segunda-feira, 23 de junho de 2025

Irmão, Irmã

Irmão, irmã. Ani imoto. De Mikio Naruse, 1953.

O filme aborda as difíceis relações dentro de uma família camponesa enfatizando o embate entre três irmãos: Mon, a moça mais velha que acaba se envolvendo com a prostituição, San, a filha mais nova que tenta um casamento e Inokichi, o rapaz mais velho que almeja ser o polo disciplinador da família. Seus pais mais idosos operam como observadores passivos, incapazes de coordenar as tensões internas.

Um simbolismo recorrente é a contraposição entre a água e as pedras, sugerindo a tensão entre permanência e transformação. A cena inicial é um resumo visual da narrativa. As pedras simbolizam os valores tradicionais e masculinos, a ordem patriarcal resistente à transformação: o pai decadente e nostálgico e o filho bruto e hipócrita. O riacho, por sua vez, é a mudança, o elemento que flui e precisa se adaptar, tratando-se da representação do anseio feminino[DR1]  pela autonomia.

Outra imagem visual forte é a barragem, modificando a relação dos barqueiros e dos pescadores com a água. Tais imagens são sintéticas. Naruse resume bem o papel da personagem feminina: em um mundo rígido, terroso, ela precisa encontrar a fluidez. A correlação entre esses dois elementos, firmeza e flexibilidade, pode fornecer a resposta para a fundação de um Japão moderno que não faça a tábula rasa do passado.

O pano de fundo sociológico enquadra a vida das pessoas comuns. No cinema japonês esse tipo de melodrama é reconhecido como Shōshimin-eiga, constituindo-se uma variação dos filmes Gendai-geki: dramas urbanos e rurais contemporâneos. Os embates internos são duros e relevam a fragmentação da ordem familiar, representação da própria sociedade japonesa do pós-guerra.

Como expressão cinematográfica o filme revela uma força quase teatral, não economiza nas expressões dramáticas para culminar na agressão de Inokichi a Mon. San é a possibilidade de equilíbrio, uma operação feita, no entanto, com sacrifícios individuais. Ani imoto constitui-se assim, um exemplar precioso do cinema de Mikio Naruse e do esforço da cinematografia nipônica em se autorrepresentar.

Cotação: ☕☕☕☕☕

sexta-feira, 20 de junho de 2025

A chegada do outono

A chegada do outono. Aki tachinu. De Mikio Naruse, 1960.

Mikio Naruse (1906–1969) é um dos grandes nomes do cinema clássico japonês, cuja filmografia atravessa diferentes momentos da história do Japão contemporâneo. Em A chegada do outono, acompanhamos o processo de amadurecimento de Hideo, uma criança que, após ser abandonada pela mãe – que foge com um cliente da pousada onde trabalhava –, passa a viver com os tios em Tóquio.

O filme articula-se ao drama familiar, temática recorrente na obra de Naruse, mas também se aproxima de reflexões sobre a infância – uma preocupação presente tanto no Cinema clássico quanto na Nouvelle Vague japonesa. A narrativa busca representar como um menino de dez anos reelabora suas experiências ao se deslocar do interior para a capital. Hideo carrega o peso do estigma social da pobreza e da rejeição materna, sentindo-se um fardo para os tios. Apesar das dificuldades, tenta se adaptar à nova vida, desenvolvendo uma amizade com Junko, filha da proprietária da pensão onde sua mãe trabalhava.

O contexto social retratado no filme é o de um Japão em transformação, quase duas décadas após o fim da Segunda Guerra. A cidade de Tóquio surge como um espaço de descobertas, mas ainda atravessado por fortes moralismos. A família de Hideo reflete os conflitos geracionais de uma sociedade em mudança: seus primos mais velhos buscam se afastar do controle paterno, o que intensifica ainda mais as tensões dentro da casa.

O filme também revela as contradições de uma sociedade que se moderniza, mas preserva estruturas tradicionais. A figura da mulher fora dos modelos vigentes aparece como uma espécie de ameaça silenciosa às convenções. Prova disso é a situação da mãe de Junko, que vive como “segunda esposa”: uma relação extraconjugal marginalizada, mas que era mais comum na realidade do que os discursos conservadores admitiam.

A fantasia de Junko de que Hideo se tornasse seu irmão reforça o seu próprio sentimento de abandono da figura paterna. A amizade dos dois é o ponto alto do filme revelando o a dialética entre o desabrochar e o permanecer. Eles percorrem Tóquio descobrindo-se como amigos e como rejeitados. A cidade aparece como um substituto para as lacunas familiares.

A fotografia em preto e branco, marcada pela luminosidade dos dias de verão, privilegia espaços abertos, planos gerais e uma notável profundidade de campo. Embora trate de uma temática melancólica, o filme capta com sensibilidade o otimismo resiliente da infância, sem deixar de lado os momentos de tristeza e desconforto que marcam a trajetória de Hideo. O uso do cinemascope é particularmente eficaz: ao mesmo tempo em que estabelece uma certa distância confortável para o espectador, também permite uma imersão empática na vivência do garoto, reforçando sua condição de pequeno dentro da imensidão urbana.

Ao longo do filme, Hideo se empenha em capturar um besouro-rinoceronte para presentear Junko – um gesto que carrega o desejo de manter viva sua identidade e seus vínculos com o mundo rural de onde veio. No entanto, seus esforços se perdem no ritmo incessante da vida na cidade, produzindo um sentimento agridoce que perpassa toda a narrativa.

Assim, A chegada do outono não é apenas um retrato da infância, mas também uma delicada crônica sobre os afetos, as rupturas familiares e as contradições de um Japão em processo de transformação.

Cotação: ☕☕☕☕☕

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Sundelbolong

Sundelbolong. De Sisworo Gautama Putra, 1981.

Um dos maiores desafios na construção de uma sensibilidade cinéfila é a ruptura com os padrões estéticos norte-americanos, que são, via de regra, formativos. Assistindo a este clássico do cinema indonésio, somos capazes de perceber como as conexões com o chamado sul global são reais. A tendência inicial seria tomar o filme como de mau gosto, fruto de um olhar treinado pelo viés estético ocidental. No entanto, em vários sentidos, a película lembra os próprios esforços brasileiros na construção de uma cinematografia própria.

O filme aborda a história de uma ex-prostituta que foi estuprada a mando de sua antiga empregadora. Alissa desfrutava de sua vida de recém-casada, aguardando o retorno de seu marido de uma viagem, quando foi atacada. Ela não resiste ao julgamento moral de uma sociedade conservadora e crítica, acabando por se suicidar. Seu espírito retorna como Sundel bolong, uma criatura do folclore indonésio, resultado do sincretismo entre tradições asiáticas e a religião islâmica.

A construção do filme como narrativa de terror funciona, embora faça incursões no drama e, ocasionalmente, na comédia. A noção de um gênero cinematográfico rigidamente organizado em categorias estanques nem sempre é uma preocupação das tradições cinematográficas marginais. Assim, tornam-se evidentes as proximidades com os filmes de José Mojica Marins, especialmente no universo do Zé do Caixão.

A produção transpira improvisação e ausência do apuro técnico típico dos grandes estúdios, sobretudo nas maquiagens, que revelam rostos realistas e cheios de imperfeições – algo muito diferente dos rostos assépticos de Hollywood. As aparições e os tormentos provocados pela criatura são engenhosos, com soluções típicas do horror de alto nível, embora haja exageros, como os raios disparados por Alissa nos momentos de enfrentamento com um feiticeiro.

O filme é revelador de como as representações dos fantasmas asiáticos foram mescladas às tradições religiosas islâmicas. A imagem do fantasma japonês – como a personagem Sadako, de Ringu, por exemplo – é facilmente identificável. Nesse sentido, Sundelbolong é mais uma porta de entrada para o cinema oriental.

A assombração da mulher é o elemento angular do filme. No Oriente, essas entidades são chamadas de onryō, espíritos vingativos femininos. A dor e o sofrimento inviabilizam o descanso dessas almas, levando-as a perpetuar a violência contra os vivos, criando outras vítimas e alimentando o ciclo vicioso. No filme, tais imagens são contrapostas por religiosos islâmicos, que as combatem como forças demoníacas — seres perdidos que precisam da proteção e do perdão de Alá. Tal elemento confere ao filme uma complexidade narrativa, embora a naturalidade com que os personagens aceitam a Sundel bolong seja um tanto desconcertante. Tudo se acomoda fácil demais, sem as ambivalências psicológicas comuns ao gênero.

[Olha aí a bisavó da Samara...]

Ainda assim, o filme não se limita a ser uma curiosidade cultural, possuindo uma organização autônoma, com simbolismos próprios. Merece destaque a contraposição entre Alissa e Cinta, duas versões da entidade Sundel bolong, sendo uma maligna e a outra benigna. A narrativa é concisa, apesar de não ser um filme curto, e apresenta um desenvolvimento linear coerente, embora marcado por interpretações melodramáticas, próprias das telenovelas da época. Apesar de apresentar algumas inconsistências narrativas e derrapagens nas situações cômicas, o conjunto é funcional. Surpreende, inclusive, o desfecho sóbrio, que evidencia as conexões da cultura local com o islamismo.

O filme, no entanto, não deixa de dialogar com o cinema ocidental, parecendo inspirar-se no horror norte-americano, inclusive com elementos do slasher. Sundelbolong foi um dos responsáveis pela consolidação da fama do horror oriental e contou com a presença da scream queen indonésia, a atriz Suzzanna, uma mulher cuja vida esteve sempre envolta em mistérios.

Enfim, Sundelbolong é um clássico cult que, quando analisado sem o viés ocidentalizante, revela-se um achado precioso.

Cotação: ☕☕☕☕

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Pesadelo Perfumado

Pesadelo Perfumado. Perfumed Nightmare. De Kidlat Tahimik, 1977.

Importante referência do cinema pós-colonial, Pesadelo Perfumado foi roteirizado, dirigido e editado de forma quase “artesanal” pelo cineasta filipino Kidlat Tahimik. Em muitos sentidos, sua proposta se aproxima da de Glauber Rocha e do Cinema Novo brasileiro — uma versão local do anticolonialismo estético.

Mas há nuances significativas entre eles. Pesadelo Perfumado explora com mais ênfase o humor, adicionando elementos de nonsense e absurdo. O filme acompanha um personagem que vive na zona rural de uma aldeia filipina, fascinado pela exploração espacial norte-americana e entusiasta da tecnologia moderna.

Kidlat tem então a oportunidade de viajar para a França, onde conhece o chamado mundo civilizado. Inicialmente, mostra-se fascinado pela tecnologia, por uma sociedade que entrega resultados concretos — uma sociedade com “muitas pontes”, como ele repete, empolgado e, por vezes, atônito.

A metáfora das pontes é central para entender o filme. Trata-se de uma ponte ao mesmo tempo frágil e resistente, que conecta sua aldeia ao resto do mundo. Ao mesmo tempo, Kidlat deseja ser, ele próprio, essa ponte entre seu universo local e o mundo moderno. Lança mão de diversos elementos simbólicos de conexão — correspondências, transmissões radiofônicas, automóveis —, mas seu real desejo é atravessar essa ponte e habitar o outro lado.

Superada a euforia inicial, o personagem se depara com as mazelas do mundo capitalista: desperdício, individualismo, obsolescência programada e racionalidade instrumental. Nesse processo, começa a reconsiderar a equação entre arcaico e moderno, questionando se, afinal, não seriam os civilizados aqueles que precisam atravessar a ponte em direção aos saberes e valores que perderam.

Alternando entre humor e um viés etnográfico — sobretudo no arco inicial da aldeia —, o filme constrói um discurso potente e contundente. É uma expressão vibrante do cinema não hegemônico da década de 1970.

A fotografia é assumidamente experimental, tensionando constantemente a fronteira entre registro antropológico e intervenção subjetiva, de forma a questionar a própria ontologia da imagem. Permanecem questões em aberto: até que ponto o colonizado pode representar-se sem ser atravessado pelas lentes e olhares do colonizador? É possível mostrar a alteridade sem convertê-la em fetiche visual, domesticada sob o selo do exotismo?

O filme suscita essas reflexões, mas mantém, ao mesmo tempo, uma potência narrativa capaz de envolver o espectador na trajetória de um personagem ingênuo, mas arguto, que busca — metaforicamente — construir pontes entre a cultura ocidental e o mundo não hegemônico. Trata-se de um filme-potência: entretém, provoca e produz o desconforto necessário para nos arrancar da McDonaldização da sétima arte.

Poucas experiências cinematográficas são tão cativantes quanto acompanhar a trajetória de um sonhador filipino tentando atravessar, literal e simbolicamente, a ponte entre sua aldeia e o mundo ocidental. Assim, Pesadelo Perfumado não é apenas um filme sobre a Filipinas, mas sobre o contraponto entre a sedutora promessa do progresso e a indiferença do capitalismo global.

Cotação: ☕☕☕☕☕

segunda-feira, 9 de junho de 2025

A Filha do General

A Filha do General. The General's Daughter. De Simon West, 1999.

Um thriller policial com ação e todos os elementos característicos do cinema dos anos 1990. Conhecido por seus filmes de ação, Simon West aposta novamente em personagens durões e outsiders. Aqui, temos John Travolta como um investigador da polícia militar, designado para elucidar o assassinato de uma oficial do exército: a capitã Elizabeth Campbell, encontrada amarrada e, possivelmente, estuprada.

Elizabeth é filha de um general prestigiado e em ascensão política, cotado inclusive para a presidência dos Estados Unidos, adicionando, assim, mais tensão e urgência à narrativa. A partir desse ponto, a misoginia das Forças Armadas americanas começa a se revelar.

Se a premissa é promissora, seu desenvolvimento deixa a desejar. O filme até funciona, mas exige boa vontade do espectador. Travolta, com seu estilo canastrão hipertrofiado, encarna bem o papel: um sargento e investigador que não segue as regras. A condição de investigador militar parece lhe conferir certa liberdade para burlar a hierarquia, mas isso nem sempre soa verossímil – como na cena em que prende um coronel sem grandes consequências. É um exagero típico do gênero, mas que enfraquece a credibilidade da trama.

Essa liberdade narrativa em torno do herói determinado a se contrapor ao sistema não é muito realista. Investigadores militares, especialmente de baixa patente, não teriam tanto autonomia para interrogar ou prender oficiais superiores. O filme conta com a suspensão de descrença da audiência média. Esse tipo de personagem não é exatamente os anti-heróis que vemos hoje, mas é o mais próximo que se tinha na época; eram frequentes no gênero policial (vide Máquina Mortífera).

O filme busca criar um clima de tensão crescente. A pressão sobre os investigadores e o receio de que o caso escape da jurisdição militar para cair nas mãos do FBI são bem traduzidos pela fotografia: com baixa saturação e textura granulada, a imagem transmite a atmosfera insuportável em que vivem os personagens. Estão sempre transpirando e seus rostos molhados e ofegantes reforçam a sensação de calor opressivo, como se a própria instituição estivesse febril diante da possibilidade de escândalo.

Porém, as cenas de ação são insuficientes para um público apreciador de embates mais diretos. As rotinas de investigação não convencem plenamente e, para contornar isso, o roteiro recorre a situações forçadas – como a presença de uma investigadora civil desguarnecida em um cenário hostil, exposta aos militares. O médio oficialato também é representado de forma apequenada, sem se manifestar como contraponto adequado ao sargento durão de Travolta.

A temática é relevante, especialmente por abordar a posição delicada das mulheres no ambiente militar. Mas, como era comum nos anos 1990, elas aparecem pouco e quase sempre como coadjuvantes ou vítimas. Não são totalmente passivas, mas continuam presas a estruturas que não controlam. Toda a agência cabe ao personagem de Travolta, que sai metendo o pé em todas as portas até encontrar, meio ao acaso, os verdadeiros culpados.

Para o espectador atual, o filme tem valor limitado, mas serve como peça de época. É um exemplar de um momento em que o “cinemão” buscava narrativas mais adultas, ainda distante da era dos super-heróis e do predomínio dos efeitos visuais. De certo modo, o filme oferece um mergulho no universo militar norte-americano, com tintas políticas, mas termina mirando na denúncia institucional e acertando numa ferida mais íntima: a figura paterna ausente e a solidão traumática da filha do general. O desfecho é triste, pouco redentor, mas coerente com esse cenário em que as Forças Armadas dos Estados Unidos tentavam tornar-se mais inclusivas.

Cotação: ☕☕☕

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Heróis do Oriente

Heróis do Oriente. Zhonghua Zhangfu. De Lau Kar-leung, 1978.

Filme interessante e marcante do cinema chinês, lançado em um período em que as artes marciais estavam no auge do prestígio internacional. Heróis do Oriente oferece mais do que apenas pancadaria estilizada: parte de uma premissa curiosa e criativa, na qual os descompassos entre um jovem casal, o marido chinês e a esposa japonesa, são traduzidos em embates físicos, transformando a convivência conjugal em uma disputa sobre qual estilo de luta seria mais formidável: o kung fu chinês ou as artes marciais japonesas.

Inicialmente, a história é particularmente cativante ao usar as batalhas entre o casal como metáfora para os ajustes e atritos naturais dos recém-casados. O entusiasmo da personagem Yumiko, interpretada por Yuka Mizuno, contrasta com a altivez e teimosia de Ho Tao, vivido por Gordon Liu, que se recusa a fazer concessões à esposa ou reconhecer o valor do conhecimento que ela traz de sua cultura. Esses duelos domésticos bem-humorados evidenciam não apenas as tensões históricas entre Japão e China, mas os próprios desafios universais do casamento.

A maneira como eles se digladiam pela casa dá o tom da obra, deixando os serviçais e os parentes apreensivos. O ajudante de Ho Tao, por exemplo, sofre particularmente com isso: suas tentativas de separar as brigas acabam rendendo-lhe uma série de golpes involuntários, tanto de karatê quanto de kung fu. Esses momentos contribuem para o tom cômico do filme, mas também reforçam como os descompassos dos pombinhos.

Derrotada em todas as modalidades de kung fu apresentadas pelo marido, Yumiko foge humilhada para o Japão. Lá, retorna com um admirador e um grupo de mestres japoneses, cada um representante de uma arte marcial distinta – karatê, judô, kendo, entre outras – com o objetivo claro de provar a superioridade técnica e filosófica das tradições marciais nipônicas. A trama então se desloca para um desfile de confrontos altamente coreografados, cuidadosamente diferenciados por estilo, armamento e ritual. Nesse momento o filme perde um pouco do brilho, pois Yumiko praticamente desaparece.

Embora o filme assuma um tom pacifista, promovendo o respeito e o intercâmbio cultural, é inegável que sua narrativa pende para um viés pró-chinês. Ho Tao, mesmo descrito como um lutador apenas razoável, derrota todos os mestres japoneses que chegam para desafiá-lo. A mensagem, por vezes sutil, por vezes cômica, é direta: cuidado, mestres japoneses! Qualquer zé-ninguém nas esquinas de Xangai pode dar-lhes uns sopapos com uma boa dose de kung fu tradicional.

Não fica claro o período em que a trama se passa – talvez já no século XX. O pai de Yumiko usa ternos ocidentais, reforçando sua posição como mediador das duas culturas. Os navios apresentados nas cenas de desembarque são modernos, o que evidencia uma certa liberdade temporal por parte da produção. Não se sabe se faltaram recursos ou se simplesmente não houve preocupação em recriar embarcações da época. De todo modo, a ambientação do filme é abertamente caricata: os cenários são teatralizados, mas eficazes para estabelecer a contraposição visual entre o universo chinês e o japonês.

Essa distinção cultural é reforçada também pela fotografia. O filme aposta em uma paleta de cores saturadas e contrastes simbólicos. As cenas ambientadas na China são mais quentes, densas e urbanas, com cores vibrantes e movimento constante. Já o Japão é retratado com tons mais frios, claros e compostos – transmitindo uma sensação de ordem, silêncio e espiritualidade zen. Essa diferença cromática reforça, visualmente, o contraste entre dois mundos culturais distintos que precisam aprender a coexistir.

Produzido pela lendária Shaw Brothers Studio, Heróis do Oriente carrega muitas das marcas estilísticas que consagraram o estúdio como um dos maiores expoentes do cinema de artes marciais de Hong Kong entre as décadas de 1960 e 1980. Conhecida por seus cenários artificiais, figurinos exuberantes e abordagem teatral, a Shaw Brothers priorizava a clareza coreográfica e o impacto visual sobre o realismo histórico. Em vez de ambientações fiéis ao passado, seus filmes criavam espaços simbólicos onde os combates podiam ser lidos como metáforas culturais ou morais. Essa estética, claramente presente em Zhonghua Zhangfu, contribui para o caráter atemporal da narrativa e reforça o contraste visual e ideológico entre as tradições marciais da China e do Japão.

Logo no início do filme, já se percebe essa oposição: os chineses estranham as vestes brancas da noiva japonesa, que destoam dos trajes pretos do noivo e de seus convidados. A sequência é um microcosmo visual do que o filme desenvolverá ao longo de sua narrativa: uma dança constante entre estranhamento e tentativa de assimilação. Mas Yumiko está em desvantagem, pois o seu horizonte é da capitulação.

A primeira parte do filme é mais rica em termos de desenvolvimento narrativo, com um sabor de comédia conjugal. Já a segunda metade assume um tom quase instrucional, com demonstrações técnicas de combates, dissipando um pouco do frescor da obra. Além disso, os conflitos matrimoniais não chegam a ser plenamente resolvidos: Yumiko previsivelmente faz concessões ao retornar com trajes chineses, mas essa mudança é mais simbólica do que uma efetiva reconciliação.

Trata-se, portanto, de uma comédia divertida, engenhosa em sua premissa, mas narrativamente limitada. E, claro, não tem vergonha de aplicar um simbólico 7 a 0 para os chineses – com direito a reverência final dos derrotados. Para fãs do gênero, é uma pequena joia com sabor nacionalista e bom humor coreografado.

Cotação: ☕☕☕☕

domingo, 4 de maio de 2025

Um homem diferente

Um Homem Diferente. A Different Man. De Aaron Schimberg. 2024.

Na literatura, o duplo é um tipo de personagem que é idêntico a nós, mantendo, no entanto, uma única diferença que nos ameaça ou nos expõe. Em Um homem diferente temos essa questão levada até a última consequência: quem somos e a partir dos olhos de quem somos?

Acompanhamos Edward, um homem com neurofibromatose que tem a possibilidade de passar por um tratamento experimental a fim de eliminar as suas deformidades faciais. No entanto, o novo rosto não ameniza ou atenua seu senso de deformidade. Ele continua se vendo como um disforme, tentando não atrair a atenção do mundo para si mesmo. Tal situação se intensifica ao conhecer Oswald, outro doente de neurofibromatose, mas com uma postura completamente diferente.

O filme trabalha com várias temáticas das narrativas urbanas, tais como o anonimato e o doppelgänger, isto é, a existência de uma cópia de si existente em algum lugar na cidade. Em um dado momento, o real e a cópia se encontram (nem sempre sabemos qual é qual) e os impactos são existenciais. Aliás, a própria tessitura da cidade coloca-se como um problema da filosofia da existência, uma vez que ela se constitui em um labirinto de situações e sensações. Gradis, elevadores, restaurantes e bares fazem parte de um cosmos em que as pessoas se deslocam, por isso a sensação constante de aprisionamento.

Do metrô ao apartamento, situações da vida social se conectam ao self individual. A identidade e a individualidade surgem como frutos das negociações entre os nossos olhares e os dos outros. No limite, a monstruosidade de Edward não é externa; as pessoas podem até tratá-lo com um certo desdém ou ou nojo inicial, mas ele também cultiva um processo de autoisolamento. Seu próprio nome remete aos personagens shakespearianos (dos Ricardos aos Edwards) e à icônica figura de Tim Burton, o Edward Mãos-de-tesoura.

No fim das contas, face e rosto são dimensões distintas. Se o primeiro é superficial, o segundo se conecta com as dobras mais profundas da consciência. E o rosto, como expressão da verdade incontida, é tanto acusatório quanto auto acusatório.

Por isso o grande desespero do personagem principal é seu apego à vitimização. Nesse sentido, a narrativa brinca com didatismo e metáforas para tematizar a solidão da experiência moderna.

Cotação: ☕☕☕☕☕

domingo, 27 de abril de 2025

Sociedade dos Talentos Mortos

✈ Crítica a jato.

Sociedade dos Talentos Mortos. Dead Talents Society. De John Hsu, 2024.

Apesar de querer ser inusitado e crítico, criando um paralelo entre os vivos e os mortos, o filme carrega uma melancolia característica da cultura contemporânea. Os fantasmas, reduzidos à condição espectral, são forçados a adiar a extinção em definitivo. Nesse sentido, estão presos à demanda por entreter a plateia, amaldiçoando vivos e mortos com performances grotescas.

O filme se torna mais sério do que gostaria de ser, mas parece não se dar conta disso. Tais entidades disputam, em um plano midiático, quais seriam os mais assustadores; parecem não ter nenhuma motivação a não ser a fama infame. Há uma lembrança, inclusive, da descartabilidade das celebridades contemporâneas.

[A necessidade de assustar constantemente os vivos é uma assombro para as próprias assombrações]

Embora as interconexões entre vivos e mortos não sejam bem explicadas, o filme brinca com a noção de um crossover entre influencers e fantasmas famosos, mas tudo escoando no ralo da superficialidade vigente. Carecendo de uma dose menor de melodrama, o filme entretém, mas entrega pouco, considerando suas quase duas horas de duração. O desfecho talvez seja o mais frágil, considerando a ausência de redenção. Isso, inclusive, me lembrou o clima de naturalidade mórbida da série de anime Zombie Land Saga.

[A característica solidão dos mortos vivos]

A narrativa ecoa um desinteresse, ou pelo menos um descuido, com os personagens. Assim, sem ser cômico ou assustador, Sociedade dos Talentos Mortos é retrato de um narcisismo cadavérico típico dos tempos vigentes. No entanto, não entrega nada além de clichês, fazendo da fugacidade não só o objeto como o próprio método.

Cotação: ☕☕☕

sábado, 22 de março de 2025

As Outras

Crítica a jato.

As Outras. Las Demás. De Alexandra Hyland, 2023.

Duas amigas insepráveis, BFF, deparam-se com um imprevisto: gravidez inesperada. Como elas não querem ter o bebê para não prejudicar a vida superficial que levam (bebidas, drogas, sexo, bebidas, ódio aos homens, bebidas, drogas sexo). Tem início a jornada do herói, digo, heroína, rumo ao tal almejado coquetel abortivo.

Nesse percurso elas descobrem o valor da amizade, a inutilidade dos homens e a percepção de que a inconstância é uma constança. Trabalhando com uma fotografia corajosa e realista o filme não oferece redenção ou discuso pró-aborto. Trata-se, no entanto, de uma película feminista bem ao gosto das novas vogas. Só que agora feito por e feito para garotas chilenas.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Os suspeitos

Os suspeitos. Prisioners. De Denis Villeneuve, 2013.

Duas famílias têm suas filhas raptadas, um suspeito é preso, mas não há muita materialidade para mantê-lo encarcerado e tudo indica sua inocência. Os pais, inconformados, decidem prender e torturá-lo a fim de descobrir o paradeiro das crianças.

O filme abusa da boa vontade do espectador com revelações e reviravoltas. Em algumas situações bastaria abrir uma porta ou fazer uma revista para sanar todos os problemas, mas nada é feito. Já em outros casos, um pequeno indício é utilizado para desvendar uma rede de cumplicidades. De qualquer forma, a história tem sua solidez ao tematizar como a dor e o luto podem gerar um punitivismo cego. O humanismo e o justiçamento parecem entrelaçar em alguns pontos, mas acabam eclipsados pela revelação da maldade como uma natureza quase religiosa.

O principal suspeito, Alex, é um jovem adulto com problemas mentais, ele tem dificuldades de expressar seus pensamentos, mas possui uma atitude suspeita e não dá para saber quais são as suas reais motivações. O pai de uma das garotas, interpretado por Hugh Jackman, mostra-se um provedor e um protetor falido, a única forma de redenção é por meio da violência, tornando-se, assim, um torturador. O detetive Loki precisa andar por um labirinto de informações e pistas falsas para tentar descobrir o paradeiro das crianças raptadas. Sua suspeição com relação a Keller (Jackman) não é infundada, já que este também captura Alex.

Aliás, o tema do labirinto está presente no filme, as subtramas articuladas vão revelando uma rede de conexões na qual o denominador comum é a raiva, a dor da perda e a extrema violência. A paisagem setentrional com neves e florestas de pinheiro indicam destruição e beleza andando lado a lado. O mundo é um lugar perigoso e aqueles que se esquecerem disso poderão ser mortos.

O filme conta com uma belíssima ambientação, a fotografia capta um ambiente gélido, bem adequado aos dramas dos personagens. Estes encontram-se perdidos em seus ciclos de dor e violência. O detetive insiste em ser o ponto de racionalidade, mas ele mesmo derrapa nas conexões humanas encharcadas de culpa moral. O desdobramento da narrativa gera tensão, mas ainda assim apresenta superficialidade em alguns momentos, escondendo ou revelando pistas conforme a conveniência. Se nos deixarmos levar, o filme funciona bem, mas uma análise crítica indica fragilidades no desenvolvimento da trama. Há um excelente plot, um bom roteiro e uma execução formidável, porém comprometidos pelas fragilidades internas da história. Isso tudo se resume na estereotipação do trabalho policial: aquele instante em que ele bate a mão na mesa antes de ter o insight baseado em um detalhe até então despercebido.

Embora o filme possa ser apropriado como uma legitimação da tortura, ele também mostra o alto custo emocional e existencial de impor ao outro o sofrimento, seja ele culpado ou não. Os suspeitos" desafia o público a não ser tão facilmente arrebatado pela violência mostrada em cena. Nesse sentido é tanto um drama policial quanto um ensaio moral.

Cotação: ☕☕☕

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Meu amigo robô

Crítica a jato.

Meu amigo robô (Robot Dreams). De Pablo Berger, 2023.

As torres gêmeas são mostradas em vários momentos como a metáfora da busca do par, isto é, das almas gêmeas. O tema do filme é o sentido de perda e busca em meio à solidão da vida moderna. Sentindo-se sozinho, um cachorro decide comprar um robô. Tornam-se grande amigos, mas acabam separados quando o robô enguiça em uma praia fechada ao público até o começo do verão.

[A dinâmica vida urbana de NTC]

Considerando a mutabilidade das pessoas, a busca e a espera produzem inevitáveis modificações nos indivíduos. Enquanto o cachorro tenta resgatar o robô, este aguarda o retorno do seu amigo, mas alheia e indiferente a tal dueto a vida acontece.

[Almas gêmeas em todos os cantos]


A face oculta

Crítica a jato.

A face oculta. One-Eyed Jacks. De Marlon Brando, 1961.

Interessante Western dirigido e protagonizado por Malron Brando. O destaque vai para o esforço das personagens femininas em trazer humanidade a uma sociedade marcada pela violência e pala ambiguidade, onde não é possível identificar linearmente quem são os herois e quem são os mocinhos.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Nosferatu (2024)

Nosferatu. De Robert Eggers, 2024.

Das três versões de Nosferatu, a releitura que chegou ao Brasil em janeiro de 2025 é a melhor delas. Sob a direção de Robert Eggers, combina com maestria elementos dos filmes de mesmo nome dos anos de 1922 e de 1979, bem como alguns detalhes do Drácula de Bram Stoker (1992). De forma primorosa, inspira-se nos antecessores, fecha pontas soltas deixadas por eles e traz novos elementos que o transformam em uma excelente opção para ser vista.

Tal como o enredo pioneiro de 1922, Eggers manteve os personagens adaptados por Friedrich Wilhelm Murnau em virtude dos impedimentos criados pela viúva de Bram Stoker, conforme já explicado em crítica anterior. Thomas Hutter, em lugar de Jonathan Harker, é um corretor de imóveis que recebe a missão de viajar para a remota e sombria Transilvânia. O objetivo era negociar a venda de uma casa em Wisborg para o misterioso conde Orlok, em lugar de conde Drácula, cuja nova residência ficaria bem em frente à casa onde vive com a esposa, Ellen, em lugar de Mina. Ao chegar ao castelo, Hutter percebe que há algo profundamente perturbador no conde. Mais aterrorizante ainda é a constatação de que o conde se mostra fascinado por Ellen e a ameaça da presença dele se estende a Wisborg, onde Hutter vive com a esposa em meio a uma união recentemente celebrada.

Knock, em lugar de Renfield, chefe de Hutter, não é um perfil assustadoramente estranho como na filmagem de 1922 nem uma mistura tragicômica de um homem claramente desnorteado como na obra de 1979. É aparentemente um homem polido, mas que no domínio privado entrega-se a rituais de magia. No decorrer da história, a instabilidade mental de Knock ganha força, incluindo os ataques em busca por sangue humano ou animal.

O castelo do conde apresenta um ambiente rústico, mostrando-se ameaçador por meio da exploração dos jogos de luz e sombra. Já o conde Orlok é menos caricato que nas outras versões: é uma sombra potente, de voz intensa, bem como grande poder psicológico, cuja aparência é desvelada aos poucos para o espectador. Quando muito é possível perceber que se trata de um homem alto, com aparência decomposta pelos séculos de existência, mas de farto bigode, poucos cabelos e a presença de uma corcunda. Não tem uma aparência agradável de ser vista, mas possui uma forte presença, capaz de impactar o espectador. Permanecem os dedos anormalmente longos, terminados em garras, comuns nas outras produções.

Há um intenso jogo de luz e sombra, recurso usado na primeira versão e aprimorado na produção de 2024. Além de explorar, portanto, a sensação de ameaça constante, muito presente no filme de 1922, torna a atmosfera densa e o conde assustador, porém impactante, sem precisar recorrer a recursos que o assemelhem a um monstrengo. Orlok denota um ser enigmático, mas na reta final, permite que entendamos em alguma medida a conexão dele com Ellen por meio de explicações sobrenaturais, ao mencionar, por exemplo, outras supostas encarnações em que conviveram. Esse detalhe também é reforçado pelo professor excêntrico que é convidado a trabalhar no caso de Ellen, que a define como alguém que poderia ter sido uma grande sacerdotisa, dadas as conexões mediúnicas que ela demonstra. No diálogo final entre Ellen e Orlok, a conversa deixa transparecer aquilo que a doutrina kardecista compreende como compatibilidade espiritual (ou fluídica) entre ambos, despertada por Ellen quando criança sem que tivesse noção da capacidade mediúnica que portava e o alcance da mesma. Tais informações não foram exploradas nas obras fílmicas anteriores.

Diferente das produções de 1922 e de 1979, quando o vampiro usa os dentes frontais para sugar o sangue das vítimas ou aqueles que posteriormente o fazem por meio dos dentes caninos, Nosferatu (2024) explora a absorção do sangue, mas não necessariamente focando no uso da arcada dentária. Como um vampiro contemporâneo, circula apenas de madrugada, diferindo do filme de 1922. De outro lado, rompendo com as releituras pós- Murnau, não concede espaço para a simbologia do morcego em associação com a presença do vampiro. Retoma, todavia, a presença dos ratos e a menção à peste que trouxeram, tal como os antecessores. Não explica, porém, a conexão dos ratos com a vitalidade do vampiro como na produção de da década de 1920.

Distinto dos antecessores, a película não só vai além das relações entre Ellen, Hutter e Orlok, abarcando os impactos da peste na população da cidade, como aprofunda outros aspectos. Detalha, por exemplo, a morte de pessoas próximas à protagonista, traz à tona diálogos sobre transformações psiquiátricas no período e explora o embate entre o conceito de ciência em fins do século XIX frente às manifestações sobrenaturais. Esses três temas são abordados como em nenhuma outra versão até agora.

Em nítido contraste com o antagonista, Hutter encarna o arquétipo de bom moço. Não é ingênuo como o de 1922, não é frágil como o de 1979 e nem totalmente incrédulo como ambos. É um homem correto, em alguma medida ambicioso, oscila entre o medo e o cumprimento do dever, a coragem e angústia do que está por vir, alguma fé e o eco das superstições, o susto e o enfrentamento da realidade. Distinto dos demais filmes, consegue fugir de forma mais ousada e é curado parcialmente em um convento de freiras católicas ortodoxas, não em um hospital. Repete a postura de interromper a própria recuperação para retornar aos braços da amada em busca de salvá-la de um mal maior. Embora perceba a possibilidade de ter sido atacado por conde Orlok enquanto foi hóspede do castelo, não se rende à condição de vampiro como na película de 1979 nem a trata de forma cômica como na de 1922. Usa essa aparente conexão como meio para localizar o antagonista em meio à caçada necessária para combatê-lo.

Assim como os filmes de 1979 e de 1922, traz a presença dos povos ciganos do leste europeu no caminho para o castelo do conde Orlok, os quais atuam como uma fonte de alertas sobre a natureza vampiresca daquele. Hutter não compreende, mas não desacredita, impelido pelo que aparenta ser a força do dever a ser cumprido. Fica dividido entre pesadelos e o medo da realidade. Reflete a confiança no mundo racional, motivado pelos avanços trazidos pelo século XIX, mas não deixa de lado a perturbação frente à inevitável presença do que não controla nem explica. Para tanto, no decorrer do enredo, abre espaço para a presença de um médico que transita entre o científico e o místico, questão essa trazida pelo filme de 1979 e aprofundada no de 2024, abrindo espaço para a única solução que para a tragédia que se avizinha: uma caçada literal ao vampiro.

Ellen, amor comum de Hutter e Orlok, distingue-se ao não apresentar nítidas perturbações como as protagonistas anteriores, mas sim um histórico que supostamente mistura melancolia e crises de sonambulismo, aspecto esse mencionado desde o início da película. No transcorrer da trama a protagonista traz características de uma suposta possessão combinada com aparente êxtase, os quais desafiam os conhecimentos psiquiátricos do período. Em comum com a mocinha das películas de 1922 e de 1979, Ellen tem olhos grandes e olheiras profundas, mas também aparenta uma firmeza de caráter que nenhuma das antecessoras demonstrou. De igual modo, aparece rodeada de um gato, rememorando a crença que remonta ao Antigo Egito de que tais felinos permanecem onde estão presentes os maus espíritos.

Semelhante à sequência de 1979, Ellen alterna entre fragilidade e enfrentamento, sobretudo na segunda metade do filme, quando passa a se comportar de forma mais assertiva com diferentes personagens que a rodeiam. Oferece, uma vez mais, a vida a Orlok visando à salvação de Hutter e estancar a disseminação da peste. O conde, como nas outras versões, sacia-se do sangue da jovem no decorrer de horas a fio, quando é surpreendido pelo cantar do galo, não percebendo o nascer do sol. Padece, assim, sob a claridade que o atinge. Tal cena tem um forte componente de sensualidade, maior do que a versão de 1979, assim como outros momentos do filme denotam uma proximidade entre algoz e vítima que vai além da conexão espiritual, mas também são marcados por forte tensão sexual.

Camila Similhana



sábado, 25 de janeiro de 2025

Nosferatu (1979)

Nosferatu - O Vampiro da Noite. Nosferatu: Phantom der Nacht. De Werner Herzog, 1979.

Lançado em 1979, Nosferatu, O vampiro da noite, dirigido por Werner Herzog, mantém o roteiro de Nosferatu, lançado em 1922, mas em meio a uma nova fase da história do cinema.  Entre 1962 e 1982, a indústria cinematográfica alemã vivenciou o florescimento do Novo Cinema Alemão, movimento impulsionado por uma nova geração de cineastas fortemente influenciados pela Nouvelle Vague francesa (baixos orçamentos, produções independentes, roteiros menos estruturados, estética experimental, montagens ousadas, foco em temas e personagens contemporâneos). Werner Herzog reinterpretou o roteiro para algo mais fiel à obra de Bram Stoker (1897). Personagens conhecidos do público, como Mina, Jonathan Harker, Renfield e o próprio Conde Drácula, foram incorporados, ao que, ao final, preservava o título Nosferatu: o Vampiro da Noite como uma lembrança da ideia original de remake e várias outras características que aqui serão analisadas.

Jonathan Harker, um corretor de imóveis, recebe a missão de viajar para a remota e sombria Transilvânia. O objetivo era negociar a venda de uma casa em Wisborg para o misterioso Conde Drácula, cuja nova residência ficaria bem em frente à casa onde vivia com a esposa, Mina. Ao chegar ao castelo do conde, Harker percebe que há algo profundamente perturbador naquela figura. A confirmação dos temores surge ao descobrir que Drácula é, na verdade, um vampiro. Mais aterrorizante ainda é a constatação de que o conde se mostra fascinado por Mina e a ameaça da presença dele se estende a Wisborg, onde vive o casal.

Renfield, chefe de Harker, não é um perfil assustadoramente estranho como na obra de 1922, mas uma mistura tragicômica de um homem claramente desnorteado.  Já o Conde Drácula continua esguio, possui nariz e orelhas pontiagudas, olhos fundos marcados por olheiras intensas e dedos anormalmente longos, terminados em garras. A diferença é que no filme de Herzog ele está mais para excêntrico do que para propriamente monstruoso. Apresenta ainda uma densidade psicológica maior que a primeira versão.

O farto jogo de luz e sombra, que contribui para a sensação de ameaça constante, muito presente no filme de 1922, está ´em menor proporção e aparece de forma descontínua no longa de 1979. O castelo do conde nessa versão parece até mais claro e menos ameaçador do que na versão anterior. Nosferatu continua, contudo, com dentes associados à sucção do sangue das vítimas na parte frontal da arcada e não na posição dos caninos, como se tornou comum posteriormente na imagem do vampiro.  Na película de Herzog, Nosferatu não tem cenas circulando de dia, diferindo da obra anterior, quando o personagem circula em alguns momentos sem temor da luz solar.

O roteiro de Herzog traz a imagem do morcego em associação à presença de Nosferatu, mas também mantém os ratos, sem explicar a conexão desses últimos com a vitalidade do vampiro como na obra de 1922. No que confere à peste trazida por Nosferatu, a obra de 1970 vai além das relações entre Mina, Harker e Drácula. Aborda os impactos da peste na população da cidade, incluindo a morte de pessoas próximas à protagonista. Chega a abarcar até um confronto de Mina no ambiente público, buscando um alerta sem sucesso em relação à conexão entre conde Drácula e a epidemia. Nesse momento, Herzog amplifica um aspecto que ficou em segundo plano na versão anterior: o embate entre ciência e superstição, ainda que de forma rápida e superficial.

Em nítido contraste com o antagonista, Harker encarna o arquétipo do herói clássico. Na película de 1979, o herói é menos ingênuo e mais desconfiado do que o de 1922. Mantém a incredulidade do antecessor, mas também é mais frágil diante de tudo o que ocorre. Embora interrompa a hospitalização de igual modo visando ao salvamento de Mina, ao retornar demonstra profunda instabilidade psíquica e ao fim do filme rende-se à condição de vampiro, algo que não ocorre em nenhuma das releituras, mesmo com os ataques noturnos de Nosferatu durante a hospedagem no castelo do conde.

A versão de 1922, assim como as demais, traz a presença dos povos ciganos no caminho para o castelo do conde Drácula, que atuam como uma fonte de alertas sobre as agruras que estão por vir. Harker, porém, ignora os avisos e também um livro sobre vampiros a ele dado, subestimando o perigo iminente. Trata-se de um reflexo da confiança no mundo racional, mas que no filme de Herzog destaca com maior ênfase o embate entre a ciência e o ocultismo.

Mina, amor comum de Harker e Drácula, apresenta claras perturbações que eram consideradas desafiadoras para os conhecimentos psiquiátricos do período, mas nessa versão explorada de forma melancólica pela intérprete. Em comum com a mocinha de 1922, a de 1979 tem olhos grandes e olheiras profundas, mas de forma bem menos expressiva.  Também aparece rodeada de um gato, rememorando a crença que remonta ao Antigo Egito de que tais felinos permanecem onde estão presentes os maus espíritos. De outro lado, alterna entre fragilidade e enfrentamento, sobretudo nos momentos finais do filme, quando passa a se comportar de forma mais assertiva se comparada à película anterior. Oferece, uma vez mais, a vida a Drácula visando à salvação de Harker e de toda a cidade atingida pela peste. A diferença é que entra em cena Abraham van Helsing, que ao constatar a problemática do sobrenatural naquele contexto, empenha-se em matar o vampiro usando estaca de madeira.

O fascínio pela figura do vampiro nas décadas de 1960 e 1970 pode ser compreendido como resultado de uma combinação de fatores culturais, históricos e sociais que dialogavam com os significados então associados a esses seres míticos. Naquele período, mudanças sociais intensas estavam em voga — como as lutas pelos direitos civis, o avanço do feminismo e as revoluções sexuais —, colocando em xeque normas tradicionais e abrindo espaço para questionamentos de campos como a sexualidade. O vampiro, de natureza ambígua e transgressora, emergia como um reflexo dessas transformações. A revolução sexual, em pleno apogeu, potencializou o forte apelo erótico dos vampiros, que passaram a desafiar tabus e a personificar o desejo de maneira mais crua e subversiva, elevando-o a um ícone de rebeldia naquele cenário.


Por fim, o interesse pelo vampiro também foi alimentado pelo fascínio crescente por mitos e arquétipos universais, que nesse caso encarnava os medos e desejos mais profundos da condição humana, simbolizando conflitos duais, tal como o contexto da Guerra Fria, como por exemplo: vida e morte, luz e escuridão, desejo e controle. Tal contexto, também permeado pelo medo da destruição nuclear, tornou o vampiro um símbolo carregado de angústia existencial. A imortalidade solitária emanada por ele ecoava as inquietações humanas sobre a efemeridade da vida. Toda essa flexibilidade simbólica convertia-o em uma válvula de escape para as inquietações sociais e um meio de explorar questões existenciais complexas, garantindo-lhe um papel central no imaginário cultural das décadas de 1960 e 1970.

Camila Similhana



segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Nosferatu (1922)

Nosferatu, Uma simfonia do Horor. Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens. De F. W. Murnau, 1922.

Lançado em 1922, Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror não é apenas um marco do Expressionismo Alemão, mas um sobrevivente improvável das tempestades do tempo. Com atmosfera densa e perturbadora, a obra quase não viu a luz do dia, tragada por disputas judiciais e a sombra de um possível esquecimento. O produtor e designer Albin Grau, que atuou como soldado durante a Primeira Guerra Mundial, foi profundamente marcado pelo tempo que passou na Sérvia, onde ouviu histórias sobre vampiros e outras criaturas sobrenaturais. Fascinado por tais lendas, retornou à Alemanha, fundou a Prana Film, uma produtora voltada ao ocultismo e ao sobrenatural. Pensou, assim, em adaptar o livro Drácula (1897), de Bram Stoker. Para tanto, contratou o roteirista Henrik Galeen (mencionado como Green em algumas fontes) e o renomado diretor F.W. Murnau. Sem a permissão da viúva do autor, Florence Stoker, a solução encontrada foi criar uma versão alternativa, trocando o conhecido Conde Drácula pelo enigmático Conde Orlok. Jonathan Harker foi rebatizado por Thomas Hutter, Mina Harker tornou-se Ellen Hutter e Abraham Van Helsing virou Professor Bulwer.

O enredo manteve a essência do romance original: Thomas Hutter, um corretor de imóveis, recebeu a missão de viajar para a remota e sombria Transilvânia. O objetivo era negociar a venda de uma casa em Wisborg para o misterioso Conde Orlok, cuja nova residência ficaria bem em frente à casa onde vive com sua esposa, Ellen. Ao chegar ao castelo, Hutter percebe que há algo de profundamente perturbador no conde. A confirmação dos temores surge ao descobrir que Orlok é, na verdade, um vampiro. Mais aterrorizante ainda é a constatação de que o conde se mostra fascinado por Ellen e a ameaça da presença dele se estende a Wisborg, onde vivem Hutter e Ellen.

A estreia foi grandiosa, mas o eco do sucesso logo alcançou Londres, onde Florence, implacável, moveu uma ação judicial por plágio. O veredito foi devastador: destruição das cópias e o fim da Prana Film. Contudo, algumas cópias resistiram ao esquecimento. Após a morte de Florence, o filme ressurgiu nos Estados Unidos. Assim, Nosferatu renasceu, consolidando-se como uma referência no cinema de horror.

A presença do vampiro Nosferatu representa uma ameaça indefinível e onipresente corroborada pelo contraste estético — luz e sombra em conflito constante —, reforçando sensações de medo e suspense que permeiam as cenas. Essa combinação é a essência do Expressionismo Alemão, um movimento artístico nascido no contexto do pós-Primeira Guerra Mundial, em que a arte, e em especial o cinema, se tornou um meio poderoso de dar voz às angústias, traumas e ansiedades de uma geração em recuperação de um enorme trauma coletivo. Assim, Nosferatu não é apenas um filme de terror, mas um reflexo das sombras que pairavam sobre a Europa daquele período.

Os expressionistas alemães não buscavam a reprodução fiel da realidade, mas sim a distorção, projetando nas telas um mundo inquietante e subjetivo, onde as formas se contorcem e ganham vida. O objetivo não era apenas narrar uma história, mas mergulhar o espectador em uma experiência emocional intensa, extraindo o medo tanto pela estética quanto pelo conteúdo. No caso de Nosferatu, o horror nasce de um visual construído com base em cenários angulosos e iluminação contrastante responsáveis por criar um ambiente macabro, alinhado à essência vampiresca da trama. Essa escolha estética amplia a tensão, já que transforma a imagem em veículo de angústia e pavor.

Do ponto de vista estético, a caracterização dos antagonistas em Nosferatu é uma verdadeira materialização do conceito expressionista de distorção e exagero. Knock, chefe de Hutter, apresenta uma figura estranha: parcialmente careca, com os poucos fios de cabelo arrepiados, corcunda, sobrancelhas densas e dentes salientes, compondo uma aparência claramente desconcertante que sugere insanidade.


Já o Conde Orlok é esguio, possui nariz e orelhas pontiagudas, olhos fundos marcados por olheiras intensas e dedos anormalmente longos, terminados em garras. Lembram associações europeias entre monstros do imaginário coletivo e características de povos semitas que assolavam o coletivo desde tempos imemoriais, mas que ganharam força nas primeiras décadas do século XX. Tratam-se de elementos pontiagudos comumente associados ao perigo e à maldade.


Cada detalhe, amplificado pela maquiagem pesada e pelo jogo de luz e sombra, contribui para a sensação de ameaça constante. Em Nosferatu, a escuridão não apenas esconde, mas revela o horror; as sombras alongadas e os contornos irregulares reforçam a ideia de que o mal não precisa ser visto por completo para ser temido — basta ser pressentido. Interessante perceber que diferente da estética que se difundiu posteriormente, os dentes associados à sucção do sangue das vítimas estão na parte frontal da arcada e não na posição dos caninos. Outro detalhe são as cenas em que o vampiro circula claramente de dia, sem temor algum da luz solar, diferente dos estereótipos que acompanharão as versões de vampiros que apareceriam depois.

Ao contrário do simbolismo contemporâneo, no filme não estão presentes morcegos como extensões dos vampiros, mas ratos, que a própria película explica serem elementos vitais, assim como a terra supostamente de origem medieval e atrelada ao período da peste bubônica, para a manutenção dos poderes sobrenaturais de Orlok. No que confere à peste trazida por Nosferatu, a obra de 1922 não explora muito a questão, concentrando-se nas relações entre Ellen, Hutter e Orlok. O que acontece na cidade e mesmo na residência que acolhe Ellen enquanto o marido viaja, fica em segundo plano, mesmo com a emergência da peste, ao contrário das releituras seguintes.

Em nítido contraste com o antagonista grotesco, Hutter encarna o arquétipo do herói clássico. Não escapa, contudo, de um certo grau de ingenuidade e até mesmo estupidez, mesmo diante dos perigos mais óbvios, escrevendo, por exemplo, cartas que beiram a idiotia ou em meio à fuga mais pueril das três adaptações (1922, 1979 e 2024) do roteiro. Nesta versão é executada por meio de poucos e frágeis lençóis alocados uns sobre os outros de modo a escapar de uma das torres do castelo do conde Orlok. A versão de 1922, assim como as demais, traz a presença dos povos ciganos no caminho para o castelo do conde Orlok, que atuam como uma fonte de alertas sobre as agruras que estão por vir. Hutter, porém, ignora os avisos e também de um livro sobre vampiros a ele dado na hospedaria, subestimando o perigo iminente. Trata-se de um reflexo da confiança no mundo racional, mas também da ingenuidade relatada.


Essa transição, da incredulidade para o horror, remete a uma metáfora da cegueira humana frente aos perigos que se aproximam de maneira invisível e insidiosa, tal como o contexto histórico que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. Reverbera, ainda ao trauma coletivo pós-confronto. A destruição causada pela guerra, é simbolizada pela figura do vampiro, que se alimenta da vida e da esperança, uma metáfora perfeita para o vazio e a incerteza que os alemães enfrentaram após a derrota. O confronto entre superstição e ciência, outro elemento de transição presente em outras adaptações do roteiro, é tímido, diferente das versões de 1979 e de 2024, em que esse diálogo é aprofundado. Do mesmo modo está a suposta caçada final ao vampiro, que ganha mais espaço nos filmes posteriores.

Ellen, amor comum de Hutter e Orlok, apresenta claras perturbações desafiadoras para os conhecimentos psiquiátricos do período, explorada de forma muita viva pelas expressões faciais da protagonista. Olhos grandes e expressivos, bem como olheiras profundas que expressam as complicações de uma proximidade cada vez maior com o sobrenatural. Dos três filmes que fazem releituras de Nosferatu (incluindo aí as películas de 1979 e de 2024), é a única que convive claramente com o vampiro na vizinhança e constante assédio da parte dele. Assim como as outras, oferece a vida a Orlok em sacrifício, visando à salvação de Hutter. Em todas as versões, a protagonista aparece rodeada de um gato, o que rememora a crença de que tais felinos permanecem onde estão presentes os maus espíritos. Essa ideia remonta ao Antigo Egito, mais precisamente à deusa Bastet, uma deidade que passou a contar com a cabeça de um felino a partir do segundo milênio antes de Cristo, comumente associada a qualidades acolhedoras, maternais e, sobretudo, de proteção.


Observa-se, assim, junto ao roteiro de Nosferatu, uma deliciosa mistura entre a inspiração motivada pela obra original e a ousadia criativa, o que resultou em um clássico atemporal, que, mesmo nascido sob uma briga judicial e as incertezas do esquecimento, definiu as bases do cinema de horror.

Camila Similhana






REFERÊNCIAS

ASSUMPÇÃO, Mariana. Nosferatu: Por que o filme original foi proibido? Disponível em https://www.ingresso.com/noticias/nosferatu-historia-filme-classico-proibido . Acesso em Janeiro de 2025.

RODRIGUES, Diogo. Nosferatu (1922) – Expressionismo alemão. Disponível em https://www.nossocinema.com.br/nosferatu-1922-expressionismo-alemao/ . Acesso em Janeiro de 2025.