sábado, 25 de maio de 2024

Miss Zombie

Senhorita Zumbi (Miss Zombie), 2013. Japão. De Yoshiki Kumazawa e Satake Kazumi.

"Devemos ter medo dos vivos, não dos mortos". Essa é uma frase que resume grande parte dos filmes de zumbis. Fido, Warm Bodies, Zombie plage são algumas das associações as quais não me esquivo em fazer.

Filme perturbador. Uma leitura sobre a morte como um estado de perpétua dor e tristeza. A exploração transcende até o pós-vida com o emprego de uma mulher zumbi para a realização de atividades domésticas. Como é de praxe as coisas saem do controle e dessa vez não estou falando de um apocalipse ou surto epidêmico; temos aqui a boa e velha cupidez do ser humano com forte ênfase sobre a violência do patriarcado. Algo do tipo: “Olha, um zumbi, vamos violenta-lo? É seguro, confia!”

Há um subtexto sobre a exploração dos imigrantes, mas subsumido pela temática de uma vivência aristocrática dentro de uma família comandada por um médico insensível. A desumanização do zumbi, como metáfora do estrangeiro, dá o impulso necessário à trama com a tematização do preconceito, da vida precárias e da violência sexual. O filme ingressa no terror pelo sofrimento de Shizuko, a esposa atenta para conduta libidinosa do marido. Além disso, seu filho, Kenichi, acaba se aproximando da criatura ao ser salvo de um acidente potencialmente fatal.

O filme vai constituindo uma cultura necrófila com constantes violações perpetradas contra a moça zumbi. Alguém aí se lembra de “Dogville”? Lar von Trier é você que está aí meu filho?


[Logo acima Nikole Kidman em Dogville, e mais ao alto Ayaka Komatsu em Miss Zombie, as semelhanças são maiores do que o esperado]

Além disso, a casa a qual a Miss Zumbi serve possui uma arquitetura lúgubre e semelhante a uma paisagem tumular. As construções parecem monumentos mortuários, aspecto reforçado pela fotografia preta e branca com gradações fugidias e contrastada por meios tons e pelos jogos de sombra. A luz do sol não consegue atravessar as nuvens opacas realçando o conflito entre o mundo dos vivos e dos mortos. À noite a ambiência torna-se mais desolada. Algo entre uma sepultura reaberta e uma favela terceiro-mundista.

O desenvolvimento da história apresenta furos, a comunidade adapta-se rapidamente a presença da zumbi. Todo modo, a verosimilhança construída é o suficiente, pois o plano geral consegue combinar o horror das relações familiares adoecidas com a proscrição e abandono imposto a alguns seres. A partir desses elementos entende-se a promiscuidade entre os vivos e os mortos.

Cotação: ☕☕☕

quinta-feira, 23 de maio de 2024

O Rei e Eu


O Rei e Eu (The King and I), 1956. EUA. De Walter Lang

O rei e eu ou a supremacia da Inglaterra... antes dos de-coloniais, dos anticoloniais tivemos os pró-coloniais.

Muito já foi dito sobre a representação de Ásia e África no cinema, mas nunca é demais ressaltar o comprometimento ideológico com a política imperialista e o colonialismo. As mais diversas expressões culturais foram (e ainda são) utilizadas como forma de legitimar o domínio ocidental e ridicularizar ou caricaturar as estratégias de resistência.

Filme que faz parte dessa galeria é o clássico O Rei e Eu de 1956. O plot gira em torno de Anna Leonowen, uma professora inglesa contratada pelo rei de Sião para educar as crianças reais. Viúva de um militar inglês e preocupada com a educação de seu próprio filho ela aceita o trabalho mudando-se para uma terra distante e misteriosa. Os primeiros planos do filme nos ajudam a dimensionar o exotismo de Sião: pessoas com trajes exóticos, elefantes trafegando pelas ruas, palácios monumentais etc.

Toda a narrativa desenvolve-se a partir do olhar de Anna, assim conheceremos o rei, suas esposas e seus filhos (este um dos momentos famosos da história do cinema). O filme é estruturado na relação entre a professora (representação do domínio ocidental) e o rei de Sião (representação do despotismo oriental). Na verdade, o rei é sagaz e inteligente, embora seja desprovido do saber do ocidente. Caprichoso e orgulhoso como “devem ser” os soberanos absolutistas ele recorre à professora para tornar seu país “mais científico”.

Assim chegamos ao elemento nodal do filme: os esforços da professora para tornar Sião mais científico. Anna passa a transmitir o saber ocidental, sinônimo de verdade e civilização, aos filhos do rei. As poucas cenas em que Anna aparece lecionando pode nos propiciar uma interessante reflexão sobre o processo civilizador. Ela insiste em ensinar aos alunos várias canções, como Home, sweet home, levando o rei a reclamar que não estava sendo paga para ensinar canções, mas sim ciência. Possivelmente podemos tomar essa atitude como a recusa inconsciente em transmitir o conhecimento.

Outra cena curiosa é aquela em que ela substitui o mapa tradicional do país, no qual Sião era a referência, por um modelo ocidental em que a Inglaterra ocupa o centro do mundo. Torna-se evidente não só as pretensões imperialistas inglesas como uma cosmovisão na qual faz parte da “natureza” e da normalidade somente aquilo que valida o viés imperialista.

O ápice da trama decorre da necessidade do rei de Sião em mostrar a Inglaterra o nível civilizacional de seu país. A rainha Vitória, informada de que Sião seria bárbaro decide enviar uma comitiva para averiguar tais informações. Para evitar a intervenção inglesa, Sião deve-se mostrar suficientemente civilizada e daí a centralidade do papel de Anna. Uma recepção à comitiva inglesa é preparada, para isso as esposas reais aprendem a usar talheres e vestidos do Ocidente. O banquete é preparado ao estilo inglês: comida, bebida e até os charutos. Cabem aos ingleses a decisão sobre quais povos são civilizados tomando sua própria cultura como referencial .

O banquete é um dos momentos engraçados do filme, pois o rei de Sião não domina os códigos de conduta ingleses oferecendo charutos em momentos inoportunos e sendo rude com seus convidados. Ao seu lado, Anna busca minimizar as gafes para mostrar aos seus compatriotas o quão esclarecido é o monarca siamês.

Embora a mensagem seja eurocêntrica o filme se trai por um momento: Anna convence o rei a apresentar um espetáculo no banquete. Seu propósito é encenar a adaptação do livro A cabana de pai Tomás feita pela mais recente esposa do rei inconformada com sua situação de concubina. Tal aspecto da trama embaralha involuntariamente o discurso colonial. A história apresentada pela jovem esposa passa-se em Sião e não no sul dos Estados Unidos. A jovem cativa usou a obra de uma escritora norte-americana para declamar a condição de escrava, no entanto explicitou como o ocidente tinha suas próprias formas de “barbárie”, pois os Estados Unidos estavam no auge da Guerra Civil.

A relutante esposa aproveitando das festividades foge para encontrar com seu verdadeiro amor, acaba capturada e colocada em presença do rei. Aqui começa o desfecho do filme, o rei incapaz de castigar sua concubina em presença de Anna – em presença dos olhos da civilização – cai em uma intensa depressão adoecendo profundamente e confirmando os temores de seu primeiro ministro de que a professora o destruiria.

Anna toma conhecimento da morte próxima do monarca; momentos antes de morrer o rei passa o reino ao filho que anuncia a necessidade de mudanças. Os ensinamentos da professora lograram êxito! Ele aprendeu a questionar os “ultrapassados” comportamentos siameses, mas não ao poder próprio poder despótico. O príncipe faz seu primeiro pronunciamento ao grupo que rodeia o pai moribundo. O embate do rei com a civilização foi doloroso e esgotou toda sua energia. Ele deve morrer para que seus sucessores, uma geração revitalizada, distante das bárbaras tradições, aproximem-se da Inglaterra.

Novamente o projeto colonizador impõe-se: a civilização vence a barbárie, o preço é a morte do rei, isto é, dos antigos dirigentes que serão sucedidos por uma nova geração mais ocidentalizada. Anna continuará professora do jovem rei mantendo sua influência ocidentalizadora. Rei morto, rei posto. Enquanto um falece o outro é coroado com repúdio à barbárie, mas não à submissão inglesa. Ansioso pela ocidentalização o jovem príncipe autoproclama-se em presença da professora britânica. Mais um país oriental a ser tutelado pela Inglaterra.

Enfim a civilização...

Cotação: ☕☕☕☕

Observação: texto originalmente publicado em 21 de Setembro de 2004 no já extinto blog Nova Tropical.

terça-feira, 21 de maio de 2024

A negra de...


A negra de... (La noire de...), 1966. França-Senegal. De Ousmane Sembène.

O quarto de empregada é uma senzala em miniatura? Mecanismo de confinamento ou automação do ser social destituído do seu propósito a partir de uma lógica externa? Menos filosofia por favor... eis a origem do cinema africano!

O filme La noire de... de autoria de Ousmane Sembène foi lançado em 1966 sob as influências dos movimentos de renovação do cinema, sobretudo a Nouvelle Vogue. O plot discorre sobre a prisão domiciliar na qual uma jovem senegalesa é colocada por um casal francês. Diouana, a moça, conheceu seus empregadores em Dakar e na esperança de melhorar sua situação de vida aceitou um emprego na França; haviam acordado que ela cuidaria das crianças, no entanto ela assume todo o cuidado da casa. Isolada, desterritorializada e sem nenhuma rede de apoio Diouana se torna vítima de abusos crescentes por parte dos seus patrões.

O filme conta com uma fotografia preta e branca que registra os vários contrastes sociais e raciais. A imagética construída sobre o espaço coloca a mobilidade e a liberdade de ir como elementos essenciais para que a personagem se perceba em um regime de escravidão. O seu mudo fica restrito à cozinha, ao banheiro e ao quarto com a movimentação organizada pelas necessidades da faxina e dos demais afazeres domésticos. Atenção para o detalhe do azulejo branco da cozinha com seus ladrilhos enquadrando e retendo a pulsão de vida da jovem.


[A parede como um espelho que não reflete o sujeito, a janela fechada e lacrada]

Outro ponto da trama é noção de máscara, seja como objeto de fetiches dos colonizadores – todo colonizador é um colecionador – ou como ato de ocultar as verdadeiras intenções por meio de uma aparente cordialidade. Quando Diouana percebe os reais interesses da “madame” já lhe era demasiadamente tarde.

A premissa desenvolvida sobre a relação de exploração inclui alusões ao colonialismo e à escravidão. A representação do espaço arquitetônico constrói interessantes soluções de dinamização da narrativa. O mundo do trabalho de Diouana é fechado: não há janela na cozinha e seu olhar está para o chão e para as superfícies que está limpando. O apartamento é claustrofóbico e quando a cidade vista da janela revela-se um mundo distante e inacessível em contraste com os espaços abertos e familiares de Senegal, a ambiência da qual fazia parte.

O interior funcional e prático do apartamento se constitui em uma gaiola não só para a jovem como para os próprios patrões em seus papeis de capatazes. O espaço exíguo acentua os conflitos entre o casal e todos parecem infelizes naquele lugar.

Em Dakar, a arquitetura moderna dos prédios, monumentos, ruas e escadarias são metáforas do colonialismo e das ilusões europeias. Aos olhos desavisados, a metrópole exerce um fascínio não só pelas novas oportunidades criadas, mas pela promessa (falsa) de incluir aqueles que dominarem os códigos hegemônicos. Talvez essa seja a principal armadilha oferecida pelos projetos coloniais, afinal europeizar-se não é se tornar europeu, mas sim objeto de saber do europeu.

O ato de Diouana de oferecer uma máscara como expressão de boa vontade voltou-se contra ela, pois assim como o presente ele acabou capturada capturados pela lógica do apartamento. As questões sociais evocadas pelo filme como o tráfego de pessoas e a invisibilidade dos imigrantes são atuais. No que se refere ao Brasil esse filme tem muito a dizer pelo passado escravocrata do país.

Nunca é demais lembrar que o Brasil está mais perto de Senegal do que da França. Diouana foi capturada pelo mecanismo colonial que transforma o diferente em exótico e a alteridade em adorno. O mascaramento da brutalidade das relações de classe transformam o sujeito apoderado em um estrangeiro destinado a cair em um poço de vazio, uma queda ruma ao nada e ao não ser.

Cotação: ☕☕☕☕