quinta-feira, 14 de março de 2024

O Vale do Gwangi


O Vale do Gwangi
(The Valley of Gwangi), 1969. De Jim O'Connolly

Antes que o Parque dos Dinossauros (Spielberg, 1993) catapultasse o gênero em começos dos anos 90 a temática dos mega-monstros já estava sedimentada na tradição cinematográfica. Em Gwangi temos uma aventura clássica na qual não há propriamente vilões, embora os conflitos e as rivalidades existam.

Os diálogos, os enquadramentos e o desenvolvimento da narrativa seguem de forma esquemática com uma introdução sólida para apresentar as características dos principais personagens. O grande eixo será o embate entre rancheiros e dinossauros com o ponto alto no momento em que os cowboys conseguem laçar um Alossauro (assemelha-se a um Tiranossauro).

Tudo isso porque na passagem dos séculos XIX para o XX artistas hípicos texanos estão percorrendo a fronteira com o México, lá eles descobrem o caminho para um antigo vale no qual os dinossauros continuam existindo. Decidem aumentar o prestígio do circo exibindo uma dessas criaturas apesar da resistência dos supersticiosos ciganos mexicanos que temem a maldição do Gwangi, o mais temido de todos os jurássicos.

Embora o filme seja bem inofensivo, os brancos são sempre apresentados como indivíduos em contraposição aos nativos, ciganos e mexicanos, apontados como religiosos, supersticiosos. A representação, no entanto, não é de toda negativa cabendo ao órfão Lope a condição de ajudante dos intrépidos exploradores.

Estereótipos à parte, há um tipo de fábula acerca da ganância do show-businesses norte-americano que alimenta a narrativa. O núcleo principal comporta o aventureiro Tuck (James Franciscus) e a amazona  T.J. (Gila Golan): um casal de namorados que não consegue acertar o interesse amoroso com a vontade de fazer fortuna. A ideia de capturar o monstro, elaborada meio ao acaso pelos artistas, e levá-lo à civilização é manjadona, porém fadada ao fracasso (vide King Kong).

Ao contrário do que poderia se esperar, a construção dos dinossauros foi bem executada graças às técnicas de stop motion – o que se tinha de mais moderno na época. Embora os efeitos especiais sejam limitados para os nossos padrões, a história segue a mesma toada da atual franquia Jurassic World. Aliás, temos até um professor com pouco traquejo social disposto a se arriscar para provar a existência das criaturas.

A conclusão  é crua, isto é, sem maiores desdobramentos, bem em conformidade com os padrões da época. Não apresenta nada de extraordinário, mas possui uma história bem organizada e tem belíssimas locações – gravado em Cuenca, Espanha, com cenas de desertos, cânions, catedrais e estádios de touradas. Enfim, o filme atesta que os monstrões há muito exercem o fascínio sobre nós.

E onde tem interesse sempre haverá um capitalista para mercantilizar. Everything is money, alright?

Como será que se diz isso em espanhol?

Cotação: ☕☕☕


domingo, 3 de março de 2024

Os palhaços



✈ Crítica a jato

Os palhaços (I clown), 1970. De Frederico Fellini

O filme começa como a rememoração de Fellini sobre as sensações que o circo e, sobretudo, os palhaços lhe causavam na infância. Uma criança acorda com o barulho da armação da tenda, durante o dia ela vislumbra o espetáculo, assustando-se, no entanto, com os palhaços.

Olhar dentro da tenda é o convite para o mundo circense, o lugar ao qual ele pretende retornar. O filme mescla entrevistas com interpretações de atores e aos poucos é Fellini que vai se tornando o mestre do espetáculo. O fracasso dos atos cotidianos – a essência do palhaço – está distribuída ao longo da narrativa, com piadas e gags sutis. Destaque para a incompetente secretária de Fellini que está ali para se fazer de Auguste.

Cada conversa com um palhaço aposentado possibilita a documentação dos repertórios da palhaçaria. Questão perseguida no filme: porque o circo está em declínio? Mais precisamente, porque os clowns não mais arrancam as gargalhadas da plateia?

Logo no começo da projeção, Fellini parece identificar a substituição do popular pelo popularesco a partir da influência homogeneizadora da cultura de massa. A equipe do cineasta percorre uma Europa outrora vista como centro cultural. As ruas e as casas da Itália e da França entregam um cotidiano bem característico sem a opulência dessa Europa atual que se diz “pós-capitalista”.

A dificuldade do humor circense estaria em estreita conexão com os desafios da perda do sentido de comunidade e isso dificultaria a compreensão do público quanto ao aspecto caricato dos palhaços que trariam à tona as personagens típicas da vida provinciana. Hipótese levantada e facilmente desmentida pela etnografia construída. Palhaços são colocados em frente às câmeras, como entrevistados ou como artistas, para mostrar a vitalidade dessa arte.

O ato final é justamente o momento do enterro de Auguste (o arquétipo do palhaço brincalhão) quando o pretenso dramalhão é perfurado por um número bem orquestrado com o próprio diretor entrando no jogo. Completa-se assim a sugestão do começo do filme, a criança interessada e assustada que foge da tenda retorna como ator-diretor.

Ao se tornar um agente do riso, Frederico Fellini encontra a resposta para sua pergunta ao ressaltar que a melancolia e a poesia compõem a mitologia acerca dos palhaços como uma lembrança de que o erro e o fim são instâncias profundamente humanas.

Cotação: ☕☕☕☕

domingo, 25 de fevereiro de 2024

O homem que ri


✈ Crítica a jato

O Homem que Ri (The Man Who Laughs), 1928. De Paul Leni

As pessoas ficariam surpresas se parassem para assistir filmes do período do cinema silencioso, a linguagem cinematográfica é bem potente para transmitir as mensagens por meio das imagens dessincronizados do som.

Um excelente exemplo é o filme O Homem que ri de 1928, uma adaptação melodramática do romance de Victor Hugo. O início do filme expressa potência com o cenário claustrofóbico e com a apresentação de personagens marginais, introduzindo, inclusive, temas macabros, tais como os ciganos comprachicos. A história, no entanto, é um romance cujo arco geral centra-se na redenção por meio do amor incondicional. Os temas do terror são tangentes e talvez até não intencionais.

A trama se passa no final do século XVII e o personagem principal, o palhaço Gwynplaine (interpretado por Conrad Veidt), foi deformado com um sorriso abjeto a mando do rei James II quando ainda era criança - vingança do monarca contra o filho de um nobre revoltoso. Consta, inclusive, que o vilão Coringa do Batman foi inspirado nessa figura. A imagem trágica de Gwyn, no entanto, não traz o germe da loucura, a autopercepção da não aceitação traduz-se simplesmente na busca da dignidade diante da monstruosidade.

Adotado por um circo itinerante, o artista Gwyplanine ao lado de sua amada Dea (uma moça cega que ele salvara na infância) se torna uma atração nas feiras populares, conhecido como “o homem que ri”. Porém, as origens nobres do palhaço, quando descobertas, envolvem-no em uma trama palaciana da rainha Ana, incluindo as heranças, os casamentos arranjados e os raptos de donzelas por malvadões de capa...

A construção do cenário, com muita influência do expressionismo alemão, o desempenho de Veidt (sustentando uma carranca impressionante) e a trama rocambolesca de inspiração romântica registram a fase final do cinema silencioso. Inclusive a sonoplastia já avançava para a introdução do som sincronizado com falas na tessitura fílmica.

Destaque para a capacidade didática do roteiro em explicar longos desdobramentos sem o excesso de intertítulos, isto é, as placas informativas e os diálogos em texto. Quer dizer, temos um filme maduro capaz de organizar uma história banal dentro de uma ambiência sombria, prenúncio da era dos filmes de terror da Universal.

O homem que ri tem ainda hoje elementos capazes de entreter uma plateia adulta, com exceção daqueles que apreciam vídeos de trinta segundos de uma plataforma bastante popular entre os jovens.

Mas aí já não é meu departamento.

Cotação: ☕☕☕