Pesadelo Perfumado. Perfumed Nightmare. De Kidlat Tahimik, 1977.
Importante
referência do cinema pós-colonial, Pesadelo Perfumado foi roteirizado,
dirigido e editado de forma quase “artesanal” pelo cineasta filipino Kidlat
Tahimik. Em muitos sentidos, sua proposta se aproxima da de Glauber Rocha e do Cinema
Novo brasileiro — uma versão local do anticolonialismo estético.
Mas
há nuances significativas entre eles. Pesadelo Perfumado explora com
mais ênfase o humor, adicionando elementos de nonsense e absurdo. O
filme acompanha um personagem que vive na zona rural de uma aldeia filipina,
fascinado pela exploração espacial norte-americana e entusiasta da tecnologia
moderna.
Kidlat
tem então a oportunidade de viajar para a França, onde conhece o chamado mundo
civilizado. Inicialmente, mostra-se fascinado pela tecnologia, por uma
sociedade que entrega resultados concretos — uma sociedade com “muitas pontes”,
como ele repete, empolgado e, por vezes, atônito.
A
metáfora das pontes é central para entender o filme. Trata-se de uma ponte ao
mesmo tempo frágil e resistente, que conecta sua aldeia ao resto do mundo. Ao
mesmo tempo, Kidlat deseja ser, ele próprio, essa ponte entre seu universo
local e o mundo moderno. Lança mão de diversos elementos simbólicos de conexão
— correspondências, transmissões radiofônicas, automóveis —, mas seu real
desejo é atravessar essa ponte e habitar o outro lado.
Superada
a euforia inicial, o personagem se depara com as mazelas do mundo capitalista:
desperdício, individualismo, obsolescência programada e racionalidade
instrumental. Nesse processo, começa a reconsiderar a equação entre arcaico e
moderno, questionando se, afinal, não seriam os civilizados aqueles que
precisam atravessar a ponte em direção aos saberes e valores que perderam.
Alternando
entre humor e um viés etnográfico — sobretudo no arco inicial da aldeia —, o
filme constrói um discurso potente e contundente. É uma expressão vibrante do
cinema não hegemônico da década de 1970.
A
fotografia é assumidamente experimental, tensionando constantemente a fronteira
entre registro antropológico e intervenção subjetiva, de forma a questionar a
própria ontologia da imagem. Permanecem questões em aberto: até que ponto o
colonizado pode representar-se sem ser atravessado pelas lentes e olhares do
colonizador? É possível mostrar a alteridade sem convertê-la em fetiche visual,
domesticada sob o selo do exotismo?
O
filme suscita essas reflexões, mas mantém, ao mesmo tempo, uma potência
narrativa capaz de envolver o espectador na trajetória de um personagem
ingênuo, mas arguto, que busca — metaforicamente — construir pontes entre a
cultura ocidental e o mundo não hegemônico. Trata-se de um filme-potência:
entretém, provoca e produz o desconforto necessário para nos arrancar da McDonaldização
da sétima arte.
Poucas
experiências cinematográficas são tão cativantes quanto acompanhar a trajetória
de um sonhador filipino tentando atravessar, literal e simbolicamente, a ponte
entre sua aldeia e o mundo ocidental. Assim, Pesadelo Perfumado não é
apenas um filme sobre a Filipinas, mas sobre o contraponto entre a sedutora promessa
do progresso e a indiferença do capitalismo global.
Cotação: ☕☕☕☕☕
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