domingo, 11 de agosto de 2024

The Misouri Breaks (Duelo de Gigantes)

Duelo de Gigantes (The Misouri Breaks), 1976. De Arthur Penn.

The Misouri Breaks dialoga com as transformações socioculturais dos anos sessenta e setenta, bem como a influência do movimento cinematográfico conhecido como Nova Hollywood. O filme é estruturado em torno do gênero Western, a morada do cinema americano, com muitas desconstruções de foco narrativo e de protagonismo.

O filme tende a assumir a perspectiva dos bandidos destacando os laços entre eles. São uma guilda fraterna, amigos que se preocupam uns com os outros. Contra eles está o mundo dos poderosos utililzando-se o discurso da lei e da ordem para cometer suas próprias injustiças. Os grandes proprietários agem hipocritamente; condenando nos atuais bandidos o que eles próprios fizeram no passado.

No filme, o bando liderado por Tom Logan (interpretado por Jack Nicholson) é um grupo marginal dedicado ao roubo de cavalos, mas atraem a antipatia de um proprietário que contrata um temido justiceiro chamado Robert Lee Clayton (Marlon Brando) para matá-los. A tensão construída entre o chefe dos bandidos e o caçador de criminosos dimensiona a narrativa. Não é possível afirmar com certeza onde encontra-se a regra da moralidade, pois Logan e Clayton são disruptivos. A presença deles assegura a impossibilidade de delimitar no Oeste selvagem a seperação entre a civilização e a barbárie.

O personagem de Nicholson é um cafajeste, embora tente ser agradável sua conduta charmosa não esconde a violência. Já Brando entrega um personagem extremamente afetado, um justiceiro que alterna entre o bufão e o assassino frio. Seu personagem poderia ser uma das típicas personas de Klaus Kinski: o janotismo, a privação física-corporal, a violência estetizada e o alheamento ao perigo revelam a paradoxal combinação entre leste e oeste.

O embate entre os dois custa chegar as vias de fato. Lee Clayton mostra-se um sádico com sensibilidade de artista; ele faz questão de mostrar sua “genialidade”, Logan mostra-se dividido e seduzido pela possibilidade de se tornar um simples fazendeiro. Além disso ele se envolve com a filha do fazendeiro que encomendou sua morte, acrescentando novos problemas ao plot.

O filme se passa na região de Montana, nas proximidades do rio Misouri trazendo um visual mais frio que árido. Embora a exploração econômica da região não seja o foco, fica evidente as dificuldades de colonização. O roubo de gado é um dos muitos expedientes empregados pelos foras da lei para sobreviverem. Isso não muda muito em relação ao passado, quando os primeiros colonos massacraram os nativos.

As sequências de comédia física utilizam gags para adocicar a visão do público com os fora-da-lei. O humor suaviza a violência (ainda que ela esteja presente durante todo o filme) recuperando o lado mais anárquico da contracultura. Isso pode ser observado em vários momentos; a inabilidade dos criminosos em roubarem um trem ou cavalos da polícia montada canadense acrescenta puerilidade até certo ponto incompatível com o sisudo lado Western do filme. A liberalidade sexual da personagem Jane Braxton também vai nesse sentido, isto é, são os novos valores que emergem.

Heterodoxo o bastante para desagradar os fãs do gênero, The Misouri Breaks tematiza a corrupção e a lealdade, mas sem os mocinhos costumeiros. Cabe ao anti-herói expor as hipocrisias vigentes do capitalismo em ascensão e denunciar a punição dos pequenos em proveito dos grandes parasitas.

Cotação: ☕☕☕☕

Filme assistido em 11 de agosto de 2024.

sábado, 3 de agosto de 2024

Comanche Station (Cavalgada Trágica)

Cavalgada Trágica (Comanche Station), 1960. De Budd Boetticher.

Eis o cinema clássico com colheradas de inquietações autorreflexivas. Personagens questionando-se quanto ao sentido da existência no Velho Oeste com os vilões relutando em serem vilanescos.

Cody (interpretado pelo veterano Randolph Scott) vive uma busca infrutífera na região dos Comanche atrás de sua esposa raptada dez anos atrás. Em uma dessas andanças resgata uma mulher branca recém-sequestrada, a Sra. Lowe, iniciando o retorno rumo à civilização. Um plot bem simples, mas carregado de camadas e nuances. Os Comanches são antagonistas, mas simplesmente reagindo a ataques recentes.

Cody cruza com um antigo desafeto, Lane, que decide acompanha-lo no intuito de receber a recompensa pelo resgate da moça. Lane e seus dois pistoleiros são personagens ambíguos, indivíduos cinzentos; não podem ser equiparados facilmente aos malvadões do Western. Embora terminem por assumir a posição de vilões, encontram-se abertos a reconsiderações. Advinham, inclusive, seus próprios destinos: em um dado momento Cody pergunta a um dos jovens criminosos se ele estaria ciente de seu possível enforcamento ao que o aprendiz de facínora responde “sim”.

No Oeste não há como fugir dos papeis impostos; o solitário está fadado à solidão; e não obstante o seu respeito aos indígenas não lhe cabe outro destino se não matá-los. Os Comanches, por sua vez, são uma força quase natural. Nos limites do Novo México encontram-se reduzidos a uma provação adicional ao herói. A própria Senhora Nancy Lowe, possivelmente violentada pelos indígenas, regressa com uma sensação de impureza, externando o lugar ocupado pela mulher nesse universo masculinizado.

Mas há inflexões geradas pelos ventos das mudanças. Trata-se de uma das muitas remissões do gênero relacionada ao contexto sociocultural dos anos sessenta nos Estados Unidos. O desfecho, com Cody se voltando para o território selvagem, dialoga com a caminhada de John Wayne no filme Rastros de ódio de 1956. Neste último, o plano de fundo exibido são as formações rochosas do Monument Valley ao passo que em Comanche Station são as belíssimas paisagens de Alabama Hills.

Os dois filmes abordam o resgate de brancas abduzidas por Comanches. Ambos reforçam a moral do homem branco em seu dever civilizacional, mas denunciando a destruição das culturas nativas. Tal revisionismo do gênero – miticamente considerado o fim do Western – seria radicalizado anos mais tarde com um outro filme (talvez o mais potente de todos): Once Upon a Time in the West de Sérgio Leone. Ferrovia e telégrafo finalmente ligam leste e oeste atravessando planícies outrora dominadas pelos nativos-americanos. E uma vez concluída a missão civilizatória, pistoleiro e ranger tornam-se obsoletos e desnecessários. Comanche Station prevê tal situação e dita a possibilidade do “bang-bang” se intelectualizar por meio da autorreflexão.

Cotação: ☕☕☕☕

[Alabama Hills, região muito utilizada nas locações de filmes, aparece em Comanche Station].

[Monument Valley, regitão também utilizada nas locações cinematográficas, aparece em The Searches e Once Upon a Time in the West].

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Jogos de Apocalipse

Jogos de Apocalipse (After the Dark), 2013. De John Huddles

Este filme tem um título alternativo, The Philosophers, empregado na distribuição para outros lugares fora dos Estados Unidos. Os norte-americanos não gostam muito desse lance de filosofia e pensamento, portanto faz sentido ficarem com um título genérico: After the Dark.

Valeu a pena? Bem, podemos dizer que o filme é um esforço de abordar as temáticas filosóficas na forma de autoconhecimento. Adolescentes multiculturais estudando em Jacarta e oriundos de elites cosmopolitas enfrentam a prova final de um professor de filosofia cujo intuito é analisar as suas respostas individuais diante do fim do mundo. Porém a filosofia apresentada em classe mostra-se restrita a um exercício individualista e narcisista.

No último dia de aula o sr. Eric Zimit impõe um exame surpresa aos seus estudantes. Eles precisam decidir quem vive e morre com base em ocupações fictícias atribuídas pelo professor. Os eleitos deverão ocupar um bunker no decorrer de um ano com o propósito de salvar a raça humana. Nessas especulações os estudantes precisam tomar decisões e arcar com as consequências de suas escolhas. Tudo no faz de conta, claro.

Ao perseguir com ameaças e ridicularizações um aluno chamado James, o sr. Zimit revela-se como o antagonista. Ele mostra-se irritado com o jovem, aparentando ter sentimentos de rivalidade e de ciúmes. Segundo o professor, James é privilegiado e por isso a pressão na disciplina é merecida. Interpondo-se entre os dois está Petra, namorada de James, mas com uma posição ambígua em relação ao Zimit. Detrás dos esforços argumentativos do professor se escondem as dificuldades diante da perda, revelando uma visão bem oposta a uma moralidade estoica que eventualmente ele poderia emular.

E em meio a esse triângulo amoroso (ops.) somos agraciados com uma verborragia vazia sustentada por um suposto pensamento criativo de um curso de Iniciação à Filosofia Ocidental (ou algo do gênero). Partindo da proposta de imaginar realidades possíveis, a narrativa se complica com a inevitável constatação do elitismo sugerido: a salvação do mundo estaria nas mãos de uma dezena de jovens ricos.

O filme se organiza a partir da dramatização de três cenários apocalípticos com resultados distintos. No entanto, ao enfatizar o caráter pedagógico das realidades imaginadas a imersão em cada uma das histórias perde força. Talvez fosse necessário enfatizar linhas de tempo possíveis ao invés de um tipo de RPG educativo. Assim, nos importamos pouco com o destino dos personagens, pois sabemos que nada daquilo é real.

O filme também soa piegas ao defender com muito bom-mocismo as artes como o melhor antídoto para a destruição do mundo. Afinal, depois da escuridão só restariam os filósofos mirins na obrigação de decidirem entre a lógica ou a ética. Mas parece que nesse exercício a questão do sexo e da sexualidade ganha maior destaque do que a reflexão sobre a miséria e a finitude humana.

Mesmo com uma proposta bem intencionada o filme acaba nos entregando apenas um professor babão e uma garotada narcisista. Pensando bem, acho que o título After the Dark foi a melhor escolha mesmo.

Cotação

P.s.: Por dever do ofício docente filme assistido muitas e muitas vezes; a última delas em 29/07/2024.