Rastros de ódio (The Searches), 1956. De John Ford
“Aos que preferem um ‘neo-realismo’ (mesmo super) a um western (mesmo da produção B), poder-se-ia recordar, se isso não fosse inútil, o fato histórico de que o western é o único gênero cujas origens se confundem com as origens do cinema, antes de mencionar outra verificação, a de que o western nunca envelhece.” (VIANNA, Antonio Moniz. Um filme por dia. 2004)
O cinema de John Ford é um compromisso com a excelência, a busca pela composição bem trabalhada. A cena inicial já destaca a qualidade do filme. Do interior de um casebre, a porta se abre, lá fora, o deserto inóspito, a câmera avança e estende o campo de visão, o telespectador pode, portanto, vislumbrar esse cenário western.
Um deserto próximo a Utah, vigoroso, ilustração da ânsia do homem em derrotar o selvagem, inaugurando os postos avançados da civilização.
O herói é John Wayne, que interpreta Ethan, um veterano do exército confederado que chega a casa do seu irmão, perdida na imensidão do Monument Valley, pouco antes do massacre dessa família, cometido por índios. Uma sobrinha de Ethan sobrevive, ainda que raptada pelos agressores.
O ex-confederado inicia, então, uma perseguição pelo deserto, buscando, em primeiro lugar, a vingança e, se possível, recuperar sua familiar. De fato, a motivação de Ethan não é o resgate de sua sobrinha, mas a dizimação do indígena, uma “raça” pela qual ele sente desprezo.
Aqui se encontra o ponto de Rastro do ódio que eu pretendo explorar: as relações ocultas mocinho/vilão existentes no filme. Ford é um cineasta complexo, portanto em sua obra há vários matizes a serem explorados, alguns, como este, menos evidentes.
Em um primeiro momento, os papéis parecem bem definidos, há os colonos (civilizados) e os indígenas (bárbaros). Esses últimos são animalescos, assassinaram os desbravadores e, portanto, devem ser caçados (daí The Searches), isto é, punidos exemplarmente.
O personagem de Wayne, em determinado momento, diz que um índio não é humano, ele cavalga em seu cavalo e, quando este se exaure, é abatido e devorado. De fato, com essa associação não há como legarmos qualquer valor ao nativo. No western a relação homem-cavalo é importantíssima, tratando-se de um genuíno laço de lealdade. Se o índio não reconhece esse dever moral para com o eqüino, há mais uma prova de sua proximidade com a selvageria, uma cultura que não é pautada pela ética.
O grupo étnico que Ethan persegue é o Comanche, liderado pelo cruel Scar. Um homem que mata, aprisiona e comete o infame ato de retirar o escalpo. Essa tribo é considerada hostil até por outros indígenas. Ou seja, dentro da narrativa do filme, o extermínio desse povo já está autorizado.
Contudo, aos poucos as sutilezas relativizam, para o bom entendedor, as relações entre herói e vilão. O homem que acompanha Ethan até o final de sua busca é Jeffey Hunter, filho adotivo do família assassinada. Porém esse rapaz, por ter sangue indígena, é mal recebido pelo personagem de Wayne.
Hunter, ao contrário de Ethan, quer reaver sua irmã a qualquer custo. Já esse último está mais empenhado na vingança, chegando a cogitar em assassinar a sobrinha, ao perceber que ela poderia estar adaptada à cultura Comanche.
O primeiro véu do herói se desmancha, pois ele é racista, racista extremado. Ethan quer um massacre e não um resgate. Ele não respeita os cadáveres dos índios, mutilando seus corpos inertes. Trata-se de um homem só e amargurado, alguém realmente apto para viver no deserto, deserto que nada mais é que o reflexo de sua postura eremita.
Os índios são retratados negativamente, ou são violentos ou possuem aquela idiotice dos povos inferiores, sendo facilmente manipuláveis. Porém, há um momento Ethan e Hunter e deparam com uma indígena que eles haviam conhecido, ela é uma boa mulher, mas não foi poupada da retaliação (massacre) conduzida pelas tropas do exército. É quando o acompanhante de Wayne comenta que não haveria motivo para ela ser executada.
Aqui a narrativa faz – em nota de rodapé, é verdade – uma pergunta: então, não são apenas os brancos a serem executados injustamente? Questionamento que não recebe resposta, mas que ali se encontra justamente para inquietar o telespectador.
Scar, o terrível índio, também teve seus filhos assassinados (ele usa essa palavra) pelo homem branco. Portanto sua ação é uma reação. Aqui, o véu do vilão também cai, já que foram os autóctones os primeiros a serem ultrajados, a terem seus territórios invadidos. Com uma sutileza – e se fosse outro cineasta, eu diria involuntária – Ford nos trás a idéia de que o fato e o que é dito sobre o fato se confundem. Idéia que será claramente expressa em O homem que matou o facínora.
Existe mesmo um paralelo entre o rancho e a aldeia destruída. Um plano que se repete é aquele que mostra a destruição externa pelo ângulo do interior dos escombros. Os brancos e os índios se digladiam, mas reza a lenda (que não é hollywoodiana) que são os bárbaros somente esses últimos. E em Ford, a lenda é a história.
Nos atos finais, quando a aldeia de Scar é atacada pelas tropas do exército há uma cena em que vemos uma criança quase ser esmagada pela cavalaria americana. As chacinas não poupam filhotes, sejam brancos, sejam índios.
Porém a cena mais enigmática é aquela em que garota branca, mas já transformada em uma Comanche, foge horrorizada, temendo ser morta por sem próprio tio. Aos olhos dos índios, o assassino é Ethan. Claro que no último momento o implacável vingador reconhece na pele branca uma igual, mas houve um momento de dúvida, de ambigüidade do “herói”, que não pode ser apagada pela narrativa mais evidente.
Em suma, esse é apenas um dos muitos pontos que podem ser explorados. O que evidencia a complexidade desse filme e a necessidade de voltarmos continuamente a esses clássicos.
Ao final, Scar e Ethan, em seus extremos se equiparam. Em ambos há medidas de brutalidade, tristeza e solidão. O chefe destemido e o ex-soldado amargurado, nem tão diferentes e não tão semelhantes. Homens do deserto, isto é o que eles são.
Cotação: Ótimo
Um comentário:
Por favor leia se posspivel este comentario sobre este filme no blog:
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Obrigado.
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