havia legistas para certificar se as vítimas foram estupradas. Pelo amor de Deus! Autópsias e dissecações ainda eram um tabu... que dirá a medicina legal.

Porém é verdade que qualquer filme que não seja ambientado no presente ou num passado próximo será em certa medida anacrônico. Aliás, o cinema não tem que ter nenhum compromisso com a verossimilhança histórica, a MENOS que essa desobrigação se torne um problema para o roteiro ou a direção.

É o que ocorre em Perfume, na segunda metade da projeção a trama se desmorona completamente. É um filme de serial killer, e pronto... aquela sugestão sexual típica, aquele jogo de gato e rato, aquela identificação com o assassino, aquela ambigüidade moral muito artificial. A única diferença é que é no século XVIII.

A primeira metade do filme é indiscutivelmente superior. Vemos como o nascimento e o crescimento do jovem Jean-Baptiste Grenouille, um órfão que possui um sentido de olfato muito apurado. Sua intenção é conhecer os aromas e depois conseguir perenizá-los através de técnicas de perfumaria. É interessante observarmos como o mundo se revela diferente para o personagem, pois ao contrário da maioria dos seres humanos não é a visão seu sentido prioritário.

Ele é um maldito, sua presença nunca é bem quista e seu afastamento sempre deixa seqüelas desagradáveis. O jovem Genouille é uma anomalia entre os homens... mas isso não o traz infelicidade, pois o que ele procura é exatamente o singular, o etéreo. A temática do filme é interessante, até a narrativa centrar-se no enfoque dos assassinatos cometido pelo jovem perfumista.

É uma pena que as atitudes de alguns personagens não sejam coerentes com a França setecentista, pois os cenários foram muito bem produzidos. A precariedade das remanescentes construções medievais, em um momento de explosão urbana, é convincente. Há uma cena em que a câmera focaliza os barcos com os pescadores e, em seguida, faz um movimento vertical para cima, mostrando as pontes repletas de habitações. Esse apuro revela uma direção de arte bem entendida com a proposta do filme, causar um estranhamento no expectador.

Os figurinos também estão satisfatórios, drapeados usados pelos pobres sendo contrapostos às roupas ajustadas especialmente para os nobres. Uma maneira sutil e eficiente de mostrar as diferenças sociais no século XVIII.

Perfume é um filme com acertos e muito mais desacertos. Embora com discussões interessantes, sua pretensa complexidade acaba desmascarada pela insistência em se tornar um trilher de assassinos... uma história de bandido e mocinho...

Vamos ser justos, o filme tem seus bons momentos, ele não chega a cair, mas que dá uma escorregada, vexatória e irrecuperável, isso dá!

Cotação: fraco

Patton

Patton – rebelde ou herói? (Patton), 1970. EUA. De Franklin James Schaffner.

África, Segunda Guerra Mundial.

A cena é desoladora. As marcas de um combate recém travado são evidentes. Os veículos estão destruídos, há restos de incêndios, crateras causadas pelas explosões, armas espalhadas e retorcidas. Porém, o mais angustiante são os corpos, alguns estão semi-cabronizados, outros, deitados em suas próprias poças de sangues, em alguns faltam membros. Oficiais e soldados jazem junto ao chão. Não há mais vida.

General Patton (George Scott), ao se deparar com essas imagens, com os restos de seus próprios homens, respira fundo e, com muita convicção, afirma que ele ama aquele cenário, que ele nasceu para vivenciar aquela experiência.

Sim. Patton é um homem antigo, é um guerreiro nato. Ele ama a guerra assim como os demais amam a paz. Ele não se encaixa naquele paradigma do militar patriota que luta pelo seu país. Sem dúvida ele combate pela bandeira dos Estados Unidos, mas, acima de sua nação, está sua honra de guerreiro, sua vontade de glórias. Patton é o Aquiles do século XX.

Como a narrativa do filme faz questão de evidenciar, ele é anacrônico, quer manter a ética de guerreiro em meio a uma era tecnológica. Como comandante ele é assustador, inflige ânimo aos soldados e oficiais, mas é intransigente com as titubeações. No hospital, expulsa um soldado com neurose de guerra, pois para ele isso era apenas covardia. Porém, Patton se comove ao ver seus soldados que tombaram em combate, trata os sobreviventes de forma paternal.

Para mostrar-se superior ao general alemão Romel, seu inimigo, e também ao general inglês Montgomery, seu aliado, põe em risco todo o seu exército. Ele não se incomoda em enviar seus homens em direção ao ataque frontal, mesmo sabendo que não voltarão vivos.

Patton é militarista e militaresco. Ele preza a pompa militar, as homenagens que recebe, as medalhas, as glórias. Ele é vontade de potência, quer mostrar ao mundo seu instinto.

É aí que reside o elemento trágico, que novamente o aproxima dos heróis clássicos. A falta de discernimento político do general é a responsável pelas imprudências que ele diz ao público. Coisas que embaraçam os políticos (como o pouco caso que ele faz da Rússia), ao escancarar o que deveria permanecer velado. Por isso, Patton sempre ficou de fora dos maiores combates, pois os políticos e diplomatas o julgam perigoso demais para as delicadas relações entre os países aliados.

O maior combatente é sempre deixado de fora dos maiores combates. De longe, general Patton contempla o lugar onde gostaria de estar. Ele se esforça, em vão, para ser posto na linha de frente. Quer está em um lugar no qual muitos gostariam de fugir.

Um bom guerreiro, mas um péssimo homem. Como nas tragédias gregas, ele se sente de mãos atadas para cumprir uma tarefa a que se julga predestinado. Sua sina é sabotar a si próprio e se impedir de cumprir a grandiosa missão que os deuses o atribuíram: conduzir homens para a guerra, guiar os soldados a um local onde deverão matar e serem mortos.

Cotação: Ótimo