domingo, 25 de fevereiro de 2024

O homem que ri


✈ Crítica a jato

O Homem que Ri (The Man Who Laughs), 1928. De Paul Leni

As pessoas ficariam surpresas se parassem para assistir filmes do período do cinema silencioso, a linguagem cinematográfica é bem potente para transmitir as mensagens por meio das imagens dessincronizados do som.

Um excelente exemplo é o filme O Homem que ri de 1928, uma adaptação melodramática do romance de Victor Hugo. O início do filme expressa potência com o cenário claustrofóbico e com a apresentação de personagens marginais, introduzindo, inclusive, temas macabros, tais como os ciganos comprachicos. A história, no entanto, é um romance cujo arco geral centra-se na redenção por meio do amor incondicional. Os temas do terror são tangentes e talvez até não intencionais.

A trama se passa no final do século XVII e o personagem principal, o palhaço Gwynplaine (interpretado por Conrad Veidt), foi deformado com um sorriso abjeto a mando do rei James II quando ainda era criança - vingança do monarca contra o filho de um nobre revoltoso. Consta, inclusive, que o vilão Coringa do Batman foi inspirado nessa figura. A imagem trágica de Gwyn, no entanto, não traz o germe da loucura, a autopercepção da não aceitação traduz-se simplesmente na busca da dignidade diante da monstruosidade.

Adotado por um circo itinerante, o artista Gwyplanine ao lado de sua amada Dea (uma moça cega que ele salvara na infância) se torna uma atração nas feiras populares, conhecido como “o homem que ri”. Porém, as origens nobres do palhaço, quando descobertas, envolvem-no em uma trama palaciana da rainha Ana, incluindo as heranças, os casamentos arranjados e os raptos de donzelas por malvadões de capa...

A construção do cenário, com muita influência do expressionismo alemão, o desempenho de Veidt (sustentando uma carranca impressionante) e a trama rocambolesca de inspiração romântica registram a fase final do cinema silencioso. Inclusive a sonoplastia já avançava para a introdução do som sincronizado com falas na tessitura fílmica.

Destaque para a capacidade didática do roteiro em explicar longos desdobramentos sem o excesso de intertítulos, isto é, as placas informativas e os diálogos em texto. Quer dizer, temos um filme maduro capaz de organizar uma história banal dentro de uma ambiência sombria, prenúncio da era dos filmes de terror da Universal.

O homem que ri tem ainda hoje elementos capazes de entreter uma plateia adulta, com exceção daqueles que apreciam vídeos de trinta segundos de uma plataforma bastante popular entre os jovens.

Mas aí já não é meu departamento.

Cotação: ☕☕☕

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Denominador comum: angústias circenses


Luzes da Ribalta (Limelight), 1952. De Charles Chaplin

Noites de circo (Sawdust and Tinsel), 1953. De Ingmar Bergman

Denominador comum: angústias circenses

No cinema, sem dúvida, é um tropo constantemente revisitado as dores e as desventuras dos artistas circenses que na responsabilidade de entreter a plateia se veem obrigados a secundarizar suas próprias angústias. Temos aqui duas grandes clivagens do tema, o enquadramento clássico de Charles Chaplin (direção e atuação) sob o envelhecimento do palhaço e a expressionista história de Bergman (direção) sobre os conflitos entre o diretor de um circo e sua esposa.

Assistir esses dois filmes na sequência é um experimento de história do cinema na medida em que vemos temáticas parecidas adotadas em distintos planos e perspectivas. Cada um desses filmes revela decisões profundamente autorais, de um lado um Chaplin já consagrado e no final da carreira faz uma reflexão sobre a necessidade de renovação do humor. Do outro lado, um iniciante Bergman avança sobre os conflitos existenciais tais como a solidão e a tristeza dos seres humanos.

Em que pese o esquema do cinema de estúdio hollywoodiano com soluções características da comédia dramática, Luzes da Ribalta tem muita força. Tremendamente autorreflexivo, inclusive com a participação do ator Buster Keaton, o maior rival de Charles Chaplin. Ao contracenar juntos, eles colocam uma pedra de cal no cinema mudo, isso porque em Luzes da Ribalta há filmes dentro de um filme. Mas os diálogos – tão pouco naturais – explicitam as marcas do gênero.

Em Noites de circo a câmera aprofunda o âmago do mundo circense. Arte e pobreza se entrelaçam ao mostrar uma situação de constante precariedade. A moralidade questionável dos artistas circenses guarda a ambivalência entre libertar e aprisionar. O claro e o escuro se contrastam o tempo todo, a hierarquia entre o teatro e o circo compõe um cruel dueto. O desamparo de todos é visível porque o circo tende à marginalidade. O eixo é a impossibilidade de fugir da humilhação pessoal e social.

Eis a grande diferença entre os dois filmes. Chaplin entrevê o fim com dignidade, ainda que aspectos da decadência e do passadismo sejam inevitáveis, ao passo que para Bergman não há escapatória do ciclo de humilhação. O horizonte do estrelato como atribuidor de sentidos inexiste em Noites de circo – luta-se, ali, contra a fome e a pobreza. A fome também é mencionada em Luzes da Ribalta, porém de forma ligeira. Agora no trabalho de Bergman ela é uma parceira constante dos trabalhadores.

Longe de ser um produto de perfumaria, Luzes da Ribalta combina contundência e sutileza em sua denúncia da pobreza urbana. Mas não se assemelha ao destruidor arco de Noites circenses, porque ali temos artistas tristes e famélicos. Ao fim e ao cabo ambas as películas convergem para a ideia de que o show precisa continuar – não importam quais sejam os obstáculos.

Cavalero, o palhaço de Chalpin (interpretado por ele próprio) e Frost, o palhaço de Bergman são notoriamente diferentes: um é o Trump (tipo de palhaço americano) e o outro é Branco e Triste. Cada um, a seu modo, oferece contributos para abordarmos o quão importante foi a mítica circense na maturação do cinema.

Talvez seja o caso para recuperar as fontes teatrais populares para uma contraposição ao infantilismo então prevalecente que tem inviabilizado o uso do cinema como um momento reflexivo.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

O mal que nos habita


Critica a jato 


O mal que nos habita (Cuando acecha la maldad), 2023. De Demián Rugna.

Argentinos criaram uma própria versão de apocalipse zumbi ao tematizar acerca de um mal: os infectados ou infestados que se espalham de um lugar a outro.  As entidades são expressões da corrupção causada pelo demônio nas pessoas e nos animais. Um tipo de mal que se prende tanto nos lugares e nas coisas quanto nos seres vivos.

A narrativa inicia-se justamente com a identificação de um infectado em uma zona rural. Afastados da civilização, os moradores locais precisam lidar com o diabo em meio ao receio e à apatia das autoridades locais (altamente incompetentes pelo visto). No entanto, a medida em que a narrativa acelera a ritmo, o cenário se torna urbano com o senso de isolamento perdendo a importância, inclusive o deslocamento da cidade para o vilarejo parece se tornar mais frequente.

A fim de criar uma atmosfera de total impotência, muitos artefatos e aliados do nefasto vão aparecendo ao longo da projeção e, desse modo, o mal que espreita parece inevitável. Assim, animais, doentes, mortos e crianças tornam-se emissários do maligno, inexistindo adversários dignos ou capazes de enfrentar tal desafio. Acentua-se, assim, uma outra noção que é a do desespero, pois o mundo sem Deus não é necessariamente um mundo sem o diabo. A estética contida e a narrativa sóbria privilegiam o psicológico em detrimento do asco. Terror com toques de drama familiar: diante do adoecimento das relações afetivas, a solidão, a raiva, o abandono e, enfim, o enlouquecimento são a oportunidade aguardada para a materialização da maldade.

Não obstante um visual de terror requintado cuja âncora se dá na tragédia familiar – um psicologismo comum desses dias – há forte verve Trash na narrativa – não pela estética, mas pela facilidade com que desafios vão sendo acrescentados sem uma preocupação de amarrar muito bem a cosmogonia do universo apresentado. Um filme confuso e desequilibrado, mas capaz de, até certo ponto, assustar os desavisados com a lembrança de que se Deus está morto o diabo vai muito bem obrigado.

Cotação: ☕☕☕

sábado, 10 de fevereiro de 2024

O homem dos sonhos


Código Cage 💫💫💫

O homem dos Sonhos (Dream Scenario), 2023. De Kristoffer Borgli

O filme aborda a loucura dos tempos atuais em uma comédia de humor negro que funciona como alegoria da internet. A crueldade das redes sociais estampada na construção/destruição de subcelebridades, na cultura do cancelamento e nos tensos liames do real/virtual são bem trabalhadas na história de um professor universitário frustrado chamado Paul Mathieu (Nicolas Cage) que passa a ser uma figura recorrente no sonho de pessoas conhecidas e desconhecidas.

Mathieu tinha uma vida convencional como catedrático de Biologia Evolutiva,  mas se sentia desgostoso por não consegui publicar e injustiçado por não receber os créditos merecidos por seu trabalho. A figura de Mathieu expressa um homem com potência, mas estagnado em uma figura entediante, medíocre e cheia de recalques pessoais e profissionais.

Ele gostaria de ter maior notoriedade o que acontece tão logo as pessoas passam a sonhar com ele de forma recorrente. Em pouco tempo sua imagem viraliza e Paul alcança um tipo infame de reconhecimento. Nesse ínterim ele se depara com situações negativas, até então imprevistas, geradas pela tão almejada atenção.

Dream Scenario funciona como denuncia da volubilidade da plateia virtual, mas vai além ao oferecer um personagem bem construído – méritos para Nicolas Cage (nosso Nicão*). A sensação de apatia do homem mediano enfrentado por Paul Mathieu o aproxima do professor Larry Gopnik do filme Um homem sério (2009) dos irmãos Coen. É curioso como a docência parece indicar em ambas as projeções um lugar de amargura e invisibilidade.

Mas se os Coen constroem um texto fílmico minimalista (ainda que com toques de nonsense), Kristoffer Borgli envereda pelo humor depreciativo com a transformação do absurdo em terror. As pessoas se revelam incapazes de captar a diferença entre o visitante dos sonhos e o homem de carne e osso. A relação entre dar e receber das redes sociais cria monstros, e não é preciso muita coisa para alguém se tornar o frankenstein da vez rodeado pela multidão irada de campônios com tochas nas mãos. Mathieu reluta em abrir mão das oportunidades criadas pelo singular fenômeno; aliás é curioso perceber que mesmo ele sendo um suposto pesquisador demonstra pouco interesse em entender as causas do evento. Ele se julga criador sendo que na verdade é criatura.

O filme acaba prejudicado pelo capítulo final, a mudança de arco que se não é de todo incoerente compromete a força do conjunto. A narrativa opta por levar até as últimas consequências o paralelo com as celebridades da internet, mas ao tomar esse rumo desfoca o ângulo metafísico acerca das agruras do personagem. O desdobramento do clímax – o confronto entre real e onírico – cai em um didatismo desnecessário.

Ainda assim, o filme tem muitos méritos e se pudermos apresentar o nosso veredito sobre o Nicão, devemos dizer que esse é o Nicolas Cage que queremos ver! Ele abraça outros “losers” como o já citado professor Larry Gopnik (Michael Stuhlberg), o escritor fracassado de Sideways (2004) Miles Raymond, interpretado por Paul Giamatti, e o roteirista Charlie Kaufman do filme Adaptação (2002) interpretado por Nicolas Cage...

Opa, voltamos a ele outra vez.

Cotação: ☕☕☕

* Confira o projeto Bem-vindo ao Código Cage

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Visions of ecstasy


Nunsploitation 
✝💋

Visions of ecstasy, 1989. De Nigel Wingrove

Embora não chegue a ser experimental, Visions of ecstasy se fundamenta na leitura das fusões entre o sagrado e o profano a partir de elementos da iconologia católica.

Abordando as visões erótico-religiosas de Santa Tereza de Ávila, o curta-metragem (18 min.) explora os níveis de repressão sexual do catolicismo tais como a iconografia barroca e as sisudas vestimentas das freiras.

A vulgaridade das produções eróticas amadoras se dilui em um plano de claro-escuro onde rastros de sangue são a preliminar para a exibição de um altar no qual uma mulher com hábito de freira performa o sexo fetichista com outra religiosa e com o nazareno pregado à cruz.

Os apetrechos litúrgicos são transformados em símbolos fálicos tais como o prego que trespassa a palma da mão feminina e a ingestão de fluidos (paralelo entre vinho e sêmen). Outros elementos da cultura religiosa também são explorados em sua polissemia semântica. Quer dizer, a intencionalidade do filme passa longe de qualquer apelo ao obsceno ou pornográfico, pelo contrário, as sugestões e as sutilezas dominam a projeção.

Despudoramente provocativo, Visions of ecstasy foi banido da Inglaterra sob a acusação de blasfêmia. Apresenta-se, por isso mesmo, como referência do nunsploitation em seu desiderato de explorar os intricados não ditos do catolicismo sob uma ótica do desejo masculino.

Cotação: ☕☕☕

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Willy's Wonderland: parque maldito



Código Cage 💫💫💫

Willy's Wonderland, 2021. De Kevin Lewis 

São dois filmes: um ruim e um péssimo. No filme ruim os adolescentes ficam presos com animatrônicos assassinos: cultistas de um serial killer satanista que fizeram um ritual para entranhar suas almas nos robozinhos. Desde então buscam por vítimas.

No filme péssimo um homem de meia idade com cara de poucos amigos passa uma noite socando os robôs. Ele não fala nada. Sim, Cage passa o filme todo sem dizer uma palavra. Não sabemos nada sobre a misteriosa figura, exceto o fato de que ele tem um carrão, uma jaqueta cool, um gosto duvidoso por energéticos e disposição de sobra.

Esses dois filmes se encontram na intersecção dos corredores e salões do restaurante familiar (pero demoníaco) Willy's Wonderland. Jovens fogem das máquinas enquanto as máquinas fogem de Cage (digo, do zelador).

Nicolas Cage, ou Nicão para os entendidos, deve ter assinado um contrato no qual se dispôs a fazer uma única expressão. A ideia de minimalismo na atuação realça suas saracoteadas silenciosas, no máximo um ruído.

Sem atuação, sem coesão, sem sentido algum: um retorno a Ed Wood.

Esse é o filme de Nicão que temos que assistir para entender até onde ele está disposto a ir. Cage entrega o mínimo necessário. Mas em um dos poucos momentos no qual a atuação se torna fluida uma dancinha acontece diante da máquina de fliperama.

A persona do ator quer vir à tona. Seria um canastrão se tivesse a presunção e as veleidades de tal, mas não. Ali é atuação em estado puro. “Dai-me o mínimo que eu darei o mínimo”.

Se o conjunto da obra não convence, a culpa não é dele. Ele é um apêndice que nem deveria estar ali. Seria mais um filme de terror se o faxineiro não tivesse decidido entrar chutando a porta para matar os animatrônicos.

Com ele ruim, sem ele péssimo.

Veredicto: bananeira dá banana, laranjeira dá laranja e Cage dá show.

Mas alguns shows são constrangedores.

Cotação:

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Velozes e Mortais


Crítica a jato✈

Velozes e Mortais (Highwaymen), 2003. EUA. De Robert Harmom

Antes de criticar o filme tenho que criticar a mim mesmo. Estava na locadora e o rapaz me sugeriu Velozes e mortais. Eu perguntei se era bom e ele na cara lavada disse que sim. Eu sabia que ele estava me enganando, mas porque sempre me deixo ser enganado? O filme é uma história idiota (psicopata que usa um carro para matar pessoas) cheio de clichês e furos no roteiro.


Vou citar só alguns exemplos, pois não quero perder mais tempo com essa lástima...


1) Filme de carros envenenados (que conceito interessante!)


2) O relacionamento entre os protagonistas é totalmente forçado. Há um momento em que o personagem principal se vira para deixar a "mocinha" se trocar (outro clichê)!


3) O filme é uma história de vingança que, como já foi assinalado por diversos críticos, marca o cinema americano pós 11 de Setembro.


4) Só para constar, o personagem principal força a moça a acompanhá-lo, o que é rapto. Mas ela aceita ser subjugada e troca olhares sugestivos com seu protetor...

Que lixo!

Cotação: ☕

Pós-escrito: essa foi uma das primeiras críticas de uma versão anterior desse blog. Muita ingenuidade esperar algo de bom desse filme. O marketing se baseava no ator James Caviezel, que havia interpretado A Paixão de Cristo. Aproveitando-se, também, do então lançamento de Velozes e Furiosos. De um lado, Jesus, do outro, carrões envenenados. Bons tempos.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Bem-vindos ao Código Cage


Um dos piores filmes que já vi em minha vida – Willy's Wonderland: Parque Maldito – caiu como uma provocação, um convite para desvendar o código Cage. Na série Community, quinta temporada, há um episódio no qual discute-se a qualidade da atuação de Cage: gênio ou canastrão?

Tendo em vista a quantidade de filmes dos quais ele participou nos últimos anos, a proposta aqui esboçada é fazer uma análise in loco do protagonismo de Nicolas Cage. Uma das lendas urbanas, alimentada por ele próprio, ao que parece, seria que a crise da bolha imobiliária de 2008 o endividou. Desde então ele trabalha para pagar os boletos.

Verdadeira ou não, essa historieta lança luz a uma questão interessante: é possível proletarizar o estrelato hollywoodiano? Atores proletários existem, mas nos referimos aqui às “grandes estrelas”. E mais, o que teremos de Cage ao assistir todos os seus filmes?

E o mais importante: tal tarefa será divertida?

Bem-vindos ao Código Cage, pois a cinefilia também se alimenta de bizantinices.