sábado, 29 de junho de 2024
Desespero Profundo
terça-feira, 25 de junho de 2024
O Regresso
Embora o tema principal seja a
vingança é inegável como a dimensão da violência ganha destaque em O
Regresso. O filme demonstra como a relação entre natureza, animais e
pessoas comporta uma atrição: choque entre o meio e as civilizações. O resultado é a dor inscrita nas peles, nos corpos e até nas pedras.
Dessa vez, uma situação de fronteira expressa não no oeste, mas no norte selvagem em direção ao Canadá. O que
temos não é o terreno árido e desértico, mas a floresta temperada, densa, fria,
abundante em alimentos e repleta de animais ferozes. Em alguns momentos, até os
nativos são representados como forças da natureza. Em suma, um filme sobre aventureiros, desbravadores, gente gananciosa e terrível.
A narrativa acompanha a trajetória de
Hugh Glass deixado para morrer na floresta após o ataque de um animal selvagem.
Ele sobrevive arrastando-se por centenas de quilômetros a fim de se vingar
do homem que o abandonou. Glass mostra-se capaz de enfrentar as maiores
provações devido ao seu conhecimento sobre a natureza. Um personagem verossímil
por ser um “produto” típico desse mundo muito além da civilização.
Os próprios antagonistas escapam da
mecânica maniqueísta, pois a brutalidade faz parte daquele modo de vida comum
a todos. No limite nem bons e nem maus, apenas seres desesperados em luta pela
sobrevivência. A frase dita por um dos personagens “Deus é um suculento
esquilo” ilustra o nível mais imediato de existência no qual a realidade paira na preservação da frágil corporeidade humana contra a brutalidade do mundo externo.
A perspectiva filosófica do filme
implica no quão pequeno é o homem no quadro da vida ressaltando a pouca importância da vingança. Homens matam-se o tempo todo sejam anglo-americanos,
franco-americanos ou nativos-americanos. Enquadramentos da moralidade podem revelar-se, por isso mesmo, mesquinhos e inócuos.
Capaz de perscrutar outras dimensões da realidade (transes ou delírios?) Hugh Glass é tanto agente como produto de um mundo em destruição. Não seria exagero comparar este filme com o posterior O Homem do Norte acerca da saga de vingança de um viking. Estamos falando de proximidades temáticas: natureza opressora, sociabilidade cruel, arcos de vinganças e flertes com uma fuga da realidade por meio do hiper-realismo estetizado. Sobressai-se em O Regresso (e nesse sentido ele é único) a sua capacidade de compor um quadro tanto mítico quanto naturalista. Eis o olhar da câmera que vai da natureza para a corpo e da ferida para a expiação.
Neve e sangue constituem-se em par reconhecedor
da provisoriedade da vida. Todo derramamento e trasbordamento acabam absorvidos por uma natureza eligida por meio da destruição. Afinal de contas,
ali é a fronteira; e lá os homens não têm valor nenhum.
Assisti em 23/06/2024
Cotação: ☕☕☕☕
sábado, 15 de junho de 2024
Aloners
Aloners (Honja Saneun Saramdeul), 2021. De Hong Sung-eun
Um
filme essencial para apreendermos a lógica da sociedade pós-moderna em suas
contradições – um mundo de tecnologia que convive com fantasmas depressivos e
reflexivos. A história focaliza o cotidiano solitário e sem alegria de Yu Jina, a
atendente de call center misantropa que precisa treinar uma nova funcionária.
Jina acabou de perder a mãe e encontra-se em um processo de luto delicado
no qual ela nutre suspeitas e relutâncias em relação ao seu pai em um processo de transferência
de culpa.
A
solidão e o hiper-individualismo são desdobramentos de uma sociedade precarizada
(empregos ou subempregos destituídos de sentido) com indivíduos gastando suas vidas em frente às telas. O egoísmo aparece, portanto, como a forma mais
sensata de sociabilidade. O acidente ocorrido no apartamento
vizinho de Jina (uma pilha de pornografia desabou e matou o rapaz soterrado) evidencia a condição insalubre da grande cidade. Nasce mais um fantasma na cidade, assombrando, antes de tudo, a si
mesmo.
Assim, fantasmas rondam à cidade evocando o medo da solidão: vida e morte solitárias.
A cidade com sua multidão é o lugar de vazio, aporta-se aí a contradição do
mundo pós-moderno. Na visão retangular prevalece o novo recorte da vida: telas
de celular e televisão, janela do ônibus e estação do trabalho. Cubículos e
bolhas que servem de proteção e afastamento esvaziando todo o sentido de
sociabilidade.
A
visão de Yu Jina é estreita: não consegue ver nada além dos pequenos retângulos
que emolduram sua vida. Seu olhar apreende apenas o que é imediato; assim, a
câmera focaliza as imagens pelos retângulos, isto é, sempre uma visão que corta
a totalidade, mantendo-se em um nível de egoísmo primário. Esse tipo de
enquadramento é literalmente um quadrado, quer dizer, um recorte muito
reduzido da realidade que traduzido por uma fotografia em tons acinzentados.
Em suma, Aloners traduz para o cinema aquilo que o sociólogo Byung-Chul Han identificou como uma característica das sociedades capitalistas modernas avançadas. As pessoas são cobradas a ter uma positividade mesmo com a desolação do entorno. A autoexpiação liga os vivos e os mortos vinculando Jina ao fumante melancólico. Os fantasmas que esgueiram nas imagens de câmeras ou nos corredores dos prédios de solitários aparecem como uma confirmação enfática de uma crise que é, antes de tudo, existencial.
Cotação: ☕☕☕☕☕