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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Denominador comum: angústias circenses


Luzes da Ribalta (Limelight), 1952. De Charles Chaplin

Noites de circo (Sawdust and Tinsel), 1953. De Ingmar Bergman

Denominador comum: angústias circenses

No cinema, sem dúvida, é um tropo constantemente revisitado as dores e as desventuras dos artistas circenses que na responsabilidade de entreter a plateia se veem obrigados a secundarizar suas próprias angústias. Temos aqui duas grandes clivagens do tema, o enquadramento clássico de Charles Chaplin (direção e atuação) sob o envelhecimento do palhaço e a expressionista história de Bergman (direção) sobre os conflitos entre o diretor de um circo e sua esposa.

Assistir esses dois filmes na sequência é um experimento de história do cinema na medida em que vemos temáticas parecidas adotadas em distintos planos e perspectivas. Cada um desses filmes revela decisões profundamente autorais, de um lado um Chaplin já consagrado e no final da carreira faz uma reflexão sobre a necessidade de renovação do humor. Do outro lado, um iniciante Bergman avança sobre os conflitos existenciais tais como a solidão e a tristeza dos seres humanos.

Em que pese o esquema do cinema de estúdio hollywoodiano com soluções características da comédia dramática, Luzes da Ribalta tem muita força. Tremendamente autorreflexivo, inclusive com a participação do ator Buster Keaton, o maior rival de Charles Chaplin. Ao contracenar juntos, eles colocam uma pedra de cal no cinema mudo, isso porque em Luzes da Ribalta há filmes dentro de um filme. Mas os diálogos – tão pouco naturais – explicitam as marcas do gênero.

Em Noites de circo a câmera aprofunda o âmago do mundo circense. Arte e pobreza se entrelaçam ao mostrar uma situação de constante precariedade. A moralidade questionável dos artistas circenses guarda a ambivalência entre libertar e aprisionar. O claro e o escuro se contrastam o tempo todo, a hierarquia entre o teatro e o circo compõe um cruel dueto. O desamparo de todos é visível porque o circo tende à marginalidade. O eixo é a impossibilidade de fugir da humilhação pessoal e social.

Eis a grande diferença entre os dois filmes. Chaplin entrevê o fim com dignidade, ainda que aspectos da decadência e do passadismo sejam inevitáveis, ao passo que para Bergman não há escapatória do ciclo de humilhação. O horizonte do estrelato como atribuidor de sentidos inexiste em Noites de circo – luta-se, ali, contra a fome e a pobreza. A fome também é mencionada em Luzes da Ribalta, porém de forma ligeira. Agora no trabalho de Bergman ela é uma parceira constante dos trabalhadores.

Longe de ser um produto de perfumaria, Luzes da Ribalta combina contundência e sutileza em sua denúncia da pobreza urbana. Mas não se assemelha ao destruidor arco de Noites circenses, porque ali temos artistas tristes e famélicos. Ao fim e ao cabo ambas as películas convergem para a ideia de que o show precisa continuar – não importam quais sejam os obstáculos.

Cavalero, o palhaço de Chalpin (interpretado por ele próprio) e Frost, o palhaço de Bergman são notoriamente diferentes: um é o Trump (tipo de palhaço americano) e o outro é Branco e Triste. Cada um, a seu modo, oferece contributos para abordarmos o quão importante foi a mítica circense na maturação do cinema.

Talvez seja o caso para recuperar as fontes teatrais populares para uma contraposição ao infantilismo então prevalecente que tem inviabilizado o uso do cinema como um momento reflexivo.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Bem-vindos ao Código Cage


Um dos piores filmes que já vi em minha vida – Willy's Wonderland: Parque Maldito – caiu como uma provocação, um convite para desvendar o código Cage. Na série Community, quinta temporada, há um episódio no qual discute-se a qualidade da atuação de Cage: gênio ou canastrão?

Tendo em vista a quantidade de filmes dos quais ele participou nos últimos anos, a proposta aqui esboçada é fazer uma análise in loco do protagonismo de Nicolas Cage. Uma das lendas urbanas, alimentada por ele próprio, ao que parece, seria que a crise da bolha imobiliária de 2008 o endividou. Desde então ele trabalha para pagar os boletos.

Verdadeira ou não, essa historieta lança luz a uma questão interessante: é possível proletarizar o estrelato hollywoodiano? Atores proletários existem, mas nos referimos aqui às “grandes estrelas”. E mais, o que teremos de Cage ao assistir todos os seus filmes?

E o mais importante: tal tarefa será divertida?

Bem-vindos ao Código Cage, pois a cinefilia também se alimenta de bizantinices.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Denominador comum: é o hábito que faz as monjas.

 

Nunsploitation ✝💋

A freira (The Num), 2018. De Corin Hard.

Benedetta, 2021. De Paul Verhoeven

As freiras alguma vez já convenceram alguém? O convento feminino é um lugar muito instigante para se estar. Várias mulheres encalacradas, sexualmente reprimidas e sem muita coisa para fazer além dos regalos domésticos e litúrgicos.

Umas freirinhas bem sisudas, dirão alguns ingênuos. Garotas da pesada, insinuarão os cínicos de plantão. Boccacio já menciona essas meninas em pavorosa para dormir com um jardineiro em Decameron (séc. XIV).

A tensão constituída entre os diversos imaginários acerca da mulher (Eva é Evil) é alimentada pelo mistério concernente às clausuras. Assim, ao longo da história, não é incomum encontrar poemas eróticos atribuídos a alguma soror. Uma importante referência da literatura libertina é o livro Tereza Filósofa (1748) que trata de uma religiosa em (de)formação.



(livrinhos sobre freirinhas)

“Freiras gradeiras” era uma expressão dos séculos XVII e XVIII acerca do hábito das religiosas em empoleirar nas grades dos conventos para conseguir um intercurso sexual com um audaz amante. A arquitetura monástica objetivava criar barreiras para preservar o questionável decoro dessas esposinhas de Xristós.

O subgênero cinematográfico nunsploitation veio a serviço de alimentar a imaginação acerca da vida secreta das freiras. Filmes apelativos, porém eficazes para explicitar os não ditos que as produções “sérias” raramente abordavam. Tiveram seu auge na década de 1970, mas podemos encontrar um exemplar mais refinado em Maus hábitos (1983) de Almodóvar.

Por isso, um filme como A Freira (Corin Hardy, 2018) peca pelo convencionalismo: irmãs religiosas em luta contra mais um assecla do diabo no pós-Segunda Guerra. O maligno se manifesta em um ambiente isolado, colocando as irmãs na obrigação de tentarem represar o capetão. No filme ele se manifesta como uma figura freirática que aterroriza com uma expressão cadavérica. Não há muito lugar para a sedução. É a luta do bem contra o mal no qual o bem leva uma surra.

Uma noviça com visões de Maria é a engrenagem necessária para fechar a passagem para o inferno. E esse processo se dá justamente pela repressão da sexualidade e individualidade. É muito trabalho para achincalhar a vida das freiras.

Já em Benedetta (Paul Verhoeven, 2021) temos a história de uma irmã do convento Teatino que é tocada por imagens de Jesus enquanto se envolve de forma carnal com uma outra noviça. Aqui temos a inspiração do velho Diabão (não Lúcifer ou seus asseclas, mas o Dr. Freud) nos brindando com os lugares comum de repressão sexual e loucura.

O desenvolvimento da narrativa nos leva a entender que a personagem que dá nome ao filme é uma mulher torturada pela potência do desejo e pela mística do divino. O canal para sua sexualidade são as visões religiosas e é com o sexo que ele obtém a transcendência.

A Freira é um filme que se fragiliza muito em função da monotonia dos personagens. A própria criatura a ser derrotada não parece muito convincente. Um diabo que se transformou em freira e que fica de um ponto ao procurando uma rota de saída para o mundo profano.

Benedetta, por sua vez, não consegue trazer o dilema das freiras para um plano histórico real. Sem querer enumerar os anacronismos, tudo fica dependente da pulsão sexual não realizada. A jovem religiosa fica perdida entre o engodo e o autoengano. Suas estripulias, de fato, são mais mortais do que as travessuras do diabo vestido de diabinha, digo de freirinha.

Em ambas as películas fica a dúvida: qual é a força dessas meninas para prover resistência ao pecado? Esboçam uma certa relutância ao mal, e na cena seguinte já se entregam aos prazeres da perdição. De fato, não há como conferir horror ou tragédia a mocinhas que caem tão rápido.

É até melancólico ver como as “noivas de Xristós” aparecem como sujeitos definidos exclusivamente pela relação com a ordem religiosa – explicitado no colocar e retirar a vestimenta. Por fim, o que temos é a sugestão de que o horizonte de heresia é somente o recalque ao sexo. Nem é preciso enunciar alguma visão do mundo realmente contestadora, pois no fim a ordem deve prevalecer.

Assim, seria preciso ir ao encontro do nunsploitation para verificar qual é o limiar anárquico desse projeto que tem tudo para ser apenas mais uma tirada fetichista.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Eu me importo


Eu me importo
(I care a lot). De J Blakson, 2020.

https://www.netflix.com/browse?jbv=81350429

Acabei de assistir “Eu me importo” estreia do Netflix. O filme é curioso e estabelece o espírito anti-masculino que atravessa a cultura contemporânea. As protagonistas consistem em casal de lésbicas inescrupulosas que lesam idosos ao se tornarem tutoras legais para se apropriarem dos bens das vítimas.

O primeiro arco do filme caracteriza as personagens como cínicas, frias e cruéis, conquistando a antipatia imediata do espectador. Elas sentem um prazer especial em humilhar os homens, entendimento verbalizado várias vezes ao longo da projeção. Contando com uma rede de outras mulheres elas aplicam golpes nos limites da lei, conseguindo, desse modo, amealhar fortuna sob os aplausos de um juiz bobalhão. O modus operandi das vigaristas despertam fácil antipatia ao telespectador (sobretudo para o público brasileiro que não se sente tão bem em descartar os velhinhos). De qualquer forma, o clímax deste arco é a cena de sexo para comemorar a rapina de uma nova vítima.

A intenção é explícita: são mulheres fortes (malvadas) que odeiam os homens (idiotas) e se aproveitam dos idosos (porque a sociedade é uma eterna competição de explorados contra exploradores).

Bem, mas veja aí... elas são as mocinhas.

Sim. Porque se existe mulher ruim, com certeza há homens piores.

Após um golpe bem sucedido elas atraem a atenção da máfia russa, cujo maligno e temido e monstruoso e assustador e, claro, fálico líder decide fazer a vida dessas gentis tranbiqueiras (que se amam) um inferno. Esse másculo (not) mafioso tem uma certa deficiência física que metaforicamente representa a castração do masculino pelo feminino. Caramba! Esses barbados, vamos percebendo ao longo dos arcos, são mais tétricos que as golpistas especializadas em extorquir idosos!

A partir do embate entre o mafioso e a golpista a estrutura narrativa vai absolvendo as moças. A ideia é justificar a agressividade feminina como escudo para um mundo controlado pelos homens. Mas pela força que elas demonstram tudo sai muito inverossímil. São lésbicas que não temem a morte,  a dor, a tortura, o ácido, o afogamento, o tiro, o chumbo, a lei, os homens, os fal... esquece. Não temem nada. Nothing!

Mulheres tão poderosas e decididas e inteligentes, mas cuja única forma de sucesso consiste justamente em explorar e abusar de pessoas frágeis.

Mas se ideia é a celebração da Strong Woman, posso garantir que o tiro sai pela culatra. Pois a mesquinharia e o arrivismo das nossas damas de ferro servem mais para denunciar o ultra-individualismo de um feminismo que elegeu os homens (e não a desigualdade) como inimigos.

A noção de humor ácido se esvai na celebração de uma sororidade (elas amam essa palavra!) cujos vínculos se dão apenas entre mulheres jovens e independentes que fazem do sexo e do dinheiro o vínculo de sociabilidade. As idosas, por exemplo, são atiradas à própria sorte e deixadas para morrer abandonadas.

É o “Female American Dream” vendido como empoderamento mas instrumentalizado como competição sem limites, fazendo uso dos subterfúgios legais a fim de criar pontos de falsa equidade para que moças sedutoras e sedentas por sexo (com mulheres) possam tomar do mundo o quinhão que a força e tenacidade delas merecem.

Em suma, não são heroínas ou anti-heroínas, são cowgirls disparando contra os novos nativos: os homens caras de trouxas...

*Cotação:* Fraco

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Netflix é anti-cinema


Netflix
trabalha muito bem contra o cinema. Seu catálogo de filmes é reduzido. A relevância das suas obras é baixa e a aposta em séries desproporcional. Lançamentos fracos e bem aquém do Telecine Play.

Tal serviço de Streaming se coaduna com a letargia do espectador comum, que tem preguiça de procurar filmes relevantes, optando por consumir o que estiver a menos de um clique de distância.

Estou cada vez mais convicto que as locadoras virtuais - nas quais se pagaria por filme - seriam opções melhores.

Eu preciso de 50 minutos de busca para encontrar uma opção razoável no Netflix. Vinte anos atrás era isso que eu precisava para ir e voltar da locadora do bairro com um lançamento e duas opções razoáveis.

domingo, 7 de abril de 2019

Infantilismo do cinema contemporâneo


O cinema atual é infantil, é ruim. Adultos afluem até as salas em busca de super-heróis acompanhando as sequências como garotos de doze anos colecionavam figurinhas em um álbum. Bem indicativo de um estado de espírito coletivo no qual destroiers voadores, equipes multiculturais (mas orquestradas por americanos puro-sangue) dão o tom da diversão pública e da cultura de massa.

Narrativas propositadamente incompletas elaboram sentimento de uma luta ad infinitum contra o mau. O desfecho é sempre jogado para a produção seguinte, um exercício para manter bilheterias em altas cifras. Os adultos seguem o jogo infantilmente com torcidas para a aparição do herói purpurinado da vez.

Há também uma obsessão com a adolescência. Trintões interpretando jovens secundaristas, a high school elevada à condição de microcosmo de toda uma sociedade e todo um modo de vida. As próprias dinâmicas dos adultos passam a ser lidas com os chavões das gatinhas e dos gatões: ênfase nas paqueras e nos dates, embates com os valentões, desinteresse por tudo que não seja ensimesmamento. Enfim, olhar para o umbigo como um paradigma de vida.

Narrativas comprometidas até a medula com valores liberais multiculturais – lacração para alguns, politicamente correto para outros –, e que produzem receituários e cotas de representação a fim de resguardar minorias políticas. Há um esforço considerável para destacar idiossincrasias particulares e considerá-las o mais belo produto do mundo moderno. Narrativas opressoras que elevam lutas de indivíduos contra estruturas opressoras. Causa um mal-estar o maniqueísmo vendido que toma conflitos realmente sérios pelo prisma da condenação moral ao anacronismo do patriarcado.

É infantil esse cinema, pois ele impõe uma noção ideológica de que o real existe para satisfação dos nossos desejos. Todos entraves, obstáculos, deslocamentos e desentendimentos transparecem como um mundo ser removido por metodologias pós-modernas. Não cabe reflexão, mas apenas engajamento tribal, por vezes, com nuances de seita.

Isso explica o fascínio pelos super-heróis já que a eles nada é vetado, seus poderes o elevam para além da vida ordinária. Isso explica o fascínio pela adolescência, pois estes são especialistas em negar imprudentemente os limites da realidade.

Circuitos comerciais ou alternativos, não importa, os filmes estão ruins.

Precisamos crescer e nos libertar dessa voga millenial.

domingo, 9 de abril de 2017

Café com Cinema versão 2017



Os tempos são outros, mas retorno. Há uma razão para isso e não é o tédio.

Apesar de ter perdido a cinefelia retorno porque sinto a vontade de escrever sobre a banalidade do cinema contemporâneo. O “empoderamento feminino” transformado em paradigma de Hollywood, o insistente multiculturalismo bem comportado, o desaparecimento da comédia como elogio ao absurdo e o apego aos heróis como os únicos agentes sociais possíveis.

Estou velho e dei para dormir nas salas de cinemas ou no sofá, diante da televisão conectada ao Netflix. Talvez não devesse insistir... Além disso, há uma garotada barulhenta a qual não deve ser dado o direito de comentar.

São muitos incômodos, bem sei. Mas só há uma maneira de enfrenta-los, com café e cinema. Estão avisados, já sabem o que esperar.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Denominador comum: a defesa da prole

Contatos de 4º grau (The Fourth Kind), 2009. EUA. De Olatunde Osunsanmi

A estrada (The Road), 2009. EUA. De John Hillcoat

Sempre me fascinou como as experiências fílmicas se articulam a partir da prática cinéfila, gerando sentidos antes insuspeitos. Em uma tarde assisto Contatos do 4º grau e A estrada. Dois filmes bem estruturados e que mereceriam comentários específicos, mas que agora os utilizo como uma proposta à reflexão de temática da paternidade.

Contatos do 4º grau aborda tal questão tangencialmente, uma psicóloga interessada em estudar uma “epidemia” de distúrbios do sono e pavor noturno em uma cidade do Alasca choca-se com a possibilidade de que pessoas estariam sendo abduzidas. Sua metodologia (hipnose) passa a ser questionada por autoridades locais, que a consideram culpada por uma série de sinistros acidentes envolvendo seus pacientes. O aprofundamento na pesquisa resulta no desaparecimento da própria filha, provavelmente seqüestrada por seres misteriosos.

A estrada
é um filme forte e impactante, com uma tonalidade tão pessimista que faz outros filmes apocalípticos parecerem um passeio no parque. O planeta terra está morrendo, não restam mais animais ou vegetais, tão somente troncos de árvores e gramíneas ressecadas e congeladas. Grande parte dos seres humanos pereceu, há uma minoria que anda errante a procura de migalhas da civilização caída. O canibalismo é a ameaça cotidiana. Nesse cenário sombrio (no qual o suicídio se converteu na mais sábia decisão) pai e filho tentam sair do interior americano em rumo ao mar, para depois alcançarem o sul.

Como recuperar a filha retirada do aconchego do lar e conduzida até uma nave por uma luz dourada, fria e paralisante? Como a mulher deve se posicionar para a defesa da criança já traumatizada por eventos anteriores?











[O homem e o fardo da força; a mulher e a absorção da paixão.]


Como proteger um garoto de um mundo no qual a solidariedade humana se sublimou e a perspectiva mais realista é a morte por fome ou frio, quando não o abate por outro ser humano? Poderá um homem ensinar ao filho os valores de uma civilização já inexistente? Como garantir a sobrevivência moral e física?

Dois desafios lançados, que receberão itinerários diferentes com eventuais possibilidades de redenção. No filme de Osunsanmi o que fica são os lugares já visitados da mulher acusada de insanidade e histeria. Parece prevalecer a crença de que a defesa materna se consiste em um jacto violento de amor, desprovida de racionalidade. A ação feminina carece de uma força para o enfrentamento às adversidades, o choro e o desfalecimento são as conseqüências esperadas de qualquer ação.

Visões sutis e implicitamente misóginas abundam a história do cinema americano e no que se refere ao universo familiar as mulheres sempre caem nas mesmas armadilhas. As autoridades as interpelam “estás louca?” e a resposta é um grito histérico “I want my daughter”. O embate poder masculino X instinto materno é fundamental, em Contatos do 4º grau transparece o desconforto do delegado perante os métodos da Dra. Tyler, esta vista constantemente como suspeita. Recusa à vida alienígena ou a percepção de uma inadequação entre as condições de mulher e cientista?

Tal filme é, sobretudo, um sensacionalista pseudo-documentário acerca da possibilidade de vida extraterrestre. Mas traz em seu bojo uma caricatura da mulher, mãe na busca incessante ao rebento subtraído.

Já no excelente trabalho de John Hillcoat, vemos outro caminho se constituir em torno da paternidade: racionalismo e virilidade. Não há lugar para prantos desmedidos, cabe ao masculino defender o filho e ensinar a lição sobre o gênero humano em épocas sombrias. Tudo dito em tom seco e melancólico, pois se questiona, em primeiro lugar, a própria perfectibilidade da natureza.

A destruição do mundo revelou a disposição dos homens e mulheres em se abnegarem de qualquer altruísmo, tudo em nome de uma sobrevivência visceral. No ocaso da Terra, não há nada de bom no homem que faria um deus sábio prolongar sua existência. Somente a inquebrantável força do amor paterno (sentimento heróico e quase bíblico) parece dar sentido ao autofágico mundo pós-hecatombe.

Dois filmes bastante diferenciados, mas quando inter-cruzados nos oferecem paralelos interessantes:

mulher – amor/incondicional – descontrole – histeria – fraqueza

homem – amor/obrigação – racionalidade – auto-controle – força

Embora a escolha desses dois filmes seja aleatória, não há como negar as relações de gênero existentes no cinema americano (tipicamente ilustrada nos dois exemplos). Vejo possíveis releituras e banalizações de estereótipos da psicanálise que se popularizaram em começos do século XX.

As duas sagas apontam para desfechos dramáticos, nos quais as rupturas nas vidas de uns significam a continuidade da existência de outros. O cinema americano parece obcecado em se perguntar sobre a viabilidade da família nuclear. Valores tradicionais em roupagens modernas. Que os desavisados não se enganem, a questão de fundo é se o mundo pode sobreviver fora de uma ordem patriarcal.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Denominador comum: Criador X Criatura

Capote(Capote), 2005. EUA. De Bennett Miller
Conceição – autor bom é autor morto, 2007. Brasil. De André Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro
Mais Estranho do que a Ficção (Stranger than Fiction), 2006. EUA. De Marc Foster

Em Conceição - autor bom é autor morto (2007), uma das pusilanimidades que assisti no Festival de Tiradentes de 2007, ficou patente o interesse dos aspirantes a diretores em discutir acerca da relação estabelecida entre o autor e o personagem. De que modo a criação literária ou cinematográfica afeta aquele que a originou?

Se formos pensar seriamente nessa matéria, teremos que reconhecer que, em alguns casos, escrever um romance ou um poema é um processo interno de modificação e confrontação – um embate psicológico e íntimo. É reconhecido que, ter redigido A sangue frio, afetou decisiva e sombriamente a personalidade de Truman Capote.

No filme Capote, de Bennett Miller, as relações estabelecidas entre esse escritor e os assassinos do massacre de Kansas City salientam o confronto existente entre o narrador e a figura envolta na narrativa. Nesse caso, Truman Capote procurou os criminosos, estabelecendo um contato com eles, na tentativa de compreender os elementos que os condicionaram a realizarem tal chacina. Verifica-se, de um lado, a ação do esteta/documentarista ao criar uma composição, na qual são suas próprias explicações que emergem, estruturando os eventos, uma forma de ter o controle do real vivido. Do outro lado, vemos o interesse dos envolvidos em fazer suas próprias interpretações sobressaírem nos escritos de um terceiro. A derradeira estratégia para a sobrevivência, perpetuação da memória pela canção de um aedos.

Com efeito, em Capote, os personagens, retratados como reais, não podem escapar das grades que lhes foram impostas. Já em Conceição, os personagens, existentes em uma realidade fílmica (como o galante ator que foge das telas do cinema em A Rosa Púrpura do Cairo) são capazes de promover uma insurreição, desprendendo-se do seu universo de origem e vindo confrontar diretamente seus inventores. Trata-se, de forma pouco elaborada, é verdade, da vingança da criatura (inconsequentemente criada) contra seu criador. Porém, inexiste uma possibilidade de diálogo, a metalinguagem é feita em mão única, um exercício de reflexão de estudantes de cinema, não se ramificando em uma trama adulta, na qual seria necessário um maior conhecimento sobre a razão de ser de cada ficção.

Sem dúvida que, em Conceição, a estrutura narrativa falha na tentativa de construir uma trama inteligível ao telespectador, capaz de mesclar a auto-citação e auto-referenciação com o desenvolvimento de um enredo coerente e significante.

Longe dessas debilidades também se encontra Mais Estranho do que a Ficção, na qual um homem comum se descobre personagem, envolto numa trama, parcialmente orientado por uma narradora onisciente. Assim, ele também se encontra preso e indefeso, já que não detém as informações suficientes para salvaguardar sua existência. A qualquer momento a narrativa pode ser encerrada, com a morte do objeto da narração.

Vemos um duplo confronto, em primeiro lugar há que se descobrir em qual narrativa Hardold, que se transformou em uma figura dramática, está inserido. Em seguida, criar caminhos para interação e negociação com a voz da narrativa, poderosa, colocada em uma posição de deus.

Nesse caso, vemos o confronto do homem comum com o universo hegemônico – mesmo que esse universo seja literário. Um simples auditor da receita federal pode ter sido alçado à categoria de herói, se dramático ou cômico ainda não se sabe.

Enfim, nos três casos vemos uma imbricação entre as esferas dos fictícios e a dos demiurgos. Situação mais evidente em Conceição, na qual personagens são paridos para serem abandonados a própria sorte. Por isso mesmo, eles retornam aos seus “pais”, questionando a razão da existência. Uma ação que não seria muito diferente se o homem tivesse a oportunidade de indagar seu criador.

Em Capote, os delinqüentes pertencem ao mesmo nível de realidade do escritor, mas ainda assim não deixam de ser personagens, querendo, de idêntica maneira, que Truman Capote interfira sobre suas vidas, ao menos de forma literária – já que não querem ser eternizados como assassinos.

Em Mais Estranho do que a Ficção, não há distinção entre o personagem, aprisionado em uma trama literária, e sua autora. Há a perspectiva de que eles acabem se encontrando, podendo um interferir na esfera do outro – ainda que as relações de força não sejam iguais. Mas, de qualquer maneira, o embate é franco e sincero.

O que toda essa discussão traz a tona é que os personagens têm vida própria, não são escravos dos seus criadores. Cada unidade tem sua carga dramática, suas especificidade, seria uma trapaça incorrer a qualquer elemento que pudesse contrariar as premissas básicas, sob o risco da incoerência e da inverossimilhança. Conan Doyle não conseguiu matar Sherolck Holmes, isso já nos diz muita coisa. O escritor jaz, mas seu personagem continua vivo, persistindo de diversas maneiras.

De fato, para um escritor, a prova maior de sua perenidade é ser convertido em personagem. Shakespeare virou personagem da história da literatura inglesa, Lima Barreto faz parte da tragédia dos mulatos cariocas, vítimas do preconceito e desdém do governo brasileiro - algo tematizado em seus próprios escritos.

A realização do ficcional pressupõe que o autor pertença aos dois mundos, portanto ele pode ser vítima dos seus escritos. Seus personagens se convertem em algozes, às vezes alcançando um sucesso inaudito e obscurecendo seus criadores.

No cinema isso também é verdade, quando alguém se põe a dirigir um filme em que ele mesmo atua, a sua pretensão é assegurar um controle total sobre os dois universos. Ser pai e ser filho de si mesmo. Uma façanha que, a despeito de todo avanço biotecnológico, só pode ser atingida por intermédio da arte. O aedos também tem sua parcela de divindade.

Cotação:

Capote: Bom
Conceição: Fraco
Mais estranho que a ficção: Regular

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Denominador comum: o medo nos extremos

O chamado (The Ring), 2002. De Gore Verbinski
Madrugada dos mortos (Dawn of the Dead), 2004. De Zack Snyder

Os meus imaginários leitores devem estar pensando no quanto eu estou desatualizado. Um filme de 2002 e outro de 2004. O que eu posso argumentar é que nesses últimos anos esses dois foram os melhores filmes de terror/horror e suspense que eu assisti.

Mas, são dois filmes completamente diferentes. O Chamado é suspense e terror. É a história sobre uma fita de vídeo que trará, em sete dias, a morte àquele que assisti-la. As vítimas só percebem o que ocorrem no momento em que se confrontam com, o até então, desconhecido. Nesse meio termo as pessoas recebem indícios, mas para a maior parte delas essas pistas são insuficientes para se salvarem.

O assustador desse filme é a solidão da morte e o absurdo da situação. O mundo continua o mesmo, mas a pessoa que viu o filme começa a ter contato com uma misteriosa garota chamada Samara. Em uma cena, vemos a personagem principal, protagonizada por Naomi Watts, debruçada em seu apartamento ela olha o prédio ao lado. Ela está assustada, mas as pessoas nas outras residências vivem normalmente, sem saber que sua vizinha receberá a sinistra visita da garotinha que nunca dorme. Assustador porque absurdo. É o medo da multidão, porque nela você é anônimo, portanto seu sofrimento passa despercebido.

Em Madrugada dos mortos a situação é inversa, o medo não é anônimo, é coletivo. O dia amanhece e algumas pessoas simplesmente se tornaram zumbis. A civilização desmorona, as pessoas correm para se salvar, uns matam os outros, acabou-se a família, os vizinhos. Mais assustador, acabou-se o Estado. As forças policiais nada mais podem fazer, os exércitos são inúteis. Escolas, ruas, igrejas, bairros, tudo abandonado. O que resta é se esconder dos canibais.

Um grupo de pessoas tenta sobreviver em um Shopping Center, sob a ameaça constante da invasão zumbi. Além desses náufragos da civilização nada mais vive (em sua conotação antiga). Esse é um filme de horror, mais do que medo, o que ele causa é desolação, não há mais conforto em lugar algum. O assustador do filme é justamente a coletividade do caos, todos compartilham do mesmo pânico. É o medo da multidão, porque nela você é visto por todos, portanto você é vulnerável, qualquer um pode te ferir.

O que nos assusta mais? Uma morte anônima em frente a sua televisão ou morrer junto com a civilização? O fantasma da garotinha te machuca individualmente, mas a horda de zumbis ataca todos ao seu redor. Pior, as vezes as pessoas que você mais ama se tornam um deles.

Dois extremos, mas uma certeza permanece, em ambas as situações o medo te consumirá. Morre-se o indivíduo ou morre-se o coletivo, mas o padecimento é só seu. Em um determinado momento qualquer preocupação com o outro desaparece, você pensa em salvar só sua própria vida. Não importa qual das duas situações, mas, a morte nos isola, nos arrebata na segurança ou na incerteza, da individualidade ou do coletivo.

Cotação:

Chamado: Bom
Madrugada dos Mortos: Ótimo

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Editorial

O cinema como um exercício de consumismo

Shopping de luxo. Meia noite, a fila está cheia. Mais do que cheia, transbordante. O cheiro de pipoca está espalhado por todo o ambiente. O público é heterogêneo, mas muito farofeiro e afeito a balbúrdia. Famílias inteiras, grupos de amigos, casais de namorados. Não há espaço para o telespectador solitário. É noite de estréia da última parte de Piratas do Caribe.

É muito barulho, algumas pessoas estão até vestidas a rigor, com espadas e escudos. Os adolescentes realmente parecem uma falange. 14 horas. Cinema de shopping, região metropolitana de B.H. Lá fora, sol a pino, lá dentro, desolação infinita. Há uma confusão, a cada minuto chegam novos espectadores, dispostos a furar fila e a engrossar no coro dos histéricos. O filme é 300.

Público diversificado. É num dos shoppings mais centrais de Belo Horizonte. 17 horas. Há muitos casais de namorados. Não é dia de estréia, mas é a primeira semana de exibição de Harry Potter 5. O falatório é estardalhoso. De um modo geral, estão mais preocupados com a pipoca, a projeção fica em segundo plano.

Duas semanas depois, as salas estarão vazias. O interesse cessado. Só então que os cinéfilos começarão, ainda que timidamente, a ousar penetrar nesse templo do provisório.

O que parece evidente é que o circuito comercial de cinema vive de modismo em modismo. Mantendo-se firme graças a cada nova temporada de blockbusters. Depois que os filmes vão para as locadoras ? ou mesmo passando as semanas iniciais de suas estréias ? as pessoas se esquecerão completamente das filas que enfrentaram e do desespero que expressaram para assistir a banalidade da vez.

Esse é o público geral, que escolhe os filmes movido pela campanha de marketing, pelo orçamento da produção, pela promessa de tiros e explosões ou então do exibicionismo de corpinhos sarados.

A busca de uma qualidade cinematográfica, salvo a excelência da produção, é ignorada. Não se escolhe um filme pelo seu diretor, pelos seus prêmios internacionais (uma forma de dialogar com a crítica), pela sua locação (só se vê filmes americanos) ou pela temática abordada.

O filme é, para o expectador comum, nada mais que uma prática de consumo. Uma oportunidade para botar uma roupinha bonitinha, gastar dinheiro com a pipoca, com a bilheteria e com a coca-cola.

No cinema se dão beijinhos. No cinema se dá bronca nos filhinhos. No cinema se atende o celular para resolver aquela pendência do trabalho.

O circuito comercial de cinema expressa, de forma admirável, a mediocridade do mundo contemporâneo, as imbricações espúrias entre arte e mercado. Não que os cinemas ?alternativos? também não tenham seus problemas. Mas nestes há pelo menos o esforço por uma fruição cinematográfica diferenciada.

Cinema medíocre exibido em ambientes medíocres para público medíocre. É um sistema bem consolidado. O espectador diferenciado tem que levantar a cabeça e respirar fundo, sob o risco de se afogar nesse lamaçal de nulidades.

É a pós-modernidade? Não, é só a mediocridade mesmo.