segunda-feira, 10 de setembro de 2007

A marcha dos pingüins

A marcha dos pingüins (La Marche de L’Empereur), 2005. De Luc Jacquet

Em um determinado momento, a câmera assume o plano subjetivo de uma pingüim fêmea para que possamos ver o movimento que ela faz para capturar um peixe.

O filme pretende narrar uma história a partir do suposto ponto de vista dos pingüins. Não se trata, portanto, de um documentário de zoologia, mas sim de uma história de amor e luta pela vida. São apresentadas, de uma forma romantizada, as várias marchas que os pingüins fazem para assegurar a procriação e sobrevivência dos filhotes.

Não há pretensão de uma descrição realista do comportamento dos pingüins imperadores, a proposta é bem outra, uma interpretação subjetiva e particular da vida na Antártida. Vários dos anseios e medos humanos são representados a partir da filmagem dos pingüins no período do acasalamento.

Aos poucos, nossa empatia com essas aves aumenta e passamos a nos preocupar se realmente irão sobreviver. A câmera adota a perspectiva dos pingüins, mostrando aperseverança contra o frio, a reações à incômoda presença dos predadores e a satisfação perante a chegada dos parceiros.

Mas, evidentemente, trata-se de uma criação cinematográfica, pois, em uma observação mais atenta, o aspecto de maior fascínio talvez não seja a vida dos pingüins, mas o esforço dos homens para filmá-los. Quando os pingüins machos se unem para enfrentar o frio do inverno, fica óbvio que essa espécie está ali há milênios. Mas, e os intrusos? Aqueles que vieram gravar essas imagens? Como eles resistem a essas adversidades?

São nos planos gerais – quando as geleiras e os oceanos são apresentados, quando são mostrados bandos de aves em um plano mais panorâmico – que o homem entra como um personagem secundário nessa narrativa. É ele que, através de uma técnica só sua, está fabricando um enredo. Nesse filme os figurinistas não são os animais, mas sim o ser humano, uma presença oculta, porém marcante.

Foi a imaginação de um documentarista que possibilitou que estabelecêssemos uma identidade com os pingüins, uma ave que, certamente, muitos de nós nunca veremos, nem mesmo em um zoológico.

É um filme sobre pingüins, mas também é um filme sobre o esforço dos homens para contar belas histórias, sejam verdadeiras ou não.

Cotação: Bom

O Ultimato Bourne

O Ultimato Bourne (The Bourne Ultimatum), 2007. De Paul Greengrass.

Mesmo com o declínio dos filmes de espionagem - que tem relação com o fim da Guerra Fria - o interesse nas histórias de agentes secretos e intrigas internacionais não desapareceu. No entanto, a perda de qualidade da franquia de James Bond (que se tornou mais um ianque contra o terrorismo) gerou um vazio no gênero difícil e ser preenchido. A propósito, é curioso um paralelo entre James Bond e Jason Bourne (reparem que as iniciais dos nomes são as mesmas).

Portanto a "triologia" Bourne tem uma razão de ser. Nessa terceira parte, o filme se apresenta maduro e ambíguo, conseguindo superar as polarizações usuais entre mocinhos e bandidos. Bourne é um ex-agente da Cia que perdeu sua memória. Seu principal interesse é desvendar sua identidade civil, reconhecer quem ele era antes de entrar na Agência de Inteligência. Bourne é perfeito no que faz, isto é, Bourne é perfeito em matar e agredir pessoas, entrar e sair de lugares vigiados, executar tarefas complexas e se recuperar rapidamente de imprevistos.

Bourne é um assassino, para isso ele foi programado, contudo, ao perder a memória ele não sabe a que fins ele servia. Aos poucos, ao agrupar uma série de indícios, foi se evidenciando que sua finalidade era servir ao jogo sujo da Cia, uma agência de inteligência que parece pouco preocupada com os civis, muito embora seu discurso seja o de "defender os americanos".

Há uma cena em que os agentes realizam uma operação em uma estação de trem em Londres, pouco se importando com a população que perambulava no local. Um momento em que nos remete à morte do brasileiro Jean Charles, que foi alvejado na estação de metrô londrina por policiais anti-terroristas.

O que O Ultimato Bourne evidencia é o quão espúrio são os serviços de inteligência. Os culpados podem até ser os corruptos, mas eles nada mais são do que criações de uma estrutura viciada e totalitária.

Trata-se de um filme global, com locações em várias partes do mundo. Virgína, Londres, Marrocos, Rússia. Enfim, o filme faz questão de enfatizar as conexões mundiais das inteligências. Há uma cena interessante, em que a câmera acompanha Bourne, no momento em que ele entra em uma sacada. A câmera inicia um movimento rápido e começa a expor um cenário da favela do Terceiro Mundo. Porém o plano geral não ocorre, o que é uma pena, mas é perceptível o interesse em mostrar o mundo de uma forma não exótica. Pois, se o argumento é que vivemos em um mundo globalização, o centro e periferia estão mais próximos do que imaginamos.

Aliás, o principal mérito do filme é a câmera, que se move com intensidade, ela transmite ao telespectador a própria impressão de Jason Bourne do que ocorre ao seu redor. A imagem é tremida e rápida: fragmentos de visões, coerentes com um homem mentalmente machucado.
Quando ele está em confronto, a câmera balança, avança, recua, treme. Porém quando Bourne se acalma, a câmera volta a ser estática. É uma sincronia entre a respiração do personagem e a objetiva, o que revela a competência já conhecida de Paul Greengrass.

Por fim, cabe lembrar a própria constituição do personagem, Bourne é solitário, ele não se dá o direito de conviver por muito tempo com as pessoas. Ele visita rapidamente o irmão de sua ex-namorada (que foi assassinada pela Cia) e novamente desaparece no mundo. Quando achamos que haverá um afair entre ele e Nick Parsons (interpretada por Julie Stiles) somos surpreendidos com a cena na qual ele a coloca em um ônibus, abandonando-a em algum lugar remoto da África.

O que Jason Bourne parece expressar é que todos os exímios são solitários, sobretudo se a arte que eles dominam seja a de agredir.

Cotação: Regular

sábado, 8 de setembro de 2007

Rastros do Ódio

Rastros de ódio (The Searches), 1956. De John Ford

“Aos que preferem um ‘neo-realismo’ (mesmo super) a um western (mesmo da produção B), poder-se-ia recordar, se isso não fosse inútil, o fato histórico de que o western é o único gênero cujas origens se confundem com as origens do cinema, antes de mencionar outra verificação, a de que o western nunca envelhece.” (VIANNA, Antonio Moniz. Um filme por dia. 2004)

O cinema de John Ford é um compromisso com a excelência, a busca pela composição bem trabalhada. A cena inicial já destaca a qualidade do filme. Do interior de um casebre, a porta se abre, lá fora, o deserto inóspito, a câmera avança e estende o campo de visão, o telespectador pode, portanto, vislumbrar esse cenário western.

Um deserto próximo a Utah, vigoroso, ilustração da ânsia do homem em derrotar o selvagem, inaugurando os postos avançados da civilização.

O herói é John Wayne, que interpreta Ethan, um veterano do exército confederado que chega a casa do seu irmão, perdida na imensidão do Monument Valley, pouco antes do massacre dessa família, cometido por índios. Uma sobrinha de Ethan sobrevive, ainda que raptada pelos agressores.

O ex-confederado inicia, então, uma perseguição pelo deserto, buscando, em primeiro lugar, a vingança e, se possível, recuperar sua familiar. De fato, a motivação de Ethan não é o resgate de sua sobrinha, mas a dizimação do indígena, uma “raça” pela qual ele sente desprezo.

Aqui se encontra o ponto de Rastro do ódio que eu pretendo explorar: as relações ocultas mocinho/vilão existentes no filme. Ford é um cineasta complexo, portanto em sua obra há vários matizes a serem explorados, alguns, como este, menos evidentes.

Em um primeiro momento, os papéis parecem bem definidos, há os colonos (civilizados) e os indígenas (bárbaros). Esses últimos são animalescos, assassinaram os desbravadores e, portanto, devem ser caçados (daí The Searches), isto é, punidos exemplarmente.

O personagem de Wayne, em determinado momento, diz que um índio não é humano, ele cavalga em seu cavalo e, quando este se exaure, é abatido e devorado. De fato, com essa associação não há como legarmos qualquer valor ao nativo. No western a relação homem-cavalo é importantíssima, tratando-se de um genuíno laço de lealdade. Se o índio não reconhece esse dever moral para com o eqüino, há mais uma prova de sua proximidade com a selvageria, uma cultura que não é pautada pela ética.

O grupo étnico que Ethan persegue é o Comanche, liderado pelo cruel Scar. Um homem que mata, aprisiona e comete o infame ato de retirar o escalpo. Essa tribo é considerada hostil até por outros indígenas. Ou seja, dentro da narrativa do filme, o extermínio desse povo já está autorizado.

Contudo, aos poucos as sutilezas relativizam, para o bom entendedor, as relações entre herói e vilão. O homem que acompanha Ethan até o final de sua busca é Jeffey Hunter, filho adotivo do família assassinada. Porém esse rapaz, por ter sangue indígena, é mal recebido pelo personagem de Wayne.

Hunter, ao contrário de Ethan, quer reaver sua irmã a qualquer custo. Já esse último está mais empenhado na vingança, chegando a cogitar em assassinar a sobrinha, ao perceber que ela poderia estar adaptada à cultura Comanche.

O primeiro véu do herói se desmancha, pois ele é racista, racista extremado. Ethan quer um massacre e não um resgate. Ele não respeita os cadáveres dos índios, mutilando seus corpos inertes. Trata-se de um homem só e amargurado, alguém realmente apto para viver no deserto, deserto que nada mais é que o reflexo de sua postura eremita.

Os índios são retratados negativamente, ou são violentos ou possuem aquela idiotice dos povos inferiores, sendo facilmente manipuláveis. Porém, há um momento Ethan e Hunter e deparam com uma indígena que eles haviam conhecido, ela é uma boa mulher, mas não foi poupada da retaliação (massacre) conduzida pelas tropas do exército. É quando o acompanhante de Wayne comenta que não haveria motivo para ela ser executada.

Aqui a narrativa faz – em nota de rodapé, é verdade – uma pergunta: então, não são apenas os brancos a serem executados injustamente? Questionamento que não recebe resposta, mas que ali se encontra justamente para inquietar o telespectador.

Scar, o terrível índio, também teve seus filhos assassinados (ele usa essa palavra) pelo homem branco. Portanto sua ação é uma reação. Aqui, o véu do vilão também cai, já que foram os autóctones os primeiros a serem ultrajados, a terem seus territórios invadidos. Com uma sutileza – e se fosse outro cineasta, eu diria involuntária – Ford nos trás a idéia de que o fato e o que é dito sobre o fato se confundem. Idéia que será claramente expressa em O homem que matou o facínora.

Existe mesmo um paralelo entre o rancho e a aldeia destruída. Um plano que se repete é aquele que mostra a destruição externa pelo ângulo do interior dos escombros. Os brancos e os índios se digladiam, mas reza a lenda (que não é hollywoodiana) que são os bárbaros somente esses últimos. E em Ford, a lenda é a história.

Nos atos finais, quando a aldeia de Scar é atacada pelas tropas do exército há uma cena em que vemos uma criança quase ser esmagada pela cavalaria americana. As chacinas não poupam filhotes, sejam brancos, sejam índios.

Porém a cena mais enigmática é aquela em que garota branca, mas já transformada em uma Comanche, foge horrorizada, temendo ser morta por sem próprio tio. Aos olhos dos índios, o assassino é Ethan. Claro que no último momento o implacável vingador reconhece na pele branca uma igual, mas houve um momento de dúvida, de ambigüidade do “herói”, que não pode ser apagada pela narrativa mais evidente.

Em suma, esse é apenas um dos muitos pontos que podem ser explorados. O que evidencia a complexidade desse filme e a necessidade de voltarmos continuamente a esses clássicos.

Ao final, Scar e Ethan, em seus extremos se equiparam. Em ambos há medidas de brutalidade, tristeza e solidão. O chefe destemido e o ex-soldado amargurado, nem tão diferentes e não tão semelhantes. Homens do deserto, isto é o que eles são.

Cotação: Ótimo

A volta do Todo Poderoso

A volta do Todo Poderoso (Evan Almighty), 2007. De Tom Shadyac

Não podemos cobrar verossimilhança de um filme no qual um dos personagens é o próprio Deus (Morgan Freeman). Aqui, não um “Todo Poderoso” irreverente como Alanis Morissete em Dogma (1999), mas um chato de garrocha, que insiste em fazer as coisas a sua maneira...

Sim, claro. Ele é Deus né? Faz as coisas da maneira que bem entender... Deus é brasileiro (2003), com Antônio Fagundes, já havia nos ensinado essa lição da pior maneira possível. Mas esse trabalho de Tom Shadyac (quem?) é um filme tedioso, com um humor insosso e interpretações bem descuidadas.

O filme é sobre Evan Baxter (Steve Carrel), um jornalista que foi eleito congressista. Entusiasmado com sua ascensão profissional, ele se muda para uma nova cidade, mas esquece das “coisas que realmente valem a pena”. LEIA-SE: a família, sim mais uma vez a família... a relação com os fedelhos e a Dona Maria...

Pois é, mas nesse meio tempo, Deus surge e diz: “Constrói uma arca aí Evan Noé, que nos vamos colocar um casal de cada espécie, porque eu tô a fim de dar uma descarga geral na terra.

Evan deveria ter dito: “Hum, um casal de cada espécie? Vai caber?” Mas ele se restringe a dar gritinhos: de dor, de susto, de espanto e de resignação. Steve Carrel se comporta como um careteiro típico. A clássica síndrome de ”mamãe quero ser Jim Carrey”.

Esse é um filme que tem potencial para os neo-pentecostais. É pedagógico, é didático. Devemos escutar a voz de Deus, ignorar a razão e esperar pelos milagres, pois é assim que haveremos de mudar o mundo.

Deus não está morto, ele só estava em um coma profundo. Diriam os neo-nietzscheneanos.

É previsível, você antecipa todos os atos. Baxter não liga para a família; Deus o solicita a construção de uma arca, seus filhos passam a ajudá-lo, estreitando os laços paternos. O nosso congressista carpinteiro passa a ser considerado como louco, todos riem dele – mas ele permanece firme na palavra do senhor (aleluia irmãos!) e vai pregando madeira por madeira. Ao final: família unida, arca construída: missão cristã cumprida!!

Como conseguiram construir aquele enorme barco em tão pouco tempo”? Inquiriria um cético.

Que pergunta idiota! Esses hereges... Deus ajudou! Isso é obvio né?

Me esqueci! Ih, foi mal.

Alguns espectadores devem achar engraçado um homem contemporâneo com barbas grandes e túnicas rústicas... pois Deus obrigou Baxter a trocar seus refinados ternos por esse look beatnik maltrapilho .

Previsível, tedioso e medíocre. Nem o “Todo Poderoso” escapou do esquemão Hollywoodiano

Graças e louvado seja Deus que sou ateu – máximo ateu.

Pois desse modo o filme arranhou só a minha sensibilidade estética e cinematográfica – minhas convicções religiosas não foram agredidas (pois eu não as tenho).

Obrigado meu Deus. Obrigado All Mighty. Obrigado Morgan Freeman.

Cotação: Péssimo

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Editorial

O cinema como um exercício de consumismo

Shopping de luxo. Meia noite, a fila está cheia. Mais do que cheia, transbordante. O cheiro de pipoca está espalhado por todo o ambiente. O público é heterogêneo, mas muito farofeiro e afeito a balbúrdia. Famílias inteiras, grupos de amigos, casais de namorados. Não há espaço para o telespectador solitário. É noite de estréia da última parte de Piratas do Caribe.

É muito barulho, algumas pessoas estão até vestidas a rigor, com espadas e escudos. Os adolescentes realmente parecem uma falange. 14 horas. Cinema de shopping, região metropolitana de B.H. Lá fora, sol a pino, lá dentro, desolação infinita. Há uma confusão, a cada minuto chegam novos espectadores, dispostos a furar fila e a engrossar no coro dos histéricos. O filme é 300.

Público diversificado. É num dos shoppings mais centrais de Belo Horizonte. 17 horas. Há muitos casais de namorados. Não é dia de estréia, mas é a primeira semana de exibição de Harry Potter 5. O falatório é estardalhoso. De um modo geral, estão mais preocupados com a pipoca, a projeção fica em segundo plano.

Duas semanas depois, as salas estarão vazias. O interesse cessado. Só então que os cinéfilos começarão, ainda que timidamente, a ousar penetrar nesse templo do provisório.

O que parece evidente é que o circuito comercial de cinema vive de modismo em modismo. Mantendo-se firme graças a cada nova temporada de blockbusters. Depois que os filmes vão para as locadoras ? ou mesmo passando as semanas iniciais de suas estréias ? as pessoas se esquecerão completamente das filas que enfrentaram e do desespero que expressaram para assistir a banalidade da vez.

Esse é o público geral, que escolhe os filmes movido pela campanha de marketing, pelo orçamento da produção, pela promessa de tiros e explosões ou então do exibicionismo de corpinhos sarados.

A busca de uma qualidade cinematográfica, salvo a excelência da produção, é ignorada. Não se escolhe um filme pelo seu diretor, pelos seus prêmios internacionais (uma forma de dialogar com a crítica), pela sua locação (só se vê filmes americanos) ou pela temática abordada.

O filme é, para o expectador comum, nada mais que uma prática de consumo. Uma oportunidade para botar uma roupinha bonitinha, gastar dinheiro com a pipoca, com a bilheteria e com a coca-cola.

No cinema se dão beijinhos. No cinema se dá bronca nos filhinhos. No cinema se atende o celular para resolver aquela pendência do trabalho.

O circuito comercial de cinema expressa, de forma admirável, a mediocridade do mundo contemporâneo, as imbricações espúrias entre arte e mercado. Não que os cinemas ?alternativos? também não tenham seus problemas. Mas nestes há pelo menos o esforço por uma fruição cinematográfica diferenciada.

Cinema medíocre exibido em ambientes medíocres para público medíocre. É um sistema bem consolidado. O espectador diferenciado tem que levantar a cabeça e respirar fundo, sob o risco de se afogar nesse lamaçal de nulidades.

É a pós-modernidade? Não, é só a mediocridade mesmo.