A chegada do outono. Aki tachinu. De Mikio Naruse, 1960.
Mikio
Naruse (1906–1969) é um dos grandes nomes do cinema clássico japonês, cuja
filmografia atravessa diferentes momentos da história do Japão contemporâneo. Em
A chegada do outono, acompanhamos o processo de amadurecimento de Hideo,
uma criança que, após ser abandonada pela mãe – que foge com um cliente da
pousada onde trabalhava –, passa a viver com os tios em Tóquio.
O
filme articula-se ao drama familiar, temática recorrente na obra de Naruse, mas
também se aproxima de reflexões sobre a infância – uma preocupação presente
tanto no Cinema clássico quanto na Nouvelle Vague japonesa. A narrativa
busca representar como um menino de dez anos reelabora suas experiências ao se
deslocar do interior para a capital. Hideo carrega o peso do estigma social da
pobreza e da rejeição materna, sentindo-se um fardo para os tios. Apesar das
dificuldades, tenta se adaptar à nova vida, desenvolvendo uma amizade com
Junko, filha da proprietária da pensão onde sua mãe trabalhava.
O
contexto social retratado no filme é o de um Japão em transformação, quase duas
décadas após o fim da Segunda Guerra. A cidade de Tóquio surge como um espaço
de descobertas, mas ainda atravessado por fortes moralismos. A família de Hideo
reflete os conflitos geracionais de uma sociedade em mudança: seus primos mais
velhos buscam se afastar do controle paterno, o que intensifica ainda mais as
tensões dentro da casa.
O
filme também revela as contradições de uma sociedade que se moderniza, mas
preserva estruturas tradicionais. A figura da mulher fora dos modelos vigentes
aparece como uma espécie de ameaça silenciosa às convenções. Prova disso é a
situação da mãe de Junko, que vive como “segunda esposa”: uma relação
extraconjugal marginalizada, mas que era mais comum na realidade do que os
discursos conservadores admitiam.
A
fantasia de Junko de que Hideo se tornasse seu irmão reforça o seu próprio
sentimento de abandono da figura paterna. A amizade dos dois é o ponto alto do
filme revelando o a dialética entre o desabrochar e o permanecer. Eles percorrem
Tóquio descobrindo-se como amigos e como rejeitados. A cidade aparece como um substituto
para as lacunas familiares.
A
fotografia em preto e branco, marcada pela luminosidade dos dias de verão,
privilegia espaços abertos, planos gerais e uma notável profundidade de campo.
Embora trate de uma temática melancólica, o filme capta com sensibilidade o
otimismo resiliente da infância, sem deixar de lado os momentos de tristeza e
desconforto que marcam a trajetória de Hideo. O uso do cinemascope é
particularmente eficaz: ao mesmo tempo em que estabelece uma certa distância
confortável para o espectador, também permite uma imersão empática na vivência
do garoto, reforçando sua condição de pequeno dentro da imensidão urbana.
Ao
longo do filme, Hideo se empenha em capturar um besouro-rinoceronte para
presentear Junko – um gesto que carrega o desejo de manter viva sua identidade
e seus vínculos com o mundo rural de onde veio. No entanto, seus esforços se
perdem no ritmo incessante da vida na cidade, produzindo um sentimento agridoce
que perpassa toda a narrativa.
Assim,
A chegada do outono não é apenas um retrato da infância, mas também uma
delicada crônica sobre os afetos, as rupturas familiares e as contradições de
um Japão em processo de transformação.
Cotação: ☕☕☕☕☕
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