sexta-feira, 31 de maio de 2024

Abigail

Abigail, 2024. EUA. De Tyler Gillett, Matt Bettinelli-Olpin

Poderia ser mais claustrofóbico, menos inusitado, menos preguiçoso, mas ainda é engraçado.

Bandidões da pesada são incumbidos de sequestrar uma garotinha chamada Abigail, mas as coisas não saem exatamente como deveria já que a mocinha, bem, podemos dizer que ela não é exatamente uma mocinha. Acho que não é novidade para ninguém que os filmes de vampiros se tornaram autorreflexivos...

Inclusive, há um conto de Stephen King chamado “Popsy” sobre uns desavisados que sequestraram o neto de um morcegão. Muito fácil encontrar a associação entre o conto e o filme, ressalvando que Abigail não precisa da ajuda para descer o terror nos incautos. Há um momento no qual uma televisão exibe um episódio de cartoon chamado Pantry Panic (1941) em que um gato famélico tenta comer o Pica-pau, mas este também tem planos de papar o bichano. Bem, é com esse tipo de obviedade que estamos lidando.

O jogo de gato e rato (gatos e morcegos?) sustenta as premissas e a narrativa contanto com citações sobre vampiros e um humor engraçadinho. Devido às várias dicas dadas desde o início, não seria preciso um Sherlock pra intuir sobre a armadilha à espreita. Mas os personagens são bons para o humor ácido e não para o exercício do tutano.

A personagem título ganha a presença de cena no momento adequado, arrebatando seus adversários na ordem certa: dos menos aos mais interessantes. Assim, merecem destaque Joey, a responsável por cuidar da "garotinha", e Frank, o chefe da equipe. Eles precisam liderar os sobreviventes no momento em que o embate com vampira se desnuda. Embora haja sustinhos convenientes, o clima terrir dá a tônica com um ritmo que impede o espectador de ver as pontas soltas do roteiro.

Comicamente a história se sustenta, mesmo com personagens tão desinteressantes que na prática tanto faz torcer pela Abigail ou pelos sequestradores. A metáfora sugerida de ratos x morcegos é válida, afinal, todas elas merecem a dedetização e se entrarem em briga confesso que torço pela briga...

Ficou com dó? Leva para a casa uai... Cotação: ☕☕☕

Observação: O conto do King pode ser conferido no livro Pesadelos e Paisagens Noturnas. V.1

Shin Gojira


Shin Gojira
, 2016. Japão. De Hideaki Anno

O tom nacionalista de Shin Gojira (2016) passou despercebido: uma história sobre a reorganização militar do país a fim de superar as adversidades. Estas podem até ser os desastres naturais, mas a questão nuclear é o ponto inegável.

A abordagem é a política e não a história dos Kaijins em si; nem mesmo o cinema catástrofe domina a projeção. Trata-se da articulação política dos médios escalões do governo para impedir a perda de autonomia do país perante a comunidade internacional ou dos Estados Unidos.  Assim, uma mobilização para destruir a criatura que apareceu no território japonês e salvar vidas choca-se com a hesitação dos políticos convencionais e dos interesses internacionais. Trata-se, portanto, de defender a revitalização do Japão com a substituição da engessada burocracia por uma geração legitimada pelo mérito. A hierarquia e a respeitabilidade tradicionais são entraves à modernização – um mote discursivo que se repete por lá. Quando o mostro emerge, a sequência das decisões tomadas em reuniões regidas por uma pompa e um protocolo denunciam o imobilismo a ser superado pelos “modernos”.

O filme defende as premissas da maioridade do Japão e da sua saída da autônoma em relação dos Estados Unidos. Isso dito de forma explícita e didática, muitos diálogos, inclusive, são pronunciados para a câmera como a preleção de um professor diante da turma. Trata-se de um filme educativo que propõe o rearmamento da nação nipônica, mas tudo com a dita responsabilidade pois a própria arrogância imperial é lembrada.

O filme peca por esse excessivo empreendimento moral, tornando o mostro e mesmo o desastre aspectos quase acessórios. Os personagens são rasos e unidimensionais, estão ali para pensar a melhor solução para o país com uma abnegação típica de propaganda de guerra. Por tomarem decisões a uma distância considerável do monstro, o próprio perigo que correm é reduzido, embora haja, naturalmente, os sacrifícios e as expiações da rodada.

Além disso as cenas de destruição e do próprio monstro são apenas razoáveis. Há um aspecto retrô da criatura, bem em conformidade com um ideário político em si controverso. Os estereótipos japoneses são mostrados a exaustão revelando um filme antigo em roupagens hodiernas.

A representação dos norte-americanos é ambivalente, de um lado são apresentados como autoritários e com exigências exclusivamente favoráveis aos seus próprios interesses, mas, do outro lado, confiam aos japoneses uma solução própria. As menções aos ataques de Hiroshima e Nagasaki ocorrem mais de uma vez e o trauma do ataque nuclear paira durante toda a narrativa. A fim de evitar o pior, Estado e nação precisam da harmonia de modo que modo que o novo e o antigo possam ser integrados.

Enquanto isso, Godzilla vai se movimentando e cientistas, políticos e militares precisam conter seu avanço sobre Tóquio. Depois dos desarranjos iniciais criados pela paralisia política uma resposta técnico-militar é fabricada e colocada a prova. O sucesso dessa empreitada vai garantir a autonomia do país evitando, assim, sua invasão pelos estrangeiros. Os olhos dos Estados Unidos e da Europa estão voltados para a terra do sol nascente, já Rússia e China são colocadas de lado com uma certa suspeição.

A ideologia nacionalista e militarista não são propriamente novidades no Japão, mas esperamos que assim como o Gojira elas continuem adormecidas.

Cotação: ☕☕☕


sábado, 25 de maio de 2024

Miss Zombie

Senhorita Zumbi (Miss Zombie), 2013. Japão. De Yoshiki Kumazawa e Satake Kazumi.

"Devemos ter medo dos vivos, não dos mortos". Essa é uma frase que resume grande parte dos filmes de zumbis. Fido, Warm Bodies, Zombie plage são algumas das associações as quais não me esquivo em fazer.

Filme perturbador. Uma leitura sobre a morte como um estado de perpétua dor e tristeza. A exploração transcende até o pós-vida com o emprego de uma mulher zumbi para a realização de atividades domésticas. Como é de praxe as coisas saem do controle e dessa vez não estou falando de um apocalipse ou surto epidêmico; temos aqui a boa e velha cupidez do ser humano com forte ênfase sobre a violência do patriarcado. Algo do tipo: “Olha, um zumbi, vamos violenta-lo? É seguro, confia!”

Há um subtexto sobre a exploração dos imigrantes, mas subsumido pela temática de uma vivência aristocrática dentro de uma família comandada por um médico insensível. A desumanização do zumbi, como metáfora do estrangeiro, dá o impulso necessário à trama com a tematização do preconceito, da vida precárias e da violência sexual. O filme ingressa no terror pelo sofrimento de Shizuko, a esposa atenta para conduta libidinosa do marido. Além disso, seu filho, Kenichi, acaba se aproximando da criatura ao ser salvo de um acidente potencialmente fatal.

O filme vai constituindo uma cultura necrófila com constantes violações perpetradas contra a moça zumbi. Alguém aí se lembra de “Dogville”? Lar von Trier é você que está aí meu filho?


[Logo acima Nikole Kidman em Dogville, e mais ao alto Ayaka Komatsu em Miss Zombie, as semelhanças são maiores do que o esperado]

Além disso, a casa a qual a Miss Zumbi serve possui uma arquitetura lúgubre e semelhante a uma paisagem tumular. As construções parecem monumentos mortuários, aspecto reforçado pela fotografia preta e branca com gradações fugidias e contrastada por meios tons e pelos jogos de sombra. A luz do sol não consegue atravessar as nuvens opacas realçando o conflito entre o mundo dos vivos e dos mortos. À noite a ambiência torna-se mais desolada. Algo entre uma sepultura reaberta e uma favela terceiro-mundista.

O desenvolvimento da história apresenta furos, a comunidade adapta-se rapidamente a presença da zumbi. Todo modo, a verosimilhança construída é o suficiente, pois o plano geral consegue combinar o horror das relações familiares adoecidas com a proscrição e abandono imposto a alguns seres. A partir desses elementos entende-se a promiscuidade entre os vivos e os mortos.

Cotação: ☕☕☕