sexta-feira, 17 de maio de 2024

A maldição dos Mortos-Vivos

A maldição dos Mortos-Vivos (The Serpent and the Rainbow), 1988. De Wes Craven

Filme apresentado como “baseado em uma história real” (sei) e inspirado no livro do etnobotânico Wade Davis. É quase um crossover entre Monsanto e Madrugado dos mortos (espere sua vez Resident Evil).

O filme inicia-se com um olhar etnográfico colonialista e arrogante. É a barbárie haitiana pelo prisma da ciência ocidental. Desde o início The Serpent and the Rainbow busca o choque cultural como uma forma de horror. Identifica-se, inclusive, uma sútil influência do filme italiano Cannibal Holocaust (1980) de Ruggero Deodato: eis o gore antropológico.

Uma indústria farmacêutica decide enviar o antropólogo Dennis Alan para uma pesquisa (roubo) da substância anestésica utilizada nos rituais zumbis. Anteriormente, Dennis estava na Amazônia estudando (roubando) ervas medicinais de um Xamã. Embora o interesse do nobre pesquisador fosse o de salvar vidas, os financiadores mostravam-se mais interessados nos possíveis lucros. Onde os ingênuos veem um serviço à humanidade os espertalhões já preparam a impressão do código de barras...

De fato, nas décadas de 1970 e 1980 cientistas norte-americanos e europeus identificaram e apropriaram do patrimônio genético e ambiental dos povos amazônicos. O próprio livro do antropólogo canadense Wade Davis fez parte da exotização das Américas caribenha e amazônica.

O filme de Wes Craven conseguiu captar – mesmo que de forma não intencional – esse contexto, sugerindo até os interesses da biopirataria. Por isso a narrativa funciona muito bem em sua caracterização do Haiti como lugar terrificante. O cenário pula de um local assustador para outro, há exposição detalhada do que seria o universo cultural caribenho; velas, crânios, rituais sincréticos revelam um Haiti obscuro e primevo – mas capaz de cativar o interesse de turistas americanos.

Alan conta com a ajuda da haitiana Marielle Duchamp, apesar da formação médica ela acredita nas cosmologias locais. Juntos, eles devassam as redes de bruxaria para informarem-se sobre a droga. Acabam ganhando a contrariedade e o antagonismo do chefe da polícia política, mas isso não impede que Alan usufrua dos prazeres corporais oferecidos pela exótica dou-to-ra em uma cena de sexo tão brega com direito ao close no rosto da atriz na hora do orgasmo. Senhoras e senhores, eis Wes Craven nos anos 80!

[Corpos, bruxas e feitiços é o que não faltam]

Alguns aspectos merecem ser destacados. O filme contém uma narração em off do protagonista assemelhando-se a um caderno de campo (uma forma de reforçar os aspectos documentais do filme). O contexto político da ditadura de Baby Doc fundamenta a sensação de urgência e risco manifestada pelos personagens ao enfrentarem a bruxaria e a violência policial, ambas controladas pelo chefe dos Tonton Macoutes.

Mas quando a lua é focada em primeiríssimo plano o filme de terror se revela como uma peça bem urdida e o sobrenatural ou o supranatural rege o desfecho, os mortos-vivos aparecem como uma sofisticada metáfora dos presos políticos. A bruxaria não se compara às atrocidades cometidas pela ditadura haitiana, portanto a luta do bem contra o mal revela-se um propósito universal.

Mas infelizmente sou obrigado a relatar que o expediente do bem deve ser lido como o despacho da droga zumbificante para os laboratórios da Europa e dos Estates.

Todos os caminhos levam a Roma, digo, a Havard.

Cotação: ☕☕☕

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