terça-feira, 11 de junho de 2024

Cléo das 5 às 7


Cléo das 5 às 7
(Cléo de 5 à 7), 1962. De Agnès Varda

As cores estão nas cartas, nos presságios, não na vida na qual há suspensão das certezas. O afoitamento da doença e o enigma do cotidiano.

Cleo passa algumas horas esperando o resultado de um exame e nesse sentido sua relação com a cidade é de espera e de ansiedade. O deslocamento pelo ambiente urbano demonstra a força da vida, mas ao mesmo tempo o alheamento pela multidão aos seus dramas individuais. Passando por cafés, lojas, transporte público e parques Cléo lida com a incerteza com seu fluxo de pensamentos revelando a inconstância e a angústia.

Mas Paris paira soberana, com seus códigos e ritmos. Os elementos da cidade podem ser interpretados pela personagem como oráculos, ordálios cujos sinais sutis antcipam o futuro. O filme começa exatamente nesses termos, com a visita a uma cartomante. Mas diante de prenúncios insatisfatórios, a sua busca de revelações continua. Desse modo, situações casuais são tomadas por Cléo como indícios de algo possivelmente negativo que irá se revelar no fim do dia.

A fotografia (restaurada) é belíssima, espelhando a cidade em várias superfícies: vidraças, espelhos, fontes d’água, automóveis e janelas. Os travellings conduzem o olhar do espectador por Paris na perspectiva da personagem. Andar pela cidade, no entanto, pode ser uma fonte de distração, mas não de amparo. Cada rua é um microcosmos com diferentes personagens aos quais suas histórias de vida não podem ser absorvidas por Cléo. Mas esse anonimato sempre será uma via de mão dupla.

A narrativa coloca-nos no lugar de Cléo tensionando a superficialidade da personagem (uma moça vaidosa) a partir dos impactos filosóficos da existência. Revela-se, assim, um traço característico da Nouvelle Vague: cineasta Agnès Varda traz as implicações da finitude para o horizonte de uma jovem mulher. A conflitualidade decorrente de tal situação reverbera na cidade que apesar de tudo mostra-se magnifica . A sensação de solidão é persistente – quando sofremos, sofremos sozinhos – só atenuando-se no arco final quando Cléo encontra um soldado a espera de ser enviado para o conflito na Argélia.

Assim, as duas pessoas que têm a morte como uma possibilidade podem romper as amarras contra a incomunicabilidade e construir um elo em comum. É na humanidade, portanto, e não na cidade que há respostas para a superação da iminente mortalidade. Não há para o casal outro caminho além de confiar no laço recém constituído. Basicamente, a filosofia entra na narrativa fílmica pela temática da morte se resolve com as garantias oferecidas pela amizade e afeto.

Cotação: ☕☕☕☕☕


sexta-feira, 31 de maio de 2024

Abigail

Abigail, 2024. EUA. De Tyler Gillett, Matt Bettinelli-Olpin

Poderia ser mais claustrofóbico, menos inusitado, menos preguiçoso, mas ainda é engraçado.

Bandidões da pesada são incumbidos de sequestrar uma garotinha chamada Abigail, mas as coisas não saem exatamente como deveria já que a mocinha, bem, podemos dizer que ela não é exatamente uma mocinha. Acho que não é novidade para ninguém que os filmes de vampiros se tornaram autorreflexivos...

Inclusive, há um conto de Stephen King chamado “Popsy” sobre uns desavisados que sequestraram o neto de um morcegão. Muito fácil encontrar a associação entre o conto e o filme, ressalvando que Abigail não precisa da ajuda para descer o terror nos incautos. Há um momento no qual uma televisão exibe um episódio de cartoon chamado Pantry Panic (1941) em que um gato famélico tenta comer o Pica-pau, mas este também tem planos de papar o bichano. Bem, é com esse tipo de obviedade que estamos lidando.

O jogo de gato e rato (gatos e morcegos?) sustenta as premissas e a narrativa contanto com citações sobre vampiros e um humor engraçadinho. Devido às várias dicas dadas desde o início, não seria preciso um Sherlock pra intuir sobre a armadilha à espreita. Mas os personagens são bons para o humor ácido e não para o exercício do tutano.

A personagem título ganha a presença de cena no momento adequado, arrebatando seus adversários na ordem certa: dos menos aos mais interessantes. Assim, merecem destaque Joey, a responsável por cuidar da "garotinha", e Frank, o chefe da equipe. Eles precisam liderar os sobreviventes no momento em que o embate com vampira se desnuda. Embora haja sustinhos convenientes, o clima terrir dá a tônica com um ritmo que impede o espectador de ver as pontas soltas do roteiro.

Comicamente a história se sustenta, mesmo com personagens tão desinteressantes que na prática tanto faz torcer pela Abigail ou pelos sequestradores. A metáfora sugerida de ratos x morcegos é válida, afinal, todas elas merecem a dedetização e se entrarem em briga confesso que torço pela briga...

Ficou com dó? Leva para a casa uai... Cotação: ☕☕☕

Observação: O conto do King pode ser conferido no livro Pesadelos e Paisagens Noturnas. V.1

Shin Gojira


Shin Gojira
, 2016. Japão. De Hideaki Anno

O tom nacionalista de Shin Gojira (2016) passou despercebido: uma história sobre a reorganização militar do país a fim de superar as adversidades. Estas podem até ser os desastres naturais, mas a questão nuclear é o ponto inegável.

A abordagem é a política e não a história dos Kaijins em si; nem mesmo o cinema catástrofe domina a projeção. Trata-se da articulação política dos médios escalões do governo para impedir a perda de autonomia do país perante a comunidade internacional ou dos Estados Unidos.  Assim, uma mobilização para destruir a criatura que apareceu no território japonês e salvar vidas choca-se com a hesitação dos políticos convencionais e dos interesses internacionais. Trata-se, portanto, de defender a revitalização do Japão com a substituição da engessada burocracia por uma geração legitimada pelo mérito. A hierarquia e a respeitabilidade tradicionais são entraves à modernização – um mote discursivo que se repete por lá. Quando o mostro emerge, a sequência das decisões tomadas em reuniões regidas por uma pompa e um protocolo denunciam o imobilismo a ser superado pelos “modernos”.

O filme defende as premissas da maioridade do Japão e da sua saída da autônoma em relação dos Estados Unidos. Isso dito de forma explícita e didática, muitos diálogos, inclusive, são pronunciados para a câmera como a preleção de um professor diante da turma. Trata-se de um filme educativo que propõe o rearmamento da nação nipônica, mas tudo com a dita responsabilidade pois a própria arrogância imperial é lembrada.

O filme peca por esse excessivo empreendimento moral, tornando o mostro e mesmo o desastre aspectos quase acessórios. Os personagens são rasos e unidimensionais, estão ali para pensar a melhor solução para o país com uma abnegação típica de propaganda de guerra. Por tomarem decisões a uma distância considerável do monstro, o próprio perigo que correm é reduzido, embora haja, naturalmente, os sacrifícios e as expiações da rodada.

Além disso as cenas de destruição e do próprio monstro são apenas razoáveis. Há um aspecto retrô da criatura, bem em conformidade com um ideário político em si controverso. Os estereótipos japoneses são mostrados a exaustão revelando um filme antigo em roupagens hodiernas.

A representação dos norte-americanos é ambivalente, de um lado são apresentados como autoritários e com exigências exclusivamente favoráveis aos seus próprios interesses, mas, do outro lado, confiam aos japoneses uma solução própria. As menções aos ataques de Hiroshima e Nagasaki ocorrem mais de uma vez e o trauma do ataque nuclear paira durante toda a narrativa. A fim de evitar o pior, Estado e nação precisam da harmonia de modo que modo que o novo e o antigo possam ser integrados.

Enquanto isso, Godzilla vai se movimentando e cientistas, políticos e militares precisam conter seu avanço sobre Tóquio. Depois dos desarranjos iniciais criados pela paralisia política uma resposta técnico-militar é fabricada e colocada a prova. O sucesso dessa empreitada vai garantir a autonomia do país evitando, assim, sua invasão pelos estrangeiros. Os olhos dos Estados Unidos e da Europa estão voltados para a terra do sol nascente, já Rússia e China são colocadas de lado com uma certa suspeição.

A ideologia nacionalista e militarista não são propriamente novidades no Japão, mas esperamos que assim como o Gojira elas continuem adormecidas.

Cotação: ☕☕☕