segunda-feira, 9 de junho de 2025

A Filha do General

A Filha do General. The General's Daughter. De Simon West, 1999.

Um thriller policial com ação e todos os elementos característicos do cinema dos anos 1990. Conhecido por seus filmes de ação, Simon West aposta novamente em personagens durões e outsiders. Aqui, temos John Travolta como um investigador da polícia militar, designado para elucidar o assassinato de uma oficial do exército: a capitã Elizabeth Campbell, encontrada amarrada e, possivelmente, estuprada.

Elizabeth é filha de um general prestigiado e em ascensão política, cotado inclusive para a presidência dos Estados Unidos, adicionando, assim, mais tensão e urgência à narrativa. A partir desse ponto, a misoginia das Forças Armadas americanas começa a se revelar.

Se a premissa é promissora, seu desenvolvimento deixa a desejar. O filme até funciona, mas exige boa vontade do espectador. Travolta, com seu estilo canastrão hipertrofiado, encarna bem o papel: um sargento e investigador que não segue as regras. A condição de investigador militar parece lhe conferir certa liberdade para burlar a hierarquia, mas isso nem sempre soa verossímil – como na cena em que prende um coronel sem grandes consequências. É um exagero típico do gênero, mas que enfraquece a credibilidade da trama.

Essa liberdade narrativa em torno do herói determinado a se contrapor ao sistema não é muito realista. Investigadores militares, especialmente de baixa patente, não teriam tanto autonomia para interrogar ou prender oficiais superiores. O filme conta com a suspensão de descrença da audiência média. Esse tipo de personagem não é exatamente os anti-heróis que vemos hoje, mas é o mais próximo que se tinha na época; eram frequentes no gênero policial (vide Máquina Mortífera).

O filme busca criar um clima de tensão crescente. A pressão sobre os investigadores e o receio de que o caso escape da jurisdição militar para cair nas mãos do FBI são bem traduzidos pela fotografia: com baixa saturação e textura granulada, a imagem transmite a atmosfera insuportável em que vivem os personagens. Estão sempre transpirando e seus rostos molhados e ofegantes reforçam a sensação de calor opressivo, como se a própria instituição estivesse febril diante da possibilidade de escândalo.

Porém, as cenas de ação são insuficientes para um público apreciador de embates mais diretos. As rotinas de investigação não convencem plenamente e, para contornar isso, o roteiro recorre a situações forçadas – como a presença de uma investigadora civil desguarnecida em um cenário hostil, exposta aos militares. O médio oficialato também é representado de forma apequenada, sem se manifestar como contraponto adequado ao sargento durão de Travolta.

A temática é relevante, especialmente por abordar a posição delicada das mulheres no ambiente militar. Mas, como era comum nos anos 1990, elas aparecem pouco e quase sempre como coadjuvantes ou vítimas. Não são totalmente passivas, mas continuam presas a estruturas que não controlam. Toda a agência cabe ao personagem de Travolta, que sai metendo o pé em todas as portas até encontrar, meio ao acaso, os verdadeiros culpados.

Para o espectador atual, o filme tem valor limitado, mas serve como peça de época. É um exemplar de um momento em que o “cinemão” buscava narrativas mais adultas, ainda distante da era dos super-heróis e do predomínio dos efeitos visuais. De certo modo, o filme oferece um mergulho no universo militar norte-americano, com tintas políticas, mas termina mirando na denúncia institucional e acertando numa ferida mais íntima: a figura paterna ausente e a solidão traumática da filha do general. O desfecho é triste, pouco redentor, mas coerente com esse cenário em que as Forças Armadas dos Estados Unidos tentavam tornar-se mais inclusivas.

Cotação: ☕☕☕

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Heróis do Oriente

Heróis do Oriente. Zhonghua Zhangfu. De Lau Kar-leung, 1978.

Filme interessante e marcante do cinema chinês, lançado em um período em que as artes marciais estavam no auge do prestígio internacional. Heróis do Oriente oferece mais do que apenas pancadaria estilizada: parte de uma premissa curiosa e criativa, na qual os descompassos entre um jovem casal, o marido chinês e a esposa japonesa, são traduzidos em embates físicos, transformando a convivência conjugal em uma disputa sobre qual estilo de luta seria mais formidável: o kung fu chinês ou as artes marciais japonesas.

Inicialmente, a história é particularmente cativante ao usar as batalhas entre o casal como metáfora para os ajustes e atritos naturais dos recém-casados. O entusiasmo da personagem Yumiko, interpretada por Yuka Mizuno, contrasta com a altivez e teimosia de Ho Tao, vivido por Gordon Liu, que se recusa a fazer concessões à esposa ou reconhecer o valor do conhecimento que ela traz de sua cultura. Esses duelos domésticos bem-humorados evidenciam não apenas as tensões históricas entre Japão e China, mas os próprios desafios universais do casamento.

A maneira como eles se digladiam pela casa dá o tom da obra, deixando os serviçais e os parentes apreensivos. O ajudante de Ho Tao, por exemplo, sofre particularmente com isso: suas tentativas de separar as brigas acabam rendendo-lhe uma série de golpes involuntários, tanto de karatê quanto de kung fu. Esses momentos contribuem para o tom cômico do filme, mas também reforçam como os descompassos dos pombinhos.

Derrotada em todas as modalidades de kung fu apresentadas pelo marido, Yumiko foge humilhada para o Japão. Lá, retorna com um admirador e um grupo de mestres japoneses, cada um representante de uma arte marcial distinta – karatê, judô, kendo, entre outras – com o objetivo claro de provar a superioridade técnica e filosófica das tradições marciais nipônicas. A trama então se desloca para um desfile de confrontos altamente coreografados, cuidadosamente diferenciados por estilo, armamento e ritual. Nesse momento o filme perde um pouco do brilho, pois Yumiko praticamente desaparece.

Embora o filme assuma um tom pacifista, promovendo o respeito e o intercâmbio cultural, é inegável que sua narrativa pende para um viés pró-chinês. Ho Tao, mesmo descrito como um lutador apenas razoável, derrota todos os mestres japoneses que chegam para desafiá-lo. A mensagem, por vezes sutil, por vezes cômica, é direta: cuidado, mestres japoneses! Qualquer zé-ninguém nas esquinas de Xangai pode dar-lhes uns sopapos com uma boa dose de kung fu tradicional.

Não fica claro o período em que a trama se passa – talvez já no século XX. O pai de Yumiko usa ternos ocidentais, reforçando sua posição como mediador das duas culturas. Os navios apresentados nas cenas de desembarque são modernos, o que evidencia uma certa liberdade temporal por parte da produção. Não se sabe se faltaram recursos ou se simplesmente não houve preocupação em recriar embarcações da época. De todo modo, a ambientação do filme é abertamente caricata: os cenários são teatralizados, mas eficazes para estabelecer a contraposição visual entre o universo chinês e o japonês.

Essa distinção cultural é reforçada também pela fotografia. O filme aposta em uma paleta de cores saturadas e contrastes simbólicos. As cenas ambientadas na China são mais quentes, densas e urbanas, com cores vibrantes e movimento constante. Já o Japão é retratado com tons mais frios, claros e compostos – transmitindo uma sensação de ordem, silêncio e espiritualidade zen. Essa diferença cromática reforça, visualmente, o contraste entre dois mundos culturais distintos que precisam aprender a coexistir.

Produzido pela lendária Shaw Brothers Studio, Heróis do Oriente carrega muitas das marcas estilísticas que consagraram o estúdio como um dos maiores expoentes do cinema de artes marciais de Hong Kong entre as décadas de 1960 e 1980. Conhecida por seus cenários artificiais, figurinos exuberantes e abordagem teatral, a Shaw Brothers priorizava a clareza coreográfica e o impacto visual sobre o realismo histórico. Em vez de ambientações fiéis ao passado, seus filmes criavam espaços simbólicos onde os combates podiam ser lidos como metáforas culturais ou morais. Essa estética, claramente presente em Zhonghua Zhangfu, contribui para o caráter atemporal da narrativa e reforça o contraste visual e ideológico entre as tradições marciais da China e do Japão.

Logo no início do filme, já se percebe essa oposição: os chineses estranham as vestes brancas da noiva japonesa, que destoam dos trajes pretos do noivo e de seus convidados. A sequência é um microcosmo visual do que o filme desenvolverá ao longo de sua narrativa: uma dança constante entre estranhamento e tentativa de assimilação. Mas Yumiko está em desvantagem, pois o seu horizonte é da capitulação.

A primeira parte do filme é mais rica em termos de desenvolvimento narrativo, com um sabor de comédia conjugal. Já a segunda metade assume um tom quase instrucional, com demonstrações técnicas de combates, dissipando um pouco do frescor da obra. Além disso, os conflitos matrimoniais não chegam a ser plenamente resolvidos: Yumiko previsivelmente faz concessões ao retornar com trajes chineses, mas essa mudança é mais simbólica do que uma efetiva reconciliação.

Trata-se, portanto, de uma comédia divertida, engenhosa em sua premissa, mas narrativamente limitada. E, claro, não tem vergonha de aplicar um simbólico 7 a 0 para os chineses – com direito a reverência final dos derrotados. Para fãs do gênero, é uma pequena joia com sabor nacionalista e bom humor coreografado.

Cotação: ☕☕☕☕

domingo, 4 de maio de 2025

Um homem diferente

Um Homem Diferente. A Different Man. De Aaron Schimberg. 2024.

Na literatura, o duplo é um tipo de personagem que é idêntico a nós, mantendo, no entanto, uma única diferença que nos ameaça ou nos expõe. Em Um homem diferente temos essa questão levada até a última consequência: quem somos e a partir dos olhos de quem somos?

Acompanhamos Edward, um homem com neurofibromatose que tem a possibilidade de passar por um tratamento experimental a fim de eliminar as suas deformidades faciais. No entanto, o novo rosto não ameniza ou atenua seu senso de deformidade. Ele continua se vendo como um disforme, tentando não atrair a atenção do mundo para si mesmo. Tal situação se intensifica ao conhecer Oswald, outro doente de neurofibromatose, mas com uma postura completamente diferente.

O filme trabalha com várias temáticas das narrativas urbanas, tais como o anonimato e o doppelgänger, isto é, a existência de uma cópia de si existente em algum lugar na cidade. Em um dado momento, o real e a cópia se encontram (nem sempre sabemos qual é qual) e os impactos são existenciais. Aliás, a própria tessitura da cidade coloca-se como um problema da filosofia da existência, uma vez que ela se constitui em um labirinto de situações e sensações. Gradis, elevadores, restaurantes e bares fazem parte de um cosmos em que as pessoas se deslocam, por isso a sensação constante de aprisionamento.

Do metrô ao apartamento, situações da vida social se conectam ao self individual. A identidade e a individualidade surgem como frutos das negociações entre os nossos olhares e os dos outros. No limite, a monstruosidade de Edward não é externa; as pessoas podem até tratá-lo com um certo desdém ou ou nojo inicial, mas ele também cultiva um processo de autoisolamento. Seu próprio nome remete aos personagens shakespearianos (dos Ricardos aos Edwards) e à icônica figura de Tim Burton, o Edward Mãos-de-tesoura.

No fim das contas, face e rosto são dimensões distintas. Se o primeiro é superficial, o segundo se conecta com as dobras mais profundas da consciência. E o rosto, como expressão da verdade incontida, é tanto acusatório quanto auto acusatório.

Por isso o grande desespero do personagem principal é seu apego à vitimização. Nesse sentido, a narrativa brinca com didatismo e metáforas para tematizar a solidão da experiência moderna.

Cotação: ☕☕☕☕☕