Mostrando postagens com marcador cinema asiático. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador cinema asiático. Mostrar todas as postagens

sábado, 15 de junho de 2024

Aloners

Aloners (Honja Saneun Saramdeul), 2021. De Hong Sung-eun

Um filme essencial para apreendermos a lógica da sociedade pós-moderna em suas contradições – um mundo de tecnologia que convive com fantasmas depressivos e reflexivos. A história focaliza o cotidiano solitário e sem alegria de Yu Jina, a atendente de call center misantropa que precisa treinar uma nova funcionária. Jina acabou de perder a mãe e encontra-se em um processo de luto delicado no qual ela nutre suspeitas e relutâncias em relação ao seu pai em um processo de transferência de culpa.

A solidão e o hiper-individualismo são desdobramentos de uma sociedade precarizada (empregos ou subempregos destituídos de sentido) com indivíduos gastando suas vidas em frente às telas. O egoísmo aparece, portanto, como a forma mais sensata de sociabilidade. O acidente ocorrido no apartamento vizinho de Jina (uma pilha de pornografia desabou e matou o rapaz soterrado) evidencia a condição insalubre da grande cidade. Nasce mais um fantasma na cidade, assombrando, antes de tudo, a si mesmo.

Assim, fantasmas rondam à cidade evocando o medo da solidão: vida e morte solitárias. A cidade com sua multidão é o lugar de vazio, aporta-se aí a contradição do mundo pós-moderno. Na visão retangular prevalece o novo recorte da vida: telas de celular e televisão, janela do ônibus e estação do trabalho. Cubículos e bolhas que servem de proteção e afastamento esvaziando todo o sentido de sociabilidade.

A visão de Yu Jina é estreita: não consegue ver nada além dos pequenos retângulos que emolduram sua vida. Seu olhar apreende apenas o que é imediato; assim, a câmera focaliza as imagens pelos retângulos, isto é, sempre uma visão que corta a totalidade, mantendo-se em um nível de egoísmo primário. Esse tipo de enquadramento é literalmente um quadrado, quer dizer, um recorte muito reduzido da realidade que traduzido por uma fotografia em tons acinzentados.

[O recorte retangular da experiência moderna]

Em suma, Aloners traduz para o cinema aquilo que o sociólogo Byung-Chul Han identificou como uma característica das sociedades capitalistas modernas avançadas. As pessoas são cobradas a ter uma positividade mesmo com a desolação do entorno. A autoexpiação liga os vivos e os mortos vinculando Jina ao fumante melancólico. Os fantasmas que esgueiram nas imagens de câmeras ou nos corredores dos prédios de solitários aparecem como uma confirmação enfática de uma crise que é, antes de tudo, existencial.

Cotação: ☕☕☕☕☕

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Shin Gojira


Shin Gojira
, 2016. Japão. De Hideaki Anno

O tom nacionalista de Shin Gojira (2016) passou despercebido: uma história sobre a reorganização militar do país a fim de superar as adversidades. Estas podem até ser os desastres naturais, mas a questão nuclear é o ponto inegável.

A abordagem é a política e não a história dos Kaijins em si; nem mesmo o cinema catástrofe domina a projeção. Trata-se da articulação política dos médios escalões do governo para impedir a perda de autonomia do país perante a comunidade internacional ou dos Estados Unidos.  Assim, uma mobilização para destruir a criatura que apareceu no território japonês e salvar vidas choca-se com a hesitação dos políticos convencionais e dos interesses internacionais. Trata-se, portanto, de defender a revitalização do Japão com a substituição da engessada burocracia por uma geração legitimada pelo mérito. A hierarquia e a respeitabilidade tradicionais são entraves à modernização – um mote discursivo que se repete por lá. Quando o mostro emerge, a sequência das decisões tomadas em reuniões regidas por uma pompa e um protocolo denunciam o imobilismo a ser superado pelos “modernos”.

O filme defende as premissas da maioridade do Japão e da sua saída da autônoma em relação dos Estados Unidos. Isso dito de forma explícita e didática, muitos diálogos, inclusive, são pronunciados para a câmera como a preleção de um professor diante da turma. Trata-se de um filme educativo que propõe o rearmamento da nação nipônica, mas tudo com a dita responsabilidade pois a própria arrogância imperial é lembrada.

O filme peca por esse excessivo empreendimento moral, tornando o mostro e mesmo o desastre aspectos quase acessórios. Os personagens são rasos e unidimensionais, estão ali para pensar a melhor solução para o país com uma abnegação típica de propaganda de guerra. Por tomarem decisões a uma distância considerável do monstro, o próprio perigo que correm é reduzido, embora haja, naturalmente, os sacrifícios e as expiações da rodada.

Além disso as cenas de destruição e do próprio monstro são apenas razoáveis. Há um aspecto retrô da criatura, bem em conformidade com um ideário político em si controverso. Os estereótipos japoneses são mostrados a exaustão revelando um filme antigo em roupagens hodiernas.

A representação dos norte-americanos é ambivalente, de um lado são apresentados como autoritários e com exigências exclusivamente favoráveis aos seus próprios interesses, mas, do outro lado, confiam aos japoneses uma solução própria. As menções aos ataques de Hiroshima e Nagasaki ocorrem mais de uma vez e o trauma do ataque nuclear paira durante toda a narrativa. A fim de evitar o pior, Estado e nação precisam da harmonia de modo que modo que o novo e o antigo possam ser integrados.

Enquanto isso, Godzilla vai se movimentando e cientistas, políticos e militares precisam conter seu avanço sobre Tóquio. Depois dos desarranjos iniciais criados pela paralisia política uma resposta técnico-militar é fabricada e colocada a prova. O sucesso dessa empreitada vai garantir a autonomia do país evitando, assim, sua invasão pelos estrangeiros. Os olhos dos Estados Unidos e da Europa estão voltados para a terra do sol nascente, já Rússia e China são colocadas de lado com uma certa suspeição.

A ideologia nacionalista e militarista não são propriamente novidades no Japão, mas esperamos que assim como o Gojira elas continuem adormecidas.

Cotação: ☕☕☕


quarta-feira, 17 de abril de 2024

O Chamado 4: Samara Ressurge

O Chamado 4: Samara Ressurge (Sadako DX), 2022. De Hisashi Kimura

Durante muitos anos, nenhum filme remetia-me tanto ao medo como O Chamado (The Ring, 2002). A ambientação (da floresta, do poço e do farol) e as regras da maldição da garotinha de cabelo escorrido vingativa eram um exemplo perfeito do medo privado. Quero dizer, os terrores que você passa solitariamente, justamente ao contrário dos filmes zumbis nos quais os terrores são coletivos. Inclusive tenho um texto comparando Madrugada dos Mortos com O chamado.

Eu assisti algumas das versões japonesas, a franquia é numerosa, porém, sempre achei a americana mais consistente. E eis que nos chega esse intempestivo O chamado 4: Samara ressurge que não tem nenhuma relação com a sequência norte-americana (daí esse título ser muito apelativo).

O filme é até divertido, mas se você suprimir a expressão patacoada do seu vocabulário. A ideia original da versão japonesa continua: quem assiste a película amaldiçoada, amaldiçoado será. A fita VHS é o vetor de um vírus intrapsíquico. O vírus/maldição se tornou mais letal porque se dispersa em uma velocidade maior (pós-modernidade!). Os elementos básicos continuam, porém em um clima de terrir. Os personagens principais são estudantes com comportamentos estereotipados, um roteiro bem irregular com clima de Todo mundo em pânico.

Ayaka Ichijo é uma secundarista com QI 200 (sei, vai vendo) que precisa derrotar a maldição recaída sobre a irmã, para tal  propósito conta com a ajuda do inútil Oji Maeda, um aprendiz de paranormal que aprecia pagar de galã no jeitinho sul-coreano de ser. Ayaka o gênio passa toda a projeção a se contradizer, correndo de um lado para o outro e usando as redes sociais do celular para buscar uma pista.

A pobre Samara (na verdade, Sadako) encontra-se tão despersonalizada que muda de rosto a todo instante, uma de suas estratégias para confundir as vítimas (nesta versão ela não sai da televisão). Sua manifestação lembra a criatura de Corrente do mal (It follows, 2014), mas neste último caso temos um monstro que quanto mais se aproximava mais amedrontador ficava. Nesta versão Sadako está mais para timer do que para um fantasma incompreendido e raivoso.

Com um desfecho pastelão, “O chamado 4” é um ótimo ensejo para refletirmos que alguns dos medos do passado precisam ficar por lá, caso contrário você se dará conta que as noites de sono mal dormidas foram causadas por um canastrão com peruca espalhafatosa.

Cotação☕☕

sábado, 16 de março de 2024

O Carteiro nas Montanhas


Crítica a jato ✈

O Carteiro nas Montanhas
(Nàshān nàrén nàgǒu), 1999. De Huo Jianqi.

Pai, filho e um cachorro caminham pelas montanhas para fazer a entrega de cartas. Mestre e aprendiz. Cada um se depara com seu horizonte, a aposentadoria forçada e a futura vida de longas jornadas por vales e montanhas. O percurso do carteiro inclui vários dias na estrada e dezenas de quilômetros percorridos em uma região íngreme e úmida.

A Belíssima paisagem com cenários rurais, campos de arroz e antigas vilas é Hunan, a região onde nasceu Mao Zedong, o grande líder da Revolução Chinesa. Essa ambiência é a chave para um minimalismo em que o silêncio compõe o intervalo entre os diálogos e os momentos de descanso. Há muitas sutilezas que se desvelam ao longo da caminhada como o estigma sobre os montanheses, a lenta chegada da tecnologia e o confronto entre as gerações. Também há a noção de piedade filial e a deferência para com os anciões.

O respeito familiar entre os protagonistas constitui o eixo da história. A proposta é tomar a relação entre pai e filho como parte de um modo de vida em processo de apagamento pelo mundo urbano-industrial. O caminhão que passa ao longe e o rádio levado a tiracolo pelo jovem carteiro anunciam o ruído inevitável do progresso.

Trata-se de um filme viagem no qual os pequenos acontecimentos vão tecendo um plano maior, memórias e projeções de pai e filho se entrelaçam. As discordâncias são pontuais e não ameaçam a continuidade entre os caminhos do velho e do jovem funcionário público.

Esse panorama geral remete ao filme de Kelly Reichardt chamado Old Joy (2006), aqui também temos dois homens e um cachorro que percorrem uma área erma e arborizada em uma interação silenciosa e reflexiva. O elo, no entanto, não é tão contínuo, pois o estranhamento dos amigos explica-se no distanciamento ocorrido entre eles ao longo dos anos. Em O Carteiro nas Montanhas o esforço é maior pelo fato de os viandantes desfrutarem de uma incômoda intimidade.

As viagens do pai transformaram-no em um imponente desconhecido em sua própria casa, seu grande companheiro foi o cachorro Laoer. No momento em que o carteiro retirado do trabalho por questões de saúde se estabelece em casa o jovem (por um ato de vontade própria) começa a sua caminhada. Laoer não parece disposto a acompanhar o rapaz, por isso o pai se apronta para a última viagem em um rito de passagem.

É a própria continuidade que impõe o conflito a ser desbaratado. O olhar paternal denuncia a conhecimento das dificuldades, já os murmúrios do novato revelam uma envergonhada recriminação quanto a algumas das escolhas paternas.

A vida camponesa – em sua plena idealização – encontra-se ameaçada, mas no alto das montanhas ela consegue se renovar a partir de uma temporalidade que é a da própria vida. Enfim, sugere-se na continuidade e na tradição as benesses e o antídoto contra o modo de fazer errático do mundo lá fora.

Cotação: ☕☕☕☕