terça-feira, 16 de setembro de 2008

Revelações


Revelações (The Human Stain), 2003. EUA. De Robert Benton

Pouca coisa pode ser dita sobre o filme, sob o risco de revelar a trama ao leitor. A narrativa tem um encadeamento não linear, permitindo que acompanhemos o passado e presente do reitor Coleman (Anthony Hopkins), demitido do seu cargo devido a uma acusação de racismo, alegada por dois estudantes.

Coleman acaba por se envolver com Faunia (Nicole Kidman), uma mulher bem mais jovem, faxineira da instituição na qual ele trabalhava. A relação com essa mulher e a amizade desenvolvida com um recluso escritor será o ato final de sua vida. A percepção de que seu fim não está muito distante (afinal ele já é um velho homem) o leva de volta ao passado, lugar em que está depositado seu segredo nunca revelado, uma mancha em sua memória.

O passado e o presente têm panos de fundo muito distintos, o atual é marcado pela onda do politicamente correto, no qual uma única palavra pode ser descontextualizada e interpretada como racista. O outro é um momento de racismo institucionalizado, no qual havia dois modos de vida bem diferentes, dos negros e dos brancos. Porém Coleman não vive plenamente nem no ontem nem no hoje, por isso ele compartilha algo com os heróis gregos (que ele mesmo cita), a inadequação perante a hipocrisia e ao moralismo.

Robert Benton é um diretor competente, conseguiu conduzir a história sem adentrar em recursos melodramáticos. Sucinto, escolhe o que dizer e não se delonga no desenvolvimento dos personagens. Parece que o cineasta deixou essa tarefa ao próprio espectador.

O filme é um contraponto a onda politicamente correta que ganhou vulto nos Estados Unidos durante a década de 1990. Um tempo em que a verdade é ocultada ou escamoteada para não ferir suscetibilidades. Nesse sentido o filme entra em contradição, ao expor com naturalidade a nudez de uma jovem atriz (Jacinda Barrett), mas não ter tanta ousadia para mostrar o corpo de Kidman.

De fato há uma névoa de moralismo, que impede que algumas coisas sejam mostradas ou faladas. Revelações trata desse contexto que a propósito ainda vivenciamos, no qual o silêncio e a alusão substituem o diálogo direto. É aquela conversa que é travada na cozinha, só com os íntimos, e nunca na sala, com as visitas.

Sem cotação

sábado, 13 de setembro de 2008

Ensaio sobre a cegueira


Ensaio sobre a cegueira (Blindness), 2008. Brasil/Canadá. De Fernando Meirelles

Mais uma vez a ausência do governo e do Estado é entendida como retorno à selvageria e ao caos. Uma epidemia de cegueira, que aparentemente alcança dimensões mundiais, escapa do controle da burocracia moderna e instaura uma situação insólita, com multidões a tatear em mar de luz branca (ao contrário da cegueira convencional) em procura das condições básicas de sobrevivência. Da incompetência das autoridades em lidar com o problema até as relações hierarquizadas entre os portadores do mal, não há nada diferente do que já tenhamos em diversas outras produções, que só têm em comum essa temática do homem lobo do homem.

Em Ensaio sobre a cegueira, essa situação soa quase absurda ao praticamente infantilizar o comportamento dos personagens. A representação que surge do homem é de uma criatura nada razoável, incapaz de deliberar e convencionar – o que não chega a ser uma difamação, mas tira muito da verossimilhança das argumentações defendidas. Nada de discussão filosófica sobre a condição ou natureza humana, mas sim uma atualização dos maniqueísmos entre mocinho e bandido.

Não há meio termo, simpatizamos com alguns e (o médico, sua esposa, a moça de óculos), em contraparte, nos antipatizamos com aqueles capazes de exigirem que as mulheres se prostituam para receber comida. Também prejudica a história o desenvolvimento do roteiro, resolvendo-se em arrancos, quando um determinado capítulo parece se esgotar um incidente surge para trazer os próximos novelos a serem desenrolados. Assim uma ferida provocada por um golpe de sapato terá ligação direta com a propagação da epidemia em níveis globais.

A fotografia lida apropriadamente com o tema, buscando tonalidades e focos adequados para tematizar esse tipo de cegueira. As imagens da cidade e dos homens que essa projeção revela em seus atos finais têm uma crueldade desnecessária, oposta ao tom esperançoso e humanista visto, por exemplo, no documentário Borboletas de Zagorsk (1992) – quero ressaltar que esse macaco falante tem grande facilidade para encontrar soluções para seus problemas... E aqui, deve-se se atribuir a culpa não à fonte original (o livro de José Saramago), mas ao roteiro e direção que não souberam dar as sutilezas necessárias a assunto de tal complexidade – aspecto explorado acertadamente na crítica de Carlos Alberto Mattos.

Enfim, não estou a defender a razoabilidade do homem em contextos extremos, Blindness convence ao mostrar que nossa civilização é menos estável do que se imagina. Mas o itinerário seguido nessa película é macetoso, colocando pessoas, perdidas em um tipo sui generis de escuridão (claridade tão forte que ofusca) para se chocarem umas as outras. Mais um filme para torcermos pelos personagens principais, se havia a intenção de propiciar reflexão mais profunda ela passou despercebida, perdida em meio a tanta luz.

Cotação: Regular

Sin City


Sin City – cidade do pecado (Sin City), 2005. EUA. De Robert Rodrigues, com co-direção de Quentin Tarantino e Frank Miller.

Sin City é arte. Também, hoje em dia tudo é arte. E, parece, que os clichês são os principais exemplares de um cinema-arte. Se Sin City é arte, não arriscaria em colocar os desenhos do Pernalonga nessa categoria.

Contemporaneamente, existe uma crescente esteticização da violência. Cenas de combates e massacres se transformam em oportunidades para experimentações artísticas, lances de câmeras ousados, fotografias criativas, tomadas surpreendentes. Enfim, cinema como espetáculo.

Mas, para além desses aspectos técnicos, no qual há inegável brilhantismo, resta pouco cinema em Sin City. O resto são as esperadas cenas de vinganças, ações de defensores implacáveis, da eterna luta do bem contra o mal. É certo que há personagens interessantes, como o amigo das prostitutas, com seu tênis providencialmente vermelho, ou então o gigante brutalizado, capaz de sentir, mas incapaz de entender.

De fato, há um pouco de Pernalonga no filme. Saltos, cortes, disparos e tudo mais. A violência paradoxalmente é amenizada para não chocar o público, se insinua mais do que mostra. A intenção é satisfazer nosso instinto sádico sem ferir nossas sensibilidades (sic).

O filme é uma adaptação dos quadrinhos, que diga-se de passagem também é considerado arte.

Evidencia-se que o conceito de arte é histórico, cada época tem sua definição. A nossa é a banalidade da violência, desvinculada de qualquer dimensão ética, política e psicológica mais avançada.

É o açougue.

É a cerveja.

Cotação: Fraco

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Carnival of Souls



Carnival of souls, 1962. EUA. Harcourt Productions. De Herk Harvey

Série: filmes insólitos – n.1

Quando Parque Macabro (1998) chegou às locadoras, lembro de ter espreitado o vhs várias vezes para ler a sinopse no seu verso. Ao final, acabei por não assistir essa produção de Wes Craven intitulada Carnival of souls. Tratava-se, na verdade, do remake de um filme de 1962, dirigido por Herk Harvey e que nunca foi lançado no Brasil.

A década de noventa foi propícia para esse gênero, com exemplares de diferentes qualidades, tais como Pânico, Sexto Sentido, Bruxa de Blair e Eu sei o que vocês fizeram no verão passado – os sustos e a tensão propiciadas pelos macetosos roteiros garantiram sucesso entre os adolescente (eu, inclusive). Justamente em 1998 era lançado o fliperama CarnEvil, ligeiramente inspirado em Carnival of Souls (original e remake), com um visual interessante, onde o jogador deveria enfrentar palhaços assassinos alojados em um circo montado em um cemitério.

Muito “Filme B” pro meu gosto, embora Carnival of Souls (1962) possa até ser considerado um trabalho mediano. A história começa sem maiores preâmbulos, vemos um automóvel com três garotas despencando de uma ponte e submergindo em um rio lamacento. Os esforços para encontrar o veículo ou seus ocupantes são em vão, mas Mary Henry (Candace Hilligoss) aparece cambaleante nas margens do rio. Aparente sobrevivente do sinistro, ela parte para uma nova cidade, conseguindo o trabalho de organista em uma igreja.

Após o acidente, Mary Henry passa a ser acometida por uma sensação de estranhamento com o mundo. Naturalmente introspectiva, suas tendências anti-sociais se acentuam e a moça começa a ter visões de um homem com feições cadavéricas vindo em sua direção. Apesar dos seus esforços em levar uma vida normal, o mórbido gradualmente se apossa do seu cotidiano. Por vezes perdendo o contato por inteiro com as pessoas ao seu redor, ao ouvir uma melodia que quase a põe em transe. Recusando as superstições e mesmo a religião, Mary Henry busca solucionar seu desconforto por meio do intelecto, mas o pavor se revela mais forte e o medo da solidão faz até que ela suporte os assédios do repugnante Mr. Linder.


[Imagem acima: Mary Henry escapa da morte, mas não da influência do mundo dos mortos]

Há uma ruína nas proximidades da cidade que chama sua atenção, um parque de diversões abandonado. Seus delírios sempre a conduzem para aquele local, onde ela visualiza almas executando uma valsa ou então emergindo das profundezas de um lago. A dificuldade de se manter sintonizada com o mundo dos vivos é o elemento de maior interesse do filme, a narrativa tende a expor a subjetividade da personagem, escancarando seu crescente isolamento. No ato final, Mary desiste de solucionar seu problema no mundo dos viventes e parte em direção ao parque, completamente desiludida quanto à possibilidade de ser reintegrada à normalidade.

Trata-se de um filme menor, com todas as características de uma produção independente. A despretensão é sua maior qualidade, revelando uma direção e fotografia satisfatória as suas necessidades. A personagem, no entanto, tem um desenvolvimento rasteiro, dificultando uma melhor compreensão de seus anseios, pensamentos e decisões – prevalece, no entanto, uma sensação de absurdo e divórcio com a normalidade. Mary Hernry, por exemplo, se mostra indiferente ao acidente que matou duas de suas amigas. Seu descuido e crueldade para com as pessoas (e aqui talvez eu esteja extrapolando) me lembra a personagem principal de Lady Vingança, isso em função de sua frieza com relação a todos ao seu redor.

A idéia de um carnaval das almas é obviamente a referência ao baile de mortos entrevisto pela personagem. Trata-se de uma metáfora nada original sobre as dificuldades de driblar o inevitável, isto é, a extinção. Enquanto o cavaleiro em retorno das cruzadas ganha mais tempo de vida jogando xadrez com a morte, Mary Henry busca na luz diurna e nos fugazes relacionamentos sociais e afetivos um meio de não ser tragada pela extinção. Grande é a dificuldade para declinar um convite para a dança da morte.














[Imagens acima: Cartaz do filme (1962) e exibição do título do jogo da Midway (1998), uma diluída inspiração]

Ao que parece, o remake de 1998 introduziu o conceito de palhaços, provavelmente perdendo as sutilezas da versão original. Digo por palpite, já que não assisti a “contribuição” de Wes Craven. Resumidamente, o que pode ser ressaltado de Carnival of souls é sua atmosfera angustiante, em uma visualidade que quase se integra ao onírico. O resultado final é um terror comedido, cuja premissa e desfecho seriam copiados a exaustão nas décadas seguintes.

Cotação: regular