segunda-feira, 29 de abril de 2024

Jurassic Park


Jurassic Park - O Parque dos Dinossauros
(Jurassic Park), 1993. De Steven Spielberg.

Antes de tudo Jurassic Park precisa ser entendido como um filme, ou seja, antes da superexploração por meio das franquias pasteurizadas tivemos uma história que realmente valeu o ticket do cinema. Em retrospectiva, podemos ter dificuldade em apreciar seu impacto à evolução do entretenimento, mas o apuro técnico dos efeitos especiais abriu novas possibilidades para os filmmakers.

Jurassic Park foi a superação do Tubarão (também do Spielberg), e se há semelhanças  eles  – o confronto entre homem e natureza e a inversão da relação caça-caçador, por exemplo  – a escala de cada uma dessa mitopéias é distinta.

O tubarão era um invasor individual, até interpretado como resultado dos desequilíbrios ecológicos – algo presumível da história de Peter Bencley, o autor do romance original. Já os dinossauros foram resultados do poder da ciência maximizados pela caótica força motriz da vida. Ideia concebida por Michael Crichton em seu best-seller, o próprio Jurassic Park. Chrichton inova, pois não temos aqui um mundo perdido tal como nas histórias de Conan Doyle ou Júlio Verne; as criaturas extintas voltaram à vida por meio do desiderato de um show business vocacionado em ser um Walt Disney com engenharia genética.

Jurassic Park finalizou um trabalho iniciado com King Kong, Godzilla e outros monstros gigantes (kaijins) mundo afora. O roteiro é um primor didático pela simplicidade de uma narrativa bem contada. A apresentação dos personagens e do cenário, as complicações da trama e o aparecimento do inimigo ensinam-nos como guiar a imaginação; e do espanto caímos para o mar do merchandising.

Eis a dita magia do cinema operada no convencimento do público quanto a realidade do que se passa na tela. Os efeitos especiais e visuais hoje parecem-nos banais, mas inauguraram uma expectativa de receber a fantasia realista em seus detalhes – cada vez o esforço da imaginação passa a ser menor. Ao refletir sobre o realismo de Jurassic Park não posso me esquivar de rememorar o non sense do quadro Dinosaurier auf der Autobahn (1980) do pintor suíço Giuseppe Reichmuth. É o monstro entrando naturalmente na ossatura do cotidiano.

Esses dinossauros não nos dão sossego... reparem na usina nuclear do lado esquerdo e o carro rabo de peixe.

Basta olhar para a tela, tudo está lá, mastigado e plastificado. No lançamento de Independence Day (1996) e Star Wars – Episode I (1999), para citar dois outros arrasa-quarteirões, o trabalho de educação das sensibilidades levado a cabo por Spielberg (e também por Georg Lucas) já estava concluído.

O sucesso dos dinossauros gerou uma superexposição do tema com uma posterior infantilização (as crianças adoraram), mas em certa medida eles foram apenas o instrumento de conscientização do grande público. Pacotões de pipoca e pepsi-cola enquanto assistem seres irreais agindo da forma mais realista e verossímil possível: eis o melhor programa da nova era de ouro do cinema.

Sucesso total: todos abarrotados, amarrotados e arrotados.

Mas e aí, o que viria depois disso?

- Ei, ali na frente, é um robô ou um carro fazendo uma conversão?

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Os fantasmas de Sugar Land


Os fantasmas de Sugar Land
(Ghosts of Sugar Land), 2019. De Bassam Tariq

Um documentário curto (21'), mas reflexivo, discorre sobre o islamismo no contexto de uma sociedade ocidental multiculturalista dita democrática.

O filme funciona como uma roda de conversa na qual rapazes muçulmanos debatem sobre a trajetória de um amigo em comum, o Mark.

Por ser o único afro-americano da escola, ele se aproximou do grupo dos “morenos”, jovens da comunidade muçulmana que acabam por convertê-lo ao islamismo. Entretanto, ao contrário dos outros, preocupados em fugir dos estereótipos, Mark enfatizava a necessidade de uma islamização agressiva.

O assombro ao descobrir o ingresso do amigo no Estado Islâmico evoca várias emoções: medo e tristeza. Na reflexão sobre a perda do companheiro rememoram o tratamento nem sempre respeitoso que o dispensavam. Por eles não se considerarem negros, a questão racial acabava atravessando as brincadeiras. Além disso, Mark era um tipo desgarrado e a procura de um lugar de pertencimento, infelizmente isto o levou ao encontro do ISIS, um dos ramos mais radicais do fundamentalismo.

Imersos no American Way of Life, os muçulmanos sentem-se quase nativos, mas precisam conviver com a discriminação e a desconfiança do governo. Todos ali são, em alguma medida, fantasmas - vide a ambivalência entre o pertencimento e o não-pertencimento. A decisão de Mark, na perspectiva do grupo, ressoa uma falha coletiva em mostrar as formas pacíficas do islamismo. Mas nos relatos dispensados à câmera nota-se a ausência de uma reflexão mais contextualizada, ora, nos anos 60 o islã atraiu membros da comunidade negra como resposta às tensões raciais então vivenciadas. Quais seriam as tensões vivenciadas por Mark para optar por uma resolução tão drástica?

Autodestrutiva e possivelmente sem retorno, é esta solução o verdadeiro fantasma de Sugar Land. O quão tentador seria tal caminho aos outros jovens em situação análoga ao de Mark? Protegidos pelo anonimato das máscaras de super-heróis, os jovens muçulmanos anseiam uma compreensão definitiva sobre a perda de alguém tão próximo e, paradoxalmente, tão distante.

Outro nome para filme: Ghosts in the shells...

Cotação: ☕☕☕☕

Observação: disponível no Netflix.


quarta-feira, 17 de abril de 2024

O Chamado 4: Samara Ressurge

O Chamado 4: Samara Ressurge (Sadako DX), 2022. De Hisashi Kimura

Durante muitos anos, nenhum filme remetia-me tanto ao medo como O Chamado (The Ring, 2002). A ambientação (da floresta, do poço e do farol) e as regras da maldição da garotinha de cabelo escorrido vingativa eram um exemplo perfeito do medo privado. Quero dizer, os terrores que você passa solitariamente, justamente ao contrário dos filmes zumbis nos quais os terrores são coletivos. Inclusive tenho um texto comparando Madrugada dos Mortos com O chamado.

Eu assisti algumas das versões japonesas, a franquia é numerosa, porém, sempre achei a americana mais consistente. E eis que nos chega esse intempestivo O chamado 4: Samara ressurge que não tem nenhuma relação com a sequência norte-americana (daí esse título ser muito apelativo).

O filme é até divertido, mas se você suprimir a expressão patacoada do seu vocabulário. A ideia original da versão japonesa continua: quem assiste a película amaldiçoada, amaldiçoado será. A fita VHS é o vetor de um vírus intrapsíquico. O vírus/maldição se tornou mais letal porque se dispersa em uma velocidade maior (pós-modernidade!). Os elementos básicos continuam, porém em um clima de terrir. Os personagens principais são estudantes com comportamentos estereotipados, um roteiro bem irregular com clima de Todo mundo em pânico.

Ayaka Ichijo é uma secundarista com QI 200 (sei, vai vendo) que precisa derrotar a maldição recaída sobre a irmã, para tal  propósito conta com a ajuda do inútil Oji Maeda, um aprendiz de paranormal que aprecia pagar de galã no jeitinho sul-coreano de ser. Ayaka o gênio passa toda a projeção a se contradizer, correndo de um lado para o outro e usando as redes sociais do celular para buscar uma pista.

A pobre Samara (na verdade, Sadako) encontra-se tão despersonalizada que muda de rosto a todo instante, uma de suas estratégias para confundir as vítimas (nesta versão ela não sai da televisão). Sua manifestação lembra a criatura de Corrente do mal (It follows, 2014), mas neste último caso temos um monstro que quanto mais se aproximava mais amedrontador ficava. Nesta versão Sadako está mais para timer do que para um fantasma incompreendido e raivoso.

Com um desfecho pastelão, “O chamado 4” é um ótimo ensejo para refletirmos que alguns dos medos do passado precisam ficar por lá, caso contrário você se dará conta que as noites de sono mal dormidas foram causadas por um canastrão com peruca espalhafatosa.

Cotação☕☕

domingo, 14 de abril de 2024

Elegia da briga


Nouvelle Vague 🎬🎬

Elegia da briga (Kenka erejii), 1966. De Seijun Suzuki

Bem ao espírito dos anos 60 e 70, a Noberu Bagu (apropriação da Nouvelle Vague francesa) abordou temas importantes da conjuntura transnacional de contestação ao status quo. A década de 1960 foi o auge das revoltas estudantis e influenciou o cinema com uma forte nota provocativa. Os próprios circuitos comerciais, embora utilizados, eram colocados em suspeição.

A principal referência da Noberu Bagu é o diretor Nagisa Oshima, mas Seijun Suzuki teve um papel importante nesse movimento com sua abordagem desafiadora e suas críticas ao autoritarismo. Esse é o caso do Elegia da briga que acompanha a paixão de um estudante estudante por uma católica. Para a contenção de seus impulsos sexuais, entendida naquele contexto como fraqueza, passa a fazer parte de uma gangue. Suas brigas se tornam frequentes e violentas, possibilitando a supressão da paixão e do desejo.

Ele prefere isso:
...a isso:

O contexto é a década de 1930 com a ascensão de um militarismo fascista no Japão. Os rapazes, com traços misóginos, passam a deplorar o convívio com as moças, mas a repressão sexual revela-se a fonte de muitos transtornos. Kiroku, o personagem principal, não consegue esquecer sua amada Michiko, mas mostra-se incapaz de fugir à solidariedade grupal.

As situações são cômicas, mas seus desfechos dramáticos. Este aspecto, assim como a mudança abrupta de capítulos, traz uma certa irregularidade ao filme, porém, tudo no espírito da Noberu bagu.

Cotação: ☕☕☕☕

domingo, 7 de abril de 2024

O garoto Toshio

Nouvelle Vague 🎬🎬

O garoto Toshio (Shōnen), 1969. De Nagisa Oshima.

Importante referência da Nouvelle Vague japonesa, o filme de Oshima contrapõe a abordagem documental (pois se trata de um caso real) com um claustrofóbico drama familiar. Um ex-soldado (ferido na Segunda Guerra Mundial) coloca sua esposa e seu filho para aplicar golpes de falsos atropelamentos a fim de extorquir os motoristas.

Oscilando entdre resignação e desolação, a narrativa se desdobra na perspectiva do “garoto” – termo pelo qual é des(identificado) pela sua família. A relação com pai e madrasta são distantes, embora esta última lhe demonstre um afeto real. Toshio expressa uma preocupação com o irmão caçula em sua imaginação escapista sobre criaturas espaciais capazes de destruir os maus e preservar os bons.

Este é o grande problema do garoto, a percepção de que desempenha uma função dúbia na pantomima do pai; seu senso apurado do certo e errado manifesta-se na relutância em desempenhar parte na artimanha. A noção de falha moral atravessa toda a família, pois nenhum deles está alheio à compreensão da baixeza na qual se encontram. O menino expressa o maior sofrimento em sua condição de criança solitária distante da escola e dos amigos, logo no início da projeção o vemos brincar com demônios imaginários.

Os personagens percorrem o Japão, do sul ao norte, executando os golpes e fugindo das autoridades. Um road movie existencialista que transforma o escape em alegoria dos problemas da sociedade japonesa. O país nipônico também teve sua cota de conflitos juvenis na década de 1960, incluindo protestos antiguerra. A própria retomada do desenvolvimento econômico deu-se com a angústia da derrota na Guerra e à sombra das bombas nucleares. Nesse contexto, o clima de derrotismo diz muito sobre os impasses vivenciados. Derrotismo bem manifesto na recusa do pai em procurar emprego por estar preso à lembrança do ferimento de guerra.

Melancólico e pessimista, Shōnen é uma porta de entrada para compreender a fascinante onda de renovação no cinema japonês.

Cotação: ☕☕☕☕

sábado, 16 de março de 2024

O Carteiro nas Montanhas


Crítica a jato ✈

O Carteiro nas Montanhas
(Nàshān nàrén nàgǒu), 1999. De Huo Jianqi.

Pai, filho e um cachorro caminham pelas montanhas para fazer a entrega de cartas. Mestre e aprendiz. Cada um se depara com seu horizonte, a aposentadoria forçada e a futura vida de longas jornadas por vales e montanhas. O percurso do carteiro inclui vários dias na estrada e dezenas de quilômetros percorridos em uma região íngreme e úmida.

A Belíssima paisagem com cenários rurais, campos de arroz e antigas vilas é Hunan, a região onde nasceu Mao Zedong, o grande líder da Revolução Chinesa. Essa ambiência é a chave para um minimalismo em que o silêncio compõe o intervalo entre os diálogos e os momentos de descanso. Há muitas sutilezas que se desvelam ao longo da caminhada como o estigma sobre os montanheses, a lenta chegada da tecnologia e o confronto entre as gerações. Também há a noção de piedade filial e a deferência para com os anciões.

O respeito familiar entre os protagonistas constitui o eixo da história. A proposta é tomar a relação entre pai e filho como parte de um modo de vida em processo de apagamento pelo mundo urbano-industrial. O caminhão que passa ao longe e o rádio levado a tiracolo pelo jovem carteiro anunciam o ruído inevitável do progresso.

Trata-se de um filme viagem no qual os pequenos acontecimentos vão tecendo um plano maior, memórias e projeções de pai e filho se entrelaçam. As discordâncias são pontuais e não ameaçam a continuidade entre os caminhos do velho e do jovem funcionário público.

Esse panorama geral remete ao filme de Kelly Reichardt chamado Old Joy (2006), aqui também temos dois homens e um cachorro que percorrem uma área erma e arborizada em uma interação silenciosa e reflexiva. O elo, no entanto, não é tão contínuo, pois o estranhamento dos amigos explica-se no distanciamento ocorrido entre eles ao longo dos anos. Em O Carteiro nas Montanhas o esforço é maior pelo fato de os viandantes desfrutarem de uma incômoda intimidade.

As viagens do pai transformaram-no em um imponente desconhecido em sua própria casa, seu grande companheiro foi o cachorro Laoer. No momento em que o carteiro retirado do trabalho por questões de saúde se estabelece em casa o jovem (por um ato de vontade própria) começa a sua caminhada. Laoer não parece disposto a acompanhar o rapaz, por isso o pai se apronta para a última viagem em um rito de passagem.

É a própria continuidade que impõe o conflito a ser desbaratado. O olhar paternal denuncia a conhecimento das dificuldades, já os murmúrios do novato revelam uma envergonhada recriminação quanto a algumas das escolhas paternas.

A vida camponesa – em sua plena idealização – encontra-se ameaçada, mas no alto das montanhas ela consegue se renovar a partir de uma temporalidade que é a da própria vida. Enfim, sugere-se na continuidade e na tradição as benesses e o antídoto contra o modo de fazer errático do mundo lá fora.

Cotação: ☕☕☕☕

quinta-feira, 14 de março de 2024

O Vale do Gwangi


O Vale do Gwangi
(The Valley of Gwangi), 1969. De Jim O'Connolly

Antes que o Parque dos Dinossauros (Spielberg, 1993) catapultasse o gênero em começos dos anos 90 a temática dos mega-monstros já estava sedimentada na tradição cinematográfica. Em Gwangi temos uma aventura clássica na qual não há propriamente vilões, embora os conflitos e as rivalidades existam.

Os diálogos, os enquadramentos e o desenvolvimento da narrativa seguem de forma esquemática com uma introdução sólida para apresentar as características dos principais personagens. O grande eixo será o embate entre rancheiros e dinossauros com o ponto alto no momento em que os cowboys conseguem laçar um Alossauro (assemelha-se a um Tiranossauro).

Tudo isso porque na passagem dos séculos XIX para o XX artistas hípicos texanos estão percorrendo a fronteira com o México, lá eles descobrem o caminho para um antigo vale no qual os dinossauros continuam existindo. Decidem aumentar o prestígio do circo exibindo uma dessas criaturas apesar da resistência dos supersticiosos ciganos mexicanos que temem a maldição do Gwangi, o mais temido de todos os jurássicos.

Embora o filme seja bem inofensivo, os brancos são sempre apresentados como indivíduos em contraposição aos nativos, ciganos e mexicanos, apontados como religiosos, supersticiosos. A representação, no entanto, não é de toda negativa cabendo ao órfão Lope a condição de ajudante dos intrépidos exploradores.

Estereótipos à parte, há um tipo de fábula acerca da ganância do show-businesses norte-americano que alimenta a narrativa. O núcleo principal comporta o aventureiro Tuck (James Franciscus) e a amazona  T.J. (Gila Golan): um casal de namorados que não consegue acertar o interesse amoroso com a vontade de fazer fortuna. A ideia de capturar o monstro, elaborada meio ao acaso pelos artistas, e levá-lo à civilização é manjadona, porém fadada ao fracasso (vide King Kong).

Ao contrário do que poderia se esperar, a construção dos dinossauros foi bem executada graças às técnicas de stop motion – o que se tinha de mais moderno na época. Embora os efeitos especiais sejam limitados para os nossos padrões, a história segue a mesma toada da atual franquia Jurassic World. Aliás, temos até um professor com pouco traquejo social disposto a se arriscar para provar a existência das criaturas.

A conclusão  é crua, isto é, sem maiores desdobramentos, bem em conformidade com os padrões da época. Não apresenta nada de extraordinário, mas possui uma história bem organizada e tem belíssimas locações – gravado em Cuenca, Espanha, com cenas de desertos, cânions, catedrais e estádios de touradas. Enfim, o filme atesta que os monstrões há muito exercem o fascínio sobre nós.

E onde tem interesse sempre haverá um capitalista para mercantilizar. Everything is money, alright?

Como será que se diz isso em espanhol?

Cotação: ☕☕☕


domingo, 3 de março de 2024

Os palhaços



✈ Crítica a jato

Os palhaços (I clown), 1970. De Frederico Fellini

O filme começa como a rememoração de Fellini sobre as sensações que o circo e, sobretudo, os palhaços lhe causavam na infância. Uma criança acorda com o barulho da armação da tenda, durante o dia ela vislumbra o espetáculo, assustando-se, no entanto, com os palhaços.

Olhar dentro da tenda é o convite para o mundo circense, o lugar ao qual ele pretende retornar. O filme mescla entrevistas com interpretações de atores e aos poucos é Fellini que vai se tornando o mestre do espetáculo. O fracasso dos atos cotidianos – a essência do palhaço – está distribuída ao longo da narrativa, com piadas e gags sutis. Destaque para a incompetente secretária de Fellini que está ali para se fazer de Auguste.

Cada conversa com um palhaço aposentado possibilita a documentação dos repertórios da palhaçaria. Questão perseguida no filme: porque o circo está em declínio? Mais precisamente, porque os clowns não mais arrancam as gargalhadas da plateia?

Logo no começo da projeção, Fellini parece identificar a substituição do popular pelo popularesco a partir da influência homogeneizadora da cultura de massa. A equipe do cineasta percorre uma Europa outrora vista como centro cultural. As ruas e as casas da Itália e da França entregam um cotidiano bem característico sem a opulência dessa Europa atual que se diz “pós-capitalista”.

A dificuldade do humor circense estaria em estreita conexão com os desafios da perda do sentido de comunidade e isso dificultaria a compreensão do público quanto ao aspecto caricato dos palhaços que trariam à tona as personagens típicas da vida provinciana. Hipótese levantada e facilmente desmentida pela etnografia construída. Palhaços são colocados em frente às câmeras, como entrevistados ou como artistas, para mostrar a vitalidade dessa arte.

O ato final é justamente o momento do enterro de Auguste (o arquétipo do palhaço brincalhão) quando o pretenso dramalhão é perfurado por um número bem orquestrado com o próprio diretor entrando no jogo. Completa-se assim a sugestão do começo do filme, a criança interessada e assustada que foge da tenda retorna como ator-diretor.

Ao se tornar um agente do riso, Frederico Fellini encontra a resposta para sua pergunta ao ressaltar que a melancolia e a poesia compõem a mitologia acerca dos palhaços como uma lembrança de que o erro e o fim são instâncias profundamente humanas.

Cotação: ☕☕☕☕

domingo, 25 de fevereiro de 2024

O homem que ri


✈ Crítica a jato

O Homem que Ri (The Man Who Laughs), 1928. De Paul Leni

As pessoas ficariam surpresas se parassem para assistir filmes do período do cinema silencioso, a linguagem cinematográfica é bem potente para transmitir as mensagens por meio das imagens dessincronizados do som.

Um excelente exemplo é o filme O Homem que ri de 1928, uma adaptação melodramática do romance de Victor Hugo. O início do filme expressa potência com o cenário claustrofóbico e com a apresentação de personagens marginais, introduzindo, inclusive, temas macabros, tais como os ciganos comprachicos. A história, no entanto, é um romance cujo arco geral centra-se na redenção por meio do amor incondicional. Os temas do terror são tangentes e talvez até não intencionais.

A trama se passa no final do século XVII e o personagem principal, o palhaço Gwynplaine (interpretado por Conrad Veidt), foi deformado com um sorriso abjeto a mando do rei James II quando ainda era criança - vingança do monarca contra o filho de um nobre revoltoso. Consta, inclusive, que o vilão Coringa do Batman foi inspirado nessa figura. A imagem trágica de Gwyn, no entanto, não traz o germe da loucura, a autopercepção da não aceitação traduz-se simplesmente na busca da dignidade diante da monstruosidade.

Adotado por um circo itinerante, o artista Gwyplanine ao lado de sua amada Dea (uma moça cega que ele salvara na infância) se torna uma atração nas feiras populares, conhecido como “o homem que ri”. Porém, as origens nobres do palhaço, quando descobertas, envolvem-no em uma trama palaciana da rainha Ana, incluindo as heranças, os casamentos arranjados e os raptos de donzelas por malvadões de capa...

A construção do cenário, com muita influência do expressionismo alemão, o desempenho de Veidt (sustentando uma carranca impressionante) e a trama rocambolesca de inspiração romântica registram a fase final do cinema silencioso. Inclusive a sonoplastia já avançava para a introdução do som sincronizado com falas na tessitura fílmica.

Destaque para a capacidade didática do roteiro em explicar longos desdobramentos sem o excesso de intertítulos, isto é, as placas informativas e os diálogos em texto. Quer dizer, temos um filme maduro capaz de organizar uma história banal dentro de uma ambiência sombria, prenúncio da era dos filmes de terror da Universal.

O homem que ri tem ainda hoje elementos capazes de entreter uma plateia adulta, com exceção daqueles que apreciam vídeos de trinta segundos de uma plataforma bastante popular entre os jovens.

Mas aí já não é meu departamento.

Cotação: ☕☕☕

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Denominador comum: angústias circenses


Luzes da Ribalta (Limelight), 1952. De Charles Chaplin

Noites de circo (Sawdust and Tinsel), 1953. De Ingmar Bergman

Denominador comum: angústias circenses

No cinema, sem dúvida, é um tropo constantemente revisitado as dores e as desventuras dos artistas circenses que na responsabilidade de entreter a plateia se veem obrigados a secundarizar suas próprias angústias. Temos aqui duas grandes clivagens do tema, o enquadramento clássico de Charles Chaplin (direção e atuação) sob o envelhecimento do palhaço e a expressionista história de Bergman (direção) sobre os conflitos entre o diretor de um circo e sua esposa.

Assistir esses dois filmes na sequência é um experimento de história do cinema na medida em que vemos temáticas parecidas adotadas em distintos planos e perspectivas. Cada um desses filmes revela decisões profundamente autorais, de um lado um Chaplin já consagrado e no final da carreira faz uma reflexão sobre a necessidade de renovação do humor. Do outro lado, um iniciante Bergman avança sobre os conflitos existenciais tais como a solidão e a tristeza dos seres humanos.

Em que pese o esquema do cinema de estúdio hollywoodiano com soluções características da comédia dramática, Luzes da Ribalta tem muita força. Tremendamente autorreflexivo, inclusive com a participação do ator Buster Keaton, o maior rival de Charles Chaplin. Ao contracenar juntos, eles colocam uma pedra de cal no cinema mudo, isso porque em Luzes da Ribalta há filmes dentro de um filme. Mas os diálogos – tão pouco naturais – explicitam as marcas do gênero.

Em Noites de circo a câmera aprofunda o âmago do mundo circense. Arte e pobreza se entrelaçam ao mostrar uma situação de constante precariedade. A moralidade questionável dos artistas circenses guarda a ambivalência entre libertar e aprisionar. O claro e o escuro se contrastam o tempo todo, a hierarquia entre o teatro e o circo compõe um cruel dueto. O desamparo de todos é visível porque o circo tende à marginalidade. O eixo é a impossibilidade de fugir da humilhação pessoal e social.

Eis a grande diferença entre os dois filmes. Chaplin entrevê o fim com dignidade, ainda que aspectos da decadência e do passadismo sejam inevitáveis, ao passo que para Bergman não há escapatória do ciclo de humilhação. O horizonte do estrelato como atribuidor de sentidos inexiste em Noites de circo – luta-se, ali, contra a fome e a pobreza. A fome também é mencionada em Luzes da Ribalta, porém de forma ligeira. Agora no trabalho de Bergman ela é uma parceira constante dos trabalhadores.

Longe de ser um produto de perfumaria, Luzes da Ribalta combina contundência e sutileza em sua denúncia da pobreza urbana. Mas não se assemelha ao destruidor arco de Noites circenses, porque ali temos artistas tristes e famélicos. Ao fim e ao cabo ambas as películas convergem para a ideia de que o show precisa continuar – não importam quais sejam os obstáculos.

Cavalero, o palhaço de Chalpin (interpretado por ele próprio) e Frost, o palhaço de Bergman são notoriamente diferentes: um é o Trump (tipo de palhaço americano) e o outro é Branco e Triste. Cada um, a seu modo, oferece contributos para abordarmos o quão importante foi a mítica circense na maturação do cinema.

Talvez seja o caso para recuperar as fontes teatrais populares para uma contraposição ao infantilismo então prevalecente que tem inviabilizado o uso do cinema como um momento reflexivo.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

O mal que nos habita


Critica a jato 


O mal que nos habita (Cuando acecha la maldad), 2023. De Demián Rugna.

Argentinos criaram uma própria versão de apocalipse zumbi ao tematizar acerca de um mal: os infectados ou infestados que se espalham de um lugar a outro.  As entidades são expressões da corrupção causada pelo demônio nas pessoas e nos animais. Um tipo de mal que se prende tanto nos lugares e nas coisas quanto nos seres vivos.

A narrativa inicia-se justamente com a identificação de um infectado em uma zona rural. Afastados da civilização, os moradores locais precisam lidar com o diabo em meio ao receio e à apatia das autoridades locais (altamente incompetentes pelo visto). No entanto, a medida em que a narrativa acelera a ritmo, o cenário se torna urbano e a ideia de isolamento perde a força, inclusive o deslocamento da cidade para o vilarejo parece se tornar mais frequente.

A fim de criar uma atmosfera de total impotência, muitos artefatos e aliados do nefasto vão aparecendo ao longo da projeção e, desse modo, o mal que espreita parece inevitável. Assim, animais, doentes, mortos e crianças tornam-se emissários do maligno, inexistindo adversários dignos ou capazes de enfrentar tal desafio. Acentua-se, assim, uma outra noção que é a do desespero, pois o mundo sem Deus não é necessariamente um mundo sem o diabo. A estética contida e a narrativa sóbria privilegiam o psicológico em detrimento do asco. Terror com toques de drama familiar: diante do adoecimento das relações afetivas, a solidão, a raiva, o abandono e, enfim, o enlouquecimento são a oportunidade aguardada para a materialização da maldade.

Não obstante um visual de terror requintado cuja âncora se dá na tragédia familiar – um psicologismo comum desses dias – há forte verve Trash na narrativa – não pela estética, mas pela facilidade com que desafios vão sendo acrescentados sem uma preocupação de amarrar muito bem a cosmogonia do universo apresentado. Um filme confuso e desequilibrado, mas capaz de, até certo ponto, assustar os desavisados com a lembrança de que se Deus está morto o diabo vai muito bem obrigado.

Cotação: ☕☕☕

sábado, 10 de fevereiro de 2024

O homem dos sonhos


Código Cage 💫💫💫

O homem dos Sonhos (Dream Scenario), 2023. De Kristoffer Borgli

O filme aborda a loucura dos tempos atuais em uma comédia de humor negro que funciona como alegoria da internet. A crueldade das redes sociais estampada na construção/destruição de subcelebridades, na cultura do cancelamento e nos tensos liames do real/virtual são bem trabalhadas na história de um professor universitário frustrado chamado Paul Mathieu (Nicolas Cage) que passa a ser uma figura recorrente no sonho de pessoas conhecidas e desconhecidas.

Mathieu tinha uma vida convencional como catedrático de Biologia Evolutiva,  mas se sentia desgostoso por não consegui publicar e injustiçado por não receber os créditos merecidos por seu trabalho. A figura de Mathieu expressa um homem com potência, mas estagnado em uma figura entediante, medíocre e cheia de recalques pessoais e profissionais.

Ele gostaria de ter maior notoriedade o que acontece tão logo as pessoas passam a sonhar com ele de forma recorrente. Em pouco tempo sua imagem viraliza e Paul alcança um tipo infame de reconhecimento. Nesse ínterim ele se depara com situações negativas, até então imprevistas, geradas pela tão almejada atenção.

Dream Scenario funciona como denuncia da volubilidade da plateia virtual, mas vai além ao oferecer um personagem bem construído – méritos para Nicolas Cage (nosso Nicão*). A sensação de apatia do homem mediano enfrentado por Paul Mathieu o aproxima do professor Larry Gopnik do filme Um homem sério (2009) dos irmãos Coen. É curioso como a docência parece indicar em ambas as projeções um lugar de amargura e invisibilidade.

Mas se os Coen constroem um texto fílmico minimalista (ainda que com toques de nonsense), Kristoffer Borgli envereda pelo humor depreciativo com a transformação do absurdo em terror. As pessoas se revelam incapazes de captar a diferença entre o visitante dos sonhos e o homem de carne e osso. A relação entre dar e receber das redes sociais cria monstros, e não é preciso muita coisa para alguém se tornar o frankenstein da vez rodeado pela multidão irada de campônios com tochas nas mãos. Mathieu reluta em abrir mão das oportunidades criadas pelo singular fenômeno; aliás é curioso perceber que mesmo ele sendo um suposto pesquisador demonstra pouco interesse em entender as causas do evento. Ele se julga criador sendo que na verdade é criatura.

O filme acaba prejudicado pelo capítulo final, a mudança de arco que se não é de todo incoerente compromete a força do conjunto. A narrativa opta por levar até as últimas consequências o paralelo com as celebridades da internet, mas ao tomar esse rumo desfoca o ângulo metafísico acerca das agruras do personagem. O desdobramento do clímax – o confronto entre real e onírico – cai em um didatismo desnecessário.

Ainda assim, o filme tem muitos méritos e se pudermos apresentar o nosso veredito sobre o Nicão, devemos dizer que esse é o Nicolas Cage que queremos ver! Ele abraça outros “losers” como o já citado professor Larry Gopnik (Michael Stuhlberg), o escritor fracassado de Sideways (2004) Miles Raymond, interpretado por Paul Giamatti, e o roteirista Charlie Kaufman do filme Adaptação (2002) interpretado por Nicolas Cage...

Opa, voltamos a ele outra vez.

Cotação: ☕☕☕

* Confira o projeto Bem-vindo ao Código Cage

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Visions of ecstasy


Nunsploitation 
✝💋

Visions of ecstasy, 1989. De Nigel Wingrove

Embora não chegue a ser experimental, Visions of ecstasy se fundamenta na leitura das fusões entre o sagrado e o profano a partir de elementos da iconologia católica.

Abordando as visões erótico-religiosas de Santa Tereza de Ávila, o curta-metragem (18 min.) explora os níveis de repressão sexual do catolicismo tais como a iconografia barroca e as sisudas vestimentas das freiras.

A vulgaridade das produções eróticas amadoras se dilui em um plano de claro-escuro onde rastros de sangue são a preliminar para a exibição de um altar no qual uma mulher com hábito de freira performa o sexo fetichista com outra religiosa e com o nazareno pregado à cruz.

Os apetrechos litúrgicos são transformados em símbolos fálicos tais como o prego que trespassa a palma da mão feminina e a ingestão de fluidos (paralelo entre vinho e sêmen). Outros elementos da cultura religiosa também são explorados em sua polissemia semântica. Quer dizer, a intencionalidade do filme passa longe de qualquer apelo ao obsceno ou pornográfico, pelo contrário, as sugestões e as sutilezas dominam a projeção.

Despudoramente provocativo, Visions of ecstasy foi banido da Inglaterra sob a acusação de blasfêmia. Apresenta-se, por isso mesmo, como referência do nunsploitation em seu desiderato de explorar os intricados não ditos do catolicismo sob uma ótica do desejo masculino.

Cotação: ☕☕☕

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Willy's Wonderland: parque maldito



Código Cage 💫💫💫

Willy's Wonderland, 2021. De Kevin Lewis 

São dois filmes: um ruim e um péssimo. No filme ruim os adolescentes ficam presos com animatrônicos assassinos: cultistas de um serial killer satanista que fizeram um ritual para entranhar suas almas nos robozinhos. Desde então buscam por vítimas.

No filme péssimo um homem de meia idade com cara de poucos amigos passa uma noite socando os robôs. Ele não fala nada. Sim, Cage passa o filme todo sem dizer uma palavra. Não sabemos nada sobre a misteriosa figura, exceto o fato de que ele tem um carrão, uma jaqueta cool, um gosto duvidoso por energéticos e disposição de sobra.

Esses dois filmes se encontram na intersecção dos corredores e salões do restaurante familiar (pero demoníaco) Willy's Wonderland. Jovens fogem das máquinas enquanto as máquinas fogem de Cage (digo, do zelador).

Nicolas Cage, ou Nicão para os entendidos, deve ter assinado um contrato no qual se dispôs a fazer uma única expressão. A ideia de minimalismo na atuação realça suas saracoteadas silenciosas, no máximo um ruído.

Sem atuação, sem coesão, sem sentido algum: um retorno a Ed Wood.

Esse é o filme de Nicão que temos que assistir para entender até onde ele está disposto a ir. Cage entrega o mínimo necessário. Mas em um dos poucos momentos no qual a atuação se torna fluida uma dancinha acontece diante da máquina de fliperama.

A persona do ator quer vir à tona. Seria um canastrão se tivesse a presunção e as veleidades de tal, mas não. Ali é atuação em estado puro. “Dai-me o mínimo que eu darei o mínimo”.

Se o conjunto da obra não convence, a culpa não é dele. Ele é um apêndice que nem deveria estar ali. Seria mais um filme de terror se o faxineiro não tivesse decidido entrar chutando a porta para matar os animatrônicos.

Com ele ruim, sem ele péssimo.

Veredicto: bananeira dá banana, laranjeira dá laranja e Cage dá show.

Mas alguns shows são constrangedores.

Cotação:

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Velozes e Mortais


Crítica a jato✈

Velozes e Mortais (Highwaymen), 2003. EUA. De Robert Harmom

Antes de criticar o filme tenho que criticar a mim mesmo. Estava na locadora e o rapaz me sugeriu Velozes e mortais. Eu perguntei se era bom e ele na cara lavada disse que sim. Eu sabia que ele estava me enganando, mas porque sempre me deixo ser enganado? O filme é uma história idiota (psicopata que usa um carro para matar pessoas) cheio de clichês e furos no roteiro.


Vou citar só alguns exemplos, pois não quero perder mais tempo com essa lástima...


1) Filme de carros envenenados (que conceito interessante!)


2) O relacionamento entre os protagonistas é totalmente forçado. Há um momento em que o personagem principal se vira para deixar a "mocinha" se trocar (outro clichê)!


3) O filme é uma história de vingança que, como já foi assinalado por diversos críticos, marca o cinema americano pós 11 de Setembro.


4) Só para constar, o personagem principal força a moça a acompanhá-lo, o que é rapto. Mas ela aceita ser subjugada e troca olhares sugestivos com seu protetor...

Que lixo!

Cotação: ☕

Pós-escrito: essa foi uma das primeiras críticas de uma versão anterior desse blog. Muita ingenuidade esperar algo de bom desse filme. O marketing se baseava no ator James Caviezel, que havia interpretado A Paixão de Cristo. Aproveitando-se, também, do então lançamento de Velozes e Furiosos. De um lado, Jesus, do outro, carrões envenenados. Bons tempos.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Bem-vindos ao Código Cage


Um dos piores filmes que já vi em minha vida – Willy's Wonderland: Parque Maldito – caiu como uma provocação, um convite para desvendar o código Cage. Na série Community, quinta temporada, há um episódio no qual discute-se a qualidade da atuação de Cage: gênio ou canastrão?

Tendo em vista a quantidade de filmes dos quais ele participou nos últimos anos, a proposta aqui esboçada é fazer uma análise in loco do protagonismo de Nicolas Cage. Uma das lendas urbanas, alimentada por ele próprio, ao que parece, seria que a crise da bolha imobiliária de 2008 o endividou. Desde então ele trabalha para pagar os boletos.

Verdadeira ou não, essa historieta lança luz a uma questão interessante: é possível proletarizar o estrelato hollywoodiano? Atores proletários existem, mas nos referimos aqui às “grandes estrelas”. E mais, o que teremos de Cage ao assistir todos os seus filmes?

E o mais importante: tal tarefa será divertida?

Bem-vindos ao Código Cage, pois a cinefilia também se alimenta de bizantinices.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Denominador comum: é o hábito que faz as monjas.

 

Nunsploitation ✝💋

A freira (The Num), 2018. De Corin Hard.

Benedetta, 2021. De Paul Verhoeven

As freiras alguma vez já convenceram alguém? O convento feminino é um lugar muito instigante para se estar. Várias mulheres encalacradas, sexualmente reprimidas e sem muita coisa para fazer além dos regalos domésticos e litúrgicos.

Umas freirinhas bem sisudas, dirão alguns ingênuos. Garotas da pesada, insinuarão os cínicos de plantão. Boccacio já menciona essas meninas em pavorosa para dormir com um jardineiro em Decameron (séc. XIV).

A tensão constituída entre os diversos imaginários acerca da mulher (Eva é Evil) é alimentada pelo mistério concernente às clausuras. Assim, ao longo da história, não é incomum encontrar poemas eróticos atribuídos a alguma soror. Uma importante referência da literatura libertina é o livro Tereza Filósofa (1748) que trata de uma religiosa em (de)formação.



(livrinhos sobre freirinhas)

“Freiras gradeiras” era uma expressão dos séculos XVII e XVIII acerca do hábito das religiosas em empoleirar nas grades dos conventos para conseguir um intercurso sexual com um audaz amante. A arquitetura monástica objetivava criar barreiras para preservar o questionável decoro dessas esposinhas de Xristós.

O subgênero cinematográfico nunsploitation veio a serviço de alimentar a imaginação acerca da vida secreta das freiras. Filmes apelativos, porém eficazes para explicitar os não ditos que as produções “sérias” raramente abordavam. Tiveram seu auge na década de 1970, mas podemos encontrar um exemplar mais refinado em Maus hábitos (1983) de Almodóvar.

Por isso, um filme como A Freira (Corin Hardy, 2018) peca pelo convencionalismo: irmãs religiosas em luta contra mais um assecla do diabo no pós-Segunda Guerra. O maligno se manifesta em um ambiente isolado, colocando as irmãs na obrigação de tentarem represar o capetão. No filme ele se manifesta como uma figura freirática que aterroriza com uma expressão cadavérica. Não há muito lugar para a sedução. É a luta do bem contra o mal no qual o bem leva uma surra.

Uma noviça com visões de Maria é a engrenagem necessária para fechar a passagem para o inferno. E esse processo se dá justamente pela repressão da sexualidade e individualidade. É muito trabalho para achincalhar a vida das freiras.

Já em Benedetta (Paul Verhoeven, 2021) temos a história de uma irmã do convento Teatino que é tocada por imagens de Jesus enquanto se envolve de forma carnal com uma outra noviça. Aqui temos a inspiração do velho Diabão (não Lúcifer ou seus asseclas, mas o Dr. Freud) nos brindando com os lugares comum de repressão sexual e loucura.

O desenvolvimento da narrativa nos leva a entender que a personagem que dá nome ao filme é uma mulher torturada pela potência do desejo e pela mística do divino. O canal para sua sexualidade são as visões religiosas e é com o sexo que ele obtém a transcendência.

A Freira é um filme que se fragiliza muito em função da monotonia dos personagens. A própria criatura a ser derrotada não parece muito convincente. Um diabo que se transformou em freira e que fica de um ponto ao procurando uma rota de saída para o mundo profano.

Benedetta, por sua vez, não consegue trazer o dilema das freiras para um plano histórico real. Sem querer enumerar os anacronismos, tudo fica dependente da pulsão sexual não realizada. A jovem religiosa fica perdida entre o engodo e o autoengano. Suas estripulias, de fato, são mais mortais do que as travessuras do diabo vestido de diabinha, digo de freirinha.

Em ambas as películas fica a dúvida: qual é a força dessas meninas para prover resistência ao pecado? Esboçam uma certa relutância ao mal, e na cena seguinte já se entregam aos prazeres da perdição. De fato, não há como conferir horror ou tragédia a mocinhas que caem tão rápido.

É até melancólico ver como as “noivas de Xristós” aparecem como sujeitos definidos exclusivamente pela relação com a ordem religiosa – explicitado no colocar e retirar a vestimenta. Por fim, o que temos é a sugestão de que o horizonte de heresia é somente o recalque ao sexo. Nem é preciso enunciar alguma visão do mundo realmente contestadora, pois no fim a ordem deve prevalecer.

Assim, seria preciso ir ao encontro do nunsploitation para verificar qual é o limiar anárquico desse projeto que tem tudo para ser apenas mais uma tirada fetichista.