terça-feira, 21 de maio de 2024

A negra de...


A negra de... (La noire de...), 1966. França-Senegal. De Ousmane Sembène.

O quarto de empregada é uma senzala em miniatura? Mecanismo de confinamento ou automação do ser social destituído do seu propósito a partir de uma lógica externa? Menos filosofia por favor... eis a origem do cinema africano!

O filme La noire de... de autoria de Ousmane Sembène foi lançado em 1966 sob as influências dos movimentos de renovação do cinema, sobretudo a Nouvelle Vogue. O plot discorre sobre a prisão domiciliar na qual uma jovem senegalesa é colocada por um casal francês. Diouana, a moça, conheceu seus empregadores em Dakar e na esperança de melhorar sua situação de vida aceitou um emprego na França; haviam acordado que ela cuidaria das crianças, no entanto ela assume todo o cuidado da casa. Isolada, desterritorializada e sem nenhuma rede de apoio Diouana se torna vítima de abusos crescentes por parte dos seus patrões.

O filme conta com uma fotografia preta e branca que registra os vários contrastes sociais e raciais. A imagética construída sobre o espaço coloca a mobilidade e a liberdade de ir como elementos essenciais para que a personagem se perceba em um regime de escravidão. O seu mudo fica restrito à cozinha, ao banheiro e ao quarto com a movimentação organizada pelas necessidades da faxina e dos demais afazeres domésticos. Atenção para o detalhe do azulejo branco da cozinha com seus ladrilhos enquadrando e retendo a pulsão de vida da jovem.


[A parede como um espelho que não reflete o sujeito, a janela fechada e lacrada]

Outro ponto da trama é noção de máscara, seja como objeto de fetiches dos colonizadores – todo colonizador é um colecionador – ou como ato de ocultar as verdadeiras intenções por meio de uma aparente cordialidade. Quando Diouana percebe os reais interesses da “madame” já lhe era demasiadamente tarde.

A premissa desenvolvida sobre a relação de exploração inclui alusões ao colonialismo e à escravidão. A representação do espaço arquitetônico constrói interessantes soluções de dinamização da narrativa. O mundo do trabalho de Diouana é fechado: não há janela na cozinha e seu olhar está para o chão e para as superfícies que está limpando. O apartamento é claustrofóbico e quando a cidade vista da janela revela-se um mundo distante e inacessível em contraste com os espaços abertos e familiares de Senegal, a ambiência da qual fazia parte.

O interior funcional e prático do apartamento se constitui em uma gaiola não só para a jovem como para os próprios patrões em seus papeis de capatazes. O espaço exíguo acentua os conflitos entre o casal e todos parecem infelizes naquele lugar.

Em Dakar, a arquitetura moderna dos prédios, monumentos, ruas e escadarias são metáforas do colonialismo e das ilusões europeias. Aos olhos desavisados, a metrópole exerce um fascínio não só pelas novas oportunidades criadas, mas pela promessa (falsa) de incluir aqueles que dominarem os códigos hegemônicos. Talvez essa seja a principal armadilha oferecida pelos projetos coloniais, afinal europeizar-se não é se tornar europeu, mas sim objeto de saber do europeu.

O ato de Diouana de oferecer uma máscara como expressão de boa vontade voltou-se contra ela, pois assim como o presente ele acabou capturada capturados pela lógica do apartamento. As questões sociais evocadas pelo filme como o tráfego de pessoas e a invisibilidade dos imigrantes são atuais. No que se refere ao Brasil esse filme tem muito a dizer pelo passado escravocrata do país.

Nunca é demais lembrar que o Brasil está mais perto de Senegal do que da França. Diouana foi capturada pelo mecanismo colonial que transforma o diferente em exótico e a alteridade em adorno. O mascaramento da brutalidade das relações de classe transformam o sujeito apoderado em um estrangeiro destinado a cair em um poço de vazio, uma queda ruma ao nada e ao não ser.

Cotação: ☕☕☕☕

sexta-feira, 17 de maio de 2024

A maldição dos Mortos-Vivos

A maldição dos Mortos-Vivos (The Serpent and the Rainbow), 1988. De Wes Craven

Filme apresentado como “baseado em uma história real” (sei) e inspirado no livro do etnobotânico Wade Davis. É quase um crossover entre Monsanto e Madrugado dos mortos (espere sua vez Resident Evil).

O filme inicia-se com um olhar etnográfico colonialista e arrogante. É a barbárie haitiana pelo prisma da ciência ocidental. Desde o início The Serpent and the Rainbow busca o choque cultural como uma forma de horror. Identifica-se, inclusive, uma sútil influência do filme italiano Cannibal Holocaust (1980) de Ruggero Deodato: eis o gore antropológico.

Uma indústria farmacêutica decide enviar o antropólogo Dennis Alan para uma pesquisa (roubo) da substância anestésica utilizada nos rituais zumbis. Anteriormente, Dennis estava na Amazônia estudando (roubando) ervas medicinais de um Xamã. Embora o interesse do nobre pesquisador fosse o de salvar vidas, os financiadores mostravam-se mais interessados nos possíveis lucros. Onde os ingênuos veem um serviço à humanidade os espertalhões já preparam a impressão do código de barras...

De fato, nas décadas de 1970 e 1980 cientistas norte-americanos e europeus identificaram e apropriaram do patrimônio genético e ambiental dos povos amazônicos. O próprio livro do antropólogo canadense Wade Davis fez parte da exotização das Américas caribenha e amazônica.

O filme de Wes Craven conseguiu captar – mesmo que de forma não intencional – esse contexto, sugerindo até os interesses da biopirataria. Por isso a narrativa funciona muito bem em sua caracterização do Haiti como lugar terrificante. O cenário pula de um local assustador para outro, há exposição detalhada do que seria o universo cultural caribenho; velas, crânios, rituais sincréticos revelam um Haiti obscuro e primevo – mas capaz de cativar o interesse de turistas americanos.

Alan conta com a ajuda da haitiana Marielle Duchamp, apesar da formação médica ela acredita nas cosmologias locais. Juntos, eles devassam as redes de bruxaria para informarem-se sobre a droga. Acabam ganhando a contrariedade e o antagonismo do chefe da polícia política, mas isso não impede que Alan usufrua dos prazeres corporais oferecidos pela exótica dou-to-ra em uma cena de sexo tão brega com direito ao close no rosto da atriz na hora do orgasmo. Senhoras e senhores, eis Wes Craven nos anos 80!

[Corpos, bruxas e feitiços é o que não faltam]

Alguns aspectos merecem ser destacados. O filme contém uma narração em off do protagonista assemelhando-se a um caderno de campo (uma forma de reforçar os aspectos documentais do filme). O contexto político da ditadura de Baby Doc fundamenta a sensação de urgência e risco manifestada pelos personagens ao enfrentarem a bruxaria e a violência policial, ambas controladas pelo chefe dos Tonton Macoutes.

Mas quando a lua é focada em primeiríssimo plano o filme de terror se revela como uma peça bem urdida e o sobrenatural ou o supranatural rege o desfecho, os mortos-vivos aparecem como uma sofisticada metáfora dos presos políticos. A bruxaria não se compara às atrocidades cometidas pela ditadura haitiana, portanto a luta do bem contra o mal revela-se um propósito universal.

Mas infelizmente sou obrigado a relatar que o expediente do bem deve ser lido como o despacho da droga zumbificante para os laboratórios da Europa e dos Estates.

Todos os caminhos levam a Roma, digo, a Havard.

Cotação: ☕☕☕

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Jurassic Park


Jurassic Park - O Parque dos Dinossauros
(Jurassic Park), 1993. De Steven Spielberg.

Antes de tudo Jurassic Park precisa ser entendido como um filme, ou seja, antes da superexploração por meio das franquias pasteurizadas tivemos uma história que realmente valeu o ticket do cinema. Em retrospectiva, podemos ter dificuldade em apreciar seu impacto à evolução do entretenimento, mas o apuro técnico dos efeitos especiais abriu novas possibilidades para os filmmakers.

Jurassic Park foi a superação do Tubarão (também do Spielberg), e se há semelhanças  eles  – o confronto entre homem e natureza e a inversão da relação caça-caçador, por exemplo  – a escala de cada uma dessa mitopéias é distinta.

O tubarão era um invasor individual, até interpretado como resultado dos desequilíbrios ecológicos – algo presumível da história de Peter Bencley, o autor do romance original. Já os dinossauros foram resultados do poder da ciência maximizados pela caótica força motriz da vida. Ideia concebida por Michael Crichton em seu best-seller, o próprio Jurassic Park. Chrichton inova, pois não temos aqui um mundo perdido tal como nas histórias de Conan Doyle ou Júlio Verne; as criaturas extintas voltaram à vida por meio do desiderato de um show business vocacionado em ser um Walt Disney com engenharia genética.

Jurassic Park finalizou um trabalho iniciado com King Kong, Godzilla e outros monstros gigantes (kaijins) mundo afora. O roteiro é um primor didático pela simplicidade de uma narrativa bem contada. A apresentação dos personagens e do cenário, as complicações da trama e o aparecimento do inimigo ensinam-nos como guiar a imaginação; e do espanto caímos para o mar do merchandising.

Eis a dita magia do cinema operada no convencimento do público quanto a realidade do que se passa na tela. Os efeitos especiais e visuais hoje parecem-nos banais, mas inauguraram uma expectativa de receber a fantasia realista em seus detalhes – cada vez o esforço da imaginação passa a ser menor. Ao refletir sobre o realismo de Jurassic Park não posso me esquivar de rememorar o non sense do quadro Dinosaurier auf der Autobahn (1980) do pintor suíço Giuseppe Reichmuth. É o monstro entrando naturalmente na ossatura do cotidiano.

Esses dinossauros não nos dão sossego... reparem na usina nuclear do lado esquerdo e o carro rabo de peixe.

Basta olhar para a tela, tudo está lá, mastigado e plastificado. No lançamento de Independence Day (1996) e Star Wars – Episode I (1999), para citar dois outros arrasa-quarteirões, o trabalho de educação das sensibilidades levado a cabo por Spielberg (e também por Georg Lucas) já estava concluído.

O sucesso dos dinossauros gerou uma superexposição do tema com uma posterior infantilização (as crianças adoraram), mas em certa medida eles foram apenas o instrumento de conscientização do grande público. Pacotões de pipoca e pepsi-cola enquanto assistem seres irreais agindo da forma mais realista e verossímil possível: eis o melhor programa da nova era de ouro do cinema.

Sucesso total: todos abarrotados, amarrotados e arrotados.

Mas e aí, o que viria depois disso?

- Ei, ali na frente, é um robô ou um carro fazendo uma conversão?