domingo, 22 de dezembro de 2024

O baile na casa Anjo/Anjo no Yakata

O baile na casa Anjo. Anjo no Yakata. De Kozaburo Yoshimura, 1947.

Há o pecado de didatismo no filme, pois ele aborda temáticas candentes de uma maneira muito evidente e elementar. A família Anjo, nobres japoneses bastante europeizados, precisa lidar com a sua derrocada após o término da Segunda Guerra. Presos nos valores tradicionais, eles lamentam o novo mundo burguês que se anuncia.

A família Anjo, ciente de que vai perder a casa para um credor, um homem de negócios ressentido contra a nobreza, decide fazer um baile de despedida. No decorrer do festejo os não-ditos são explicitados, evidenciando a necessidade da nobreza abrir mão de seus valores aristocráticos para a autossobrevivência. Nesse contexto dois personagens merecem destaque: Tadahiko Anjo, o conde e patriarca relutante em fazer concessões, e Atsuko Anjo, a habilidosa e diplomática filha. O filme passa-se na casa do manso senhorial acompanhando os dramas familiares tais como o orgulho excessivo e os casos de amor com os empregados.

O filme é um importante registro das transformações socias vivenciadas pelo Japão. O diretor Kozaburo Yoshimura é conhecido por arcos dramáticos e comportamentais. Mas as metáforas em O baile na casa Anjo são muito óbvias. A armadura do samurai caída ao chão, as pérolas largadas sobre a praia e a etiqueta deslocada da aristocracia mimetizam os conflitos profundos enfrentados por aquele país tão orgulhoso, mas derrotado por uma jovem nação capitalista. Assim, o jovem chofer Kurakichi Toyama, capaz de comprar a mansão dos Anjo com o dinheiro fruto do seu trabalho, representa os próprios Estados Unidos da América.

A própria espacialidade da casa carrega várias camadas de tensão: o salão principal com sua decoração europeia, o quarto do filho do conde, como um lugar de conquistas amorosas, afora os espaços anexos, como a área dos empregados. A execução do baile é o momento no qual os conflitos até então latentes tomam o primeiro plano. Tensionando, inclusive, os personagens coadjuvantes, tanto aqueles que abraçam quanto os que se opõem às mudanças em curso.

Com alusões pouco sutis, mas em um período de desenvolvimento da linguagem cinematográfica, Anjo no Yakata consiste em uma porta de entrada para compreender o cinema nipônico.

Cotação: ☕☕☕☕

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Não fale o mal/Speak no Evil

Não fale o mal (Speak no Evil), 2022. De Christian Tafdrup.

Filme que aborda de forma brutal os convencionalismos do mundo moderno em meio a um processo de corrosão civilizacional. É possível considerarmos as contradições de uma Europa que teme a perda de seus pilares éticos e políticos por meio do brutalismo contemporâneo. No entanto, foram os países europeus que guiaram o mundo a uma destruição cultural em escala global, frisa-se bem.

Longe de tecer qualquer discurso de culpabilização é necessário apontar na narrativa a gestação de um senso de perigo para o ethos europeu. A história de uma família dinamarquesa “aprisionada” pelas regras de educação a permanecer na casa de uma outra família, esta holandesa, enquanto os indícios parecem sugerir a necessidade de ir embora imediatamente do luar. As boas maneiras perante os bárbaros, compreende-se, é arriscada!

Na versão americana de O homem que odiava mulheres (2011) havia uma reflexão sobre o risco de colocar o senso de civilidade acima da autopreservação, algo também visto em Jogos de violência, tanto na versão austríaca original (1997) quanto na americana (2007). Em Não fale o mal essa situação é ampliada em uma trama-metáfora acerca da violência contemporânea.

O filme também aciona o nosso senso de fobia social ao mostrar a excessiva tolerância e passividade para com desconhecidos. Abrir-se demais pode ser arriscado. Isso é explicitado no trágico desfecho, quando um subtexto referente ao multiculturalismo emerge e é escancarado no primeiro plano. Há um personagem secundário de nome Muhajid que fantasmagoriza o islã como algo que já está do “lado de dentro”. A narrativa também incorpora elementos sobre mutilação e silenciamento dos mais frágeis podendo ser interpretado como uma crítica à boa vontade para com a alteridade – leia-se o fundamentalismo islâmico.

Mostrando a impotência do bom senso, da razão e da educação perante a loucura e a maldade o filme atira o espectador ao senso do vazio. Há um mundo pedregoso, arenoso, estéril disposto a extinguir a vida e a drenar a beleza da civilização. Os europeus parecem temer os bárbaros do Terceiro Mundo.

Nós deveríamos, em nosso turno, recear o próprio monstro fascista que eles trazem dentro de si. E escrevo isso porque é preciso falar o nome do mal.

Cotação: ☕☕☕

sábado, 23 de novembro de 2024

Cuckoo

Cuckoo, 2024. Alemanha, Estados Unidos. De Tilman Singer

Filme de terror com ênfase no senso de incapacitação e sofrimento corporais ambientado em um resort alemão, com alguns sustos eficazes, mas sem a capacidade real de aterrorizar. Uma moça em luto pela morte da mãe vai morar com o pai, a madrasta e a meia-irmã trabalhando para um filantropo bem intencionado, um tipo de Georges Soros.

A jovem rebelde, chamada Gretchen, desconfia de coisas estranhas no hotel e na cidade: vultos, ruídos e náuseas frequentes nas hóspedes. Perseguida por uma estranha criatura, Gretchen não recebe ajuda da polícia local, com exceção de um ambíguo investigador. Além disso, o empregador do seu pai demonstra um comportamento estranho e invasivo. Descobrir o que se passa no lugar é o meio de salvar não só a si mesma como a própria irmã.

A narrativa parte de uma série de premissas absurdas envolvendo determinadas entidades (não dá para falar muito sem revelar a trama), modificações na percepção da realidade e uma série de provações físicas. A relação de Gretchen com o pai é tensa, pois ela sente-se relegada pela devoção paterna à nova família. O subtexto de “fraternidade feminina” mostra-se essencial para caracetrizar os personagens masculinos como assustadores e desnecessários. A maturação da protagonista dá-se na reavaliação de sua relação com a irmã e com a figura feminina de um modo geral.

A ambiência do filme lembra, em vários aspectos, “A cura” (2016) marcando uma interface com o plot “cientistas loucos obcecados”; dessa vez a tematização é ecológica e não eugênica. Outra semelhança temática (não pensem muito ou poderão desvendar a charada) encontra-se no filme “Vivarium” (2019) em que também há menções aos incomuns hábitos dos cucos.

Sua sútil crítica ao ecologismo radical sugere os bem intencionados defensores da fauna e flora como darwinistas inclementes com os próprios seres humanos. Aliás, o filme mostra-se eficaz por apresentar um cenário natural deslubramente incapaz de despertar qualquer reação na jovem fragilizada por seus conflitos familiares.

Sem recorrer, diretamente, ao sobrenatural, o filme carece de uma maior razoabilidade em sua argumentação interna. Nas situações clímax há muitos pontos de desencaixe e desdobramentos desconexos. A tese sustentada assinala a demanda masculina de redução da mulher ao papel de mãe. Uma forma de escapar dessa “invasão de propósito” seria por meio de vínculos horizontais estabelecidos entre as fêmeas.

Mulheres e passarinhas, uni-vas!

Cotação: ☕☕☕