quarta-feira, 19 de abril de 2017

Morris from America





Morris from America, 2016. Alemanha, EUA. De Chad Hartigan 
             
Morris from America é um filme despretensioso, mas muito eficiente na construção de uma narrativa acerca do estranhamento. Trata-se da história de Morris, um afro-americano de 13 anos quemorando com o pai em Heidelberg, vivencia a dificuldade de adaptação, a experimentação de drogas e o despertar sexual.

Deparando-se com a alteridade, o garoto refugia-se em sua identidade étnica e cultural, uma estratégia de ressignificação do cotidiano. Insistindo em colocar-se como um “gangster”, ele é um ouvinte de rap em meio ao público da música eletrônica. Sua condição de estrangeiro não poderia ser maior, já que a música parece ser um dos principais eixos de ligação entre os jovens.

Gentry, o pai de Morris, é um técnico de futebol que tenta educar o garoto a partir de valores específicos e, naquele contexto, deslocados: trata-se da cultura urbana negra dos norte-americanos. Portanto, Gentry é um personagem contraditório, pois exige a obediência do filho ao mesmo tempo em que instiga a irreverência. Para isso ele expõe a própria trajetória de rapper juvenil e aventureiro.

Aliás, há uma passagem problemática (talvez a única), quando Gentry se recusa a ouvir as alegações de Inka, a dedicada e inteligente professora de alemão, quanto aos textos misóginos escritos por Morris. Desenha-se nitidamente a arrogância americana ao rechaçar as censuras feitas por Inka. O subtexto é óbvio: a misoginia precisa ser aceita no cenário rap.

Morris encontra-se perdido na bela cidade de Heidelberg, depara-se com o bullying dos alemãezinhos e a má vontade dos adultos. Mas é na paixonite do garoto pela nativa Katrin que está a chave para a imersão no mundo jovem alemão. Uma forma eficaz de revelar as diferenças culturais entre as adolescências americana e europeia.

Com um roteiro livre dos clichês, Morris from America expressa o lado poético e melancólico da juventude. Além disso, graças às personagens bem construídos, a adaptação e a alteridade aparecem como dimensões contraditórias: excitantes e amedrontadoras.

A compreensão quanto à globalidade da cultura afro-americana referencia a já aludida arrogância americana, mas não deixa de ser engraçado a postura de Morris com relação a Alemanha. Sua má vontade fica evidente no semblante carregado e no mau humor de um pré-adolecente. Enfim, um "gangster" com uma pistolinha de água. Eis o Novo Mundo ameaçando o Velho...

Cotação: Bom

domingo, 16 de abril de 2017

Sandy Waxler





Sandy Waxler, 2017. EUA. De Steven Brill.

Vez ou outra aparece o entendimento de que a indústria do entretenimento vai bem, pois nunca se investiu e se lucrou tanto quanto nos tempos presentes. Por essa perspectiva, os serviços de streaming exemplificariam a democratização da cultura e do lazer, pois haveria todo um acervo de experiências válidas e legalizadas acessíveis a partir de um clique.

Tal entendimento, no entanto, está longe de ser verdade e as evidências contra isso falam por si só! É o caso do irregular Sandy Wexler (2017), protagonizado pelo Adam Sandler e produzido e lançado diretamente no Netflix. O filme se passa nos anos 90 – o novo filão a ser explorado pelos nostálgicos – na cidade de Los Angeles, onde um empresário tenta projetar a carreira de clientes pouco talentosos.

Adam Sandler é Sandy Wexler, um caricato e carismático empresário. Ele se assume como “bobão” de fala arrastada, visual brega (mesmo para os anos 90) e comportamento antissocial. Mas fica a dúvida se Wexler é de fato um incompetente; a insistência em mostra-lo como desajustado não harmoniza com a sua facilidade de circulação nos círculos dos famosos, sempre encontrando colegas ou amigos que alcançaram o sucesso no show business.
 
É este o ponto que pretendo destacar, a autocongratulação de Sandy Wexler ao streaming. Há um conjunto recorrente de alusões e piadas que contrapõe os anos 90 aos “dias de hoje”. Possivelmente a intenção é vangloriar a possibilidade de sucesso para qualquer um que tenha talento – no plano de fundo encontra-se o autoelogio às plataformas do Netflix e do Youtube.

Sandy Wexler se propõe a fazer o que as redes sociais, os blogs, e os canais de vídeos hoje o fazem: tirar as pessoas do anonimato e dar-lhes o tão cobiçado reconhecimento.

Tanto que o ponto forte do filme baseia-se nas ironias contra aquele mundo anterior à universalização da internet. Waxler elogia a Blockbuster, desconhece o correio eletrônico e faz pouco caso da Pixar. Ou seja, como um genuíno homem dos anos 90, ele supõe que é no tête à tête e na articulação de contatos que se encontram as portas para o show business. A internet seria, naquele contexto, uma brincadeira de nerds.

Mas tendo em vista que a maior parte dos clientes de Waxler são nulidades (ventríloquo, malabarista, lutador de Westler) do mesmo naipe de muitas subcelebridades que hoje não abrem mão dos seus 15 minutos de fama, cabe o questionar se, afinal de contas, tal democratização da cultura seria a própria universalização do mal gosto e do apego aos pastiches.

Pois se o que a indústria cultural tem a oferecer (como algo original e feito diretamente para o streaming) é Sandy Waxler, fica desculpada a tendência de rememorar a década de 90.

Cotação: Regular

domingo, 9 de abril de 2017

Muppets 2





Muppets 2: Procurados e Amados, 2014. EUA. De James Bobi

A composição cênica resultante do uso de fantoches no “mundo real” assinala a tensão insolúvel dos Muppets. Trata-se de um universo ficcional no qual os humanos coexistem com fantoches de animais antropomórficos sem que tal irracionalidade seja percebida. Desse modo, a narrativa encontra-se tensionada pelo absurdo, até mesmo porque os recursos metalinguísticos exploram a natureza cômica de tais contrassensos.

O enredo não traz nada de novo: amontoados de clichês articulados de forma pretensamente divertida. Enquanto os Muppets encontram-se em uma turnê mundial (leia-se europeia), um audacioso roubo é planejado. O sapo bom, Kermit, é preso na Sibéria e substituído pelo sapo mau, Constantine, a fim de que a trama maligna seja colocada em movimento.

As temáticas banais e lacrimejantes sobre a amizade, a família e o amor verdadeiro são utilizadas mais uma vez. Tudo adoçado com poucos momentos cômico e números musicais irregulares – revelação de que os Muppets se tornaram um pastiche de si mesmos. Nem mesmo Ricky Gervais, interpretando um dos vilões, consegue se apropriar do potencial humor non sense da narrativa.

Na verdade, o valor do filme se baseia no tipo de subtexto construído a partir da irracionalidade já apontada. Isso nos leva a questionar nas causas da insistência em uma comédia de fantoches para adultos (ou pelo menos para “todas as idades”). A poética infatilóide de Muppets 2 denuncia as dificuldades de coexistência entre o saudosismo e o burlesco. O resultado é o enfraquecimento da comédia e o apelo à lembrança de que já houve um dia no qual todos podiam sorrir dar tiradas inteligentes de um sapo de pano.

Firma-se mais um monumento da crise da comédia hollywoodiana contemporânea.

Cotação: Fraco

Café com Cinema versão 2017



Os tempos são outros, mas retorno. Há uma razão para isso e não é o tédio.

Apesar de ter perdido a cinefelia retorno porque sinto a vontade de escrever sobre a banalidade do cinema contemporâneo. O “empoderamento feminino” transformado em paradigma de Hollywood, o insistente multiculturalismo bem comportado, o desaparecimento da comédia como elogio ao absurdo e o apego aos heróis como os únicos agentes sociais possíveis.

Estou velho e dei para dormir nas salas de cinemas ou no sofá, diante da televisão conectada ao Netflix. Talvez não devesse insistir... Além disso, há uma garotada barulhenta a qual não deve ser dado o direito de comentar.

São muitos incômodos, bem sei. Mas só há uma maneira de enfrenta-los, com café e cinema. Estão avisados, já sabem o que esperar.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Denominador comum: a defesa da prole

Contatos de 4º grau (The Fourth Kind), 2009. EUA. De Olatunde Osunsanmi

A estrada (The Road), 2009. EUA. De John Hillcoat

Sempre me fascinou como as experiências fílmicas se articulam a partir da prática cinéfila, gerando sentidos antes insuspeitos. Em uma tarde assisto Contatos do 4º grau e A estrada. Dois filmes bem estruturados e que mereceriam comentários específicos, mas que agora os utilizo como uma proposta à reflexão de temática da paternidade.

Contatos do 4º grau aborda tal questão tangencialmente, uma psicóloga interessada em estudar uma “epidemia” de distúrbios do sono e pavor noturno em uma cidade do Alasca choca-se com a possibilidade de que pessoas estariam sendo abduzidas. Sua metodologia (hipnose) passa a ser questionada por autoridades locais, que a consideram culpada por uma série de sinistros acidentes envolvendo seus pacientes. O aprofundamento na pesquisa resulta no desaparecimento da própria filha, provavelmente seqüestrada por seres misteriosos.

A estrada
é um filme forte e impactante, com uma tonalidade tão pessimista que faz outros filmes apocalípticos parecerem um passeio no parque. O planeta terra está morrendo, não restam mais animais ou vegetais, tão somente troncos de árvores e gramíneas ressecadas e congeladas. Grande parte dos seres humanos pereceu, há uma minoria que anda errante a procura de migalhas da civilização caída. O canibalismo é a ameaça cotidiana. Nesse cenário sombrio (no qual o suicídio se converteu na mais sábia decisão) pai e filho tentam sair do interior americano em rumo ao mar, para depois alcançarem o sul.

Como recuperar a filha retirada do aconchego do lar e conduzida até uma nave por uma luz dourada, fria e paralisante? Como a mulher deve se posicionar para a defesa da criança já traumatizada por eventos anteriores?











[O homem e o fardo da força; a mulher e a absorção da paixão.]


Como proteger um garoto de um mundo no qual a solidariedade humana se sublimou e a perspectiva mais realista é a morte por fome ou frio, quando não o abate por outro ser humano? Poderá um homem ensinar ao filho os valores de uma civilização já inexistente? Como garantir a sobrevivência moral e física?

Dois desafios lançados, que receberão itinerários diferentes com eventuais possibilidades de redenção. No filme de Osunsanmi o que fica são os lugares já visitados da mulher acusada de insanidade e histeria. Parece prevalecer a crença de que a defesa materna se consiste em um jacto violento de amor, desprovida de racionalidade. A ação feminina carece de uma força para o enfrentamento às adversidades, o choro e o desfalecimento são as conseqüências esperadas de qualquer ação.

Visões sutis e implicitamente misóginas abundam a história do cinema americano e no que se refere ao universo familiar as mulheres sempre caem nas mesmas armadilhas. As autoridades as interpelam “estás louca?” e a resposta é um grito histérico “I want my daughter”. O embate poder masculino X instinto materno é fundamental, em Contatos do 4º grau transparece o desconforto do delegado perante os métodos da Dra. Tyler, esta vista constantemente como suspeita. Recusa à vida alienígena ou a percepção de uma inadequação entre as condições de mulher e cientista?

Tal filme é, sobretudo, um sensacionalista pseudo-documentário acerca da possibilidade de vida extraterrestre. Mas traz em seu bojo uma caricatura da mulher, mãe na busca incessante ao rebento subtraído.

Já no excelente trabalho de John Hillcoat, vemos outro caminho se constituir em torno da paternidade: racionalismo e virilidade. Não há lugar para prantos desmedidos, cabe ao masculino defender o filho e ensinar a lição sobre o gênero humano em épocas sombrias. Tudo dito em tom seco e melancólico, pois se questiona, em primeiro lugar, a própria perfectibilidade da natureza.

A destruição do mundo revelou a disposição dos homens e mulheres em se abnegarem de qualquer altruísmo, tudo em nome de uma sobrevivência visceral. No ocaso da Terra, não há nada de bom no homem que faria um deus sábio prolongar sua existência. Somente a inquebrantável força do amor paterno (sentimento heróico e quase bíblico) parece dar sentido ao autofágico mundo pós-hecatombe.

Dois filmes bastante diferenciados, mas quando inter-cruzados nos oferecem paralelos interessantes:

mulher – amor/incondicional – descontrole – histeria – fraqueza

homem – amor/obrigação – racionalidade – auto-controle – força

Embora a escolha desses dois filmes seja aleatória, não há como negar as relações de gênero existentes no cinema americano (tipicamente ilustrada nos dois exemplos). Vejo possíveis releituras e banalizações de estereótipos da psicanálise que se popularizaram em começos do século XX.

As duas sagas apontam para desfechos dramáticos, nos quais as rupturas nas vidas de uns significam a continuidade da existência de outros. O cinema americano parece obcecado em se perguntar sobre a viabilidade da família nuclear. Valores tradicionais em roupagens modernas. Que os desavisados não se enganem, a questão de fundo é se o mundo pode sobreviver fora de uma ordem patriarcal.