quinta-feira, 23 de maio de 2024

O Rei e Eu


O Rei e Eu (The King and I), 1956. EUA. De Walter Lang

O rei e eu ou a supremacia da Inglaterra... antes dos de-coloniais, dos anticoloniais tivemos os pró-coloniais.

Muito já foi dito sobre a representação de Ásia e África no cinema, mas nunca é demais ressaltar o comprometimento ideológico com a política imperialista e o colonialismo. As mais diversas expressões culturais foram (e ainda são) utilizadas como forma de legitimar o domínio ocidental e ridicularizar ou caricaturar as estratégias de resistência.

Filme que faz parte dessa galeria é o clássico O Rei e Eu de 1956. O plot gira em torno de Anna Leonowen, uma professora inglesa contratada pelo rei de Sião para educar as crianças reais. Viúva de um militar inglês e preocupada com a educação de seu próprio filho ela aceita o trabalho mudando-se para uma terra distante e misteriosa. Os primeiros planos do filme nos ajudam a dimensionar o exotismo de Sião: pessoas com trajes exóticos, elefantes trafegando pelas ruas, palácios monumentais etc.

Toda a narrativa desenvolve-se a partir do olhar de Anna, assim conheceremos o rei, suas esposas e seus filhos (este um dos momentos famosos da história do cinema). O filme é estruturado na relação entre a professora (representação do domínio ocidental) e o rei de Sião (representação do despotismo oriental). Na verdade, o rei é sagaz e inteligente, embora seja desprovido do saber do ocidente. Caprichoso e orgulhoso como “devem ser” os soberanos absolutistas ele recorre à professora para tornar seu país “mais científico”.

Assim chegamos ao elemento nodal do filme: os esforços da professora para tornar Sião mais científico. Anna passa a transmitir o saber ocidental, sinônimo de verdade e civilização, aos filhos do rei. As poucas cenas em que Anna aparece lecionando pode nos propiciar uma interessante reflexão sobre o processo civilizador. Ela insiste em ensinar aos alunos várias canções, como Home, sweet home, levando o rei a reclamar que não estava sendo paga para ensinar canções, mas sim ciência. Possivelmente podemos tomar essa atitude como a recusa inconsciente em transmitir o conhecimento.

Outra cena curiosa é aquela em que ela substitui o mapa tradicional do país, no qual Sião era a referência, por um modelo ocidental em que a Inglaterra ocupa o centro do mundo. Torna-se evidente não só as pretensões imperialistas inglesas como uma cosmovisão na qual faz parte da “natureza” e da normalidade somente aquilo que valida o viés imperialista.

O ápice da trama decorre da necessidade do rei de Sião em mostrar a Inglaterra o nível civilizacional de seu país. A rainha Vitória, informada de que Sião seria bárbaro decide enviar uma comitiva para averiguar tais informações. Para evitar a intervenção inglesa, Sião deve-se mostrar suficientemente civilizada e daí a centralidade do papel de Anna. Uma recepção à comitiva inglesa é preparada, para isso as esposas reais aprendem a usar talheres e vestidos do Ocidente. O banquete é preparado ao estilo inglês: comida, bebida e até os charutos. Cabem aos ingleses a decisão sobre quais povos são civilizados tomando sua própria cultura como referencial .

O banquete é um dos momentos engraçados do filme, pois o rei de Sião não domina os códigos de conduta ingleses oferecendo charutos em momentos inoportunos e sendo rude com seus convidados. Ao seu lado, Anna busca minimizar as gafes para mostrar aos seus compatriotas o quão esclarecido é o monarca siamês.

Embora a mensagem seja eurocêntrica o filme se trai por um momento: Anna convence o rei a apresentar um espetáculo no banquete. Seu propósito é encenar a adaptação do livro A cabana de pai Tomás feita pela mais recente esposa do rei inconformada com sua situação de concubina. Tal aspecto da trama embaralha involuntariamente o discurso colonial. A história apresentada pela jovem esposa passa-se em Sião e não no sul dos Estados Unidos. A jovem cativa usou a obra de uma escritora norte-americana para declamar a condição de escrava, no entanto explicitou como o ocidente tinha suas próprias formas de “barbárie”, pois os Estados Unidos estavam no auge da Guerra Civil.

A relutante esposa aproveitando das festividades foge para encontrar com seu verdadeiro amor, acaba capturada e colocada em presença do rei. Aqui começa o desfecho do filme, o rei incapaz de castigar sua concubina em presença de Anna – em presença dos olhos da civilização – cai em uma intensa depressão adoecendo profundamente e confirmando os temores de seu primeiro ministro de que a professora o destruiria.

Anna toma conhecimento da morte próxima do monarca; momentos antes de morrer o rei passa o reino ao filho que anuncia a necessidade de mudanças. Os ensinamentos da professora lograram êxito! Ele aprendeu a questionar os “ultrapassados” comportamentos siameses, mas não ao poder próprio poder despótico. O príncipe faz seu primeiro pronunciamento ao grupo que rodeia o pai moribundo. O embate do rei com a civilização foi doloroso e esgotou toda sua energia. Ele deve morrer para que seus sucessores, uma geração revitalizada, distante das bárbaras tradições, aproximem-se da Inglaterra.

Novamente o projeto colonizador impõe-se: a civilização vence a barbárie, o preço é a morte do rei, isto é, dos antigos dirigentes que serão sucedidos por uma nova geração mais ocidentalizada. Anna continuará professora do jovem rei mantendo sua influência ocidentalizadora. Rei morto, rei posto. Enquanto um falece o outro é coroado com repúdio à barbárie, mas não à submissão inglesa. Ansioso pela ocidentalização o jovem príncipe autoproclama-se em presença da professora britânica. Mais um país oriental a ser tutelado pela Inglaterra.

Enfim a civilização...

Cotação: ☕☕☕☕

Observação: texto originalmente publicado em 21 de Setembro de 2004 no já extinto blog Nova Tropical.

terça-feira, 21 de maio de 2024

A negra de...


A negra de... (La noire de...), 1966. França-Senegal. De Ousmane Sembène.

O quarto de empregada é uma senzala em miniatura? Mecanismo de confinamento ou automação do ser social destituído do seu propósito a partir de uma lógica externa? Menos filosofia por favor... eis a origem do cinema africano!

O filme La noire de... de autoria de Ousmane Sembène foi lançado em 1966 sob as influências dos movimentos de renovação do cinema, sobretudo a Nouvelle Vogue. O plot discorre sobre a prisão domiciliar na qual uma jovem senegalesa é colocada por um casal francês. Diouana, a moça, conheceu seus empregadores em Dakar e na esperança de melhorar sua situação de vida aceitou um emprego na França; haviam acordado que ela cuidaria das crianças, no entanto ela assume todo o cuidado da casa. Isolada, desterritorializada e sem nenhuma rede de apoio Diouana se torna vítima de abusos crescentes por parte dos seus patrões.

O filme conta com uma fotografia preta e branca que registra os vários contrastes sociais e raciais. A imagética construída sobre o espaço coloca a mobilidade e a liberdade de ir como elementos essenciais para que a personagem se perceba em um regime de escravidão. O seu mudo fica restrito à cozinha, ao banheiro e ao quarto com a movimentação organizada pelas necessidades da faxina e dos demais afazeres domésticos. Atenção para o detalhe do azulejo branco da cozinha com seus ladrilhos enquadrando e retendo a pulsão de vida da jovem.


[A parede como um espelho que não reflete o sujeito, a janela fechada e lacrada]

Outro ponto da trama é noção de máscara, seja como objeto de fetiches dos colonizadores – todo colonizador é um colecionador – ou como ato de ocultar as verdadeiras intenções por meio de uma aparente cordialidade. Quando Diouana percebe os reais interesses da “madame” já lhe era demasiadamente tarde.

A premissa desenvolvida sobre a relação de exploração inclui alusões ao colonialismo e à escravidão. A representação do espaço arquitetônico constrói interessantes soluções de dinamização da narrativa. O mundo do trabalho de Diouana é fechado: não há janela na cozinha e seu olhar está para o chão e para as superfícies que está limpando. O apartamento é claustrofóbico e quando a cidade vista da janela revela-se um mundo distante e inacessível em contraste com os espaços abertos e familiares de Senegal, a ambiência da qual fazia parte.

O interior funcional e prático do apartamento se constitui em uma gaiola não só para a jovem como para os próprios patrões em seus papeis de capatazes. O espaço exíguo acentua os conflitos entre o casal e todos parecem infelizes naquele lugar.

Em Dakar, a arquitetura moderna dos prédios, monumentos, ruas e escadarias são metáforas do colonialismo e das ilusões europeias. Aos olhos desavisados, a metrópole exerce um fascínio não só pelas novas oportunidades criadas, mas pela promessa (falsa) de incluir aqueles que dominarem os códigos hegemônicos. Talvez essa seja a principal armadilha oferecida pelos projetos coloniais, afinal europeizar-se não é se tornar europeu, mas sim objeto de saber do europeu.

O ato de Diouana de oferecer uma máscara como expressão de boa vontade voltou-se contra ela, pois assim como o presente ele acabou capturada capturados pela lógica do apartamento. As questões sociais evocadas pelo filme como o tráfego de pessoas e a invisibilidade dos imigrantes são atuais. No que se refere ao Brasil esse filme tem muito a dizer pelo passado escravocrata do país.

Nunca é demais lembrar que o Brasil está mais perto de Senegal do que da França. Diouana foi capturada pelo mecanismo colonial que transforma o diferente em exótico e a alteridade em adorno. O mascaramento da brutalidade das relações de classe transformam o sujeito apoderado em um estrangeiro destinado a cair em um poço de vazio, uma queda ruma ao nada e ao não ser.

Cotação: ☕☕☕☕

sexta-feira, 17 de maio de 2024

A maldição dos Mortos-Vivos

A maldição dos Mortos-Vivos (The Serpent and the Rainbow), 1988. De Wes Craven

Filme apresentado como “baseado em uma história real” (sei) e inspirado no livro do etnobotânico Wade Davis. É quase um crossover entre Monsanto e Madrugado dos mortos (espere sua vez Resident Evil).

O filme inicia-se com um olhar etnográfico colonialista e arrogante. É a barbárie haitiana pelo prisma da ciência ocidental. Desde o início The Serpent and the Rainbow busca o choque cultural como uma forma de horror. Identifica-se, inclusive, uma sútil influência do filme italiano Cannibal Holocaust (1980) de Ruggero Deodato: eis o gore antropológico.

Uma indústria farmacêutica decide enviar o antropólogo Dennis Alan para uma pesquisa (roubo) da substância anestésica utilizada nos rituais zumbis. Anteriormente, Dennis estava na Amazônia estudando (roubando) ervas medicinais de um Xamã. Embora o interesse do nobre pesquisador fosse o de salvar vidas, os financiadores mostravam-se mais interessados nos possíveis lucros. Onde os ingênuos veem um serviço à humanidade os espertalhões já preparam a impressão do código de barras...

De fato, nas décadas de 1970 e 1980 cientistas norte-americanos e europeus identificaram e apropriaram do patrimônio genético e ambiental dos povos amazônicos. O próprio livro do antropólogo canadense Wade Davis fez parte da exotização das Américas caribenha e amazônica.

O filme de Wes Craven conseguiu captar – mesmo que de forma não intencional – esse contexto, sugerindo até os interesses da biopirataria. Por isso a narrativa funciona muito bem em sua caracterização do Haiti como lugar terrificante. O cenário pula de um local assustador para outro, há exposição detalhada do que seria o universo cultural caribenho; velas, crânios, rituais sincréticos revelam um Haiti obscuro e primevo – mas capaz de cativar o interesse de turistas americanos.

Alan conta com a ajuda da haitiana Marielle Duchamp, apesar da formação médica ela acredita nas cosmologias locais. Juntos, eles devassam as redes de bruxaria para informarem-se sobre a droga. Acabam ganhando a contrariedade e o antagonismo do chefe da polícia política, mas isso não impede que Alan usufrua dos prazeres corporais oferecidos pela exótica dou-to-ra em uma cena de sexo tão brega com direito ao close no rosto da atriz na hora do orgasmo. Senhoras e senhores, eis Wes Craven nos anos 80!

[Corpos, bruxas e feitiços é o que não faltam]

Alguns aspectos merecem ser destacados. O filme contém uma narração em off do protagonista assemelhando-se a um caderno de campo (uma forma de reforçar os aspectos documentais do filme). O contexto político da ditadura de Baby Doc fundamenta a sensação de urgência e risco manifestada pelos personagens ao enfrentarem a bruxaria e a violência policial, ambas controladas pelo chefe dos Tonton Macoutes.

Mas quando a lua é focada em primeiríssimo plano o filme de terror se revela como uma peça bem urdida e o sobrenatural ou o supranatural rege o desfecho, os mortos-vivos aparecem como uma sofisticada metáfora dos presos políticos. A bruxaria não se compara às atrocidades cometidas pela ditadura haitiana, portanto a luta do bem contra o mal revela-se um propósito universal.

Mas infelizmente sou obrigado a relatar que o expediente do bem deve ser lido como o despacho da droga zumbificante para os laboratórios da Europa e dos Estates.

Todos os caminhos levam a Roma, digo, a Havard.

Cotação: ☕☕☕