Nosferatu. De Robert Eggers, 2024.
Das três versões de Nosferatu, a releitura
que chegou ao Brasil em janeiro de 2025 é a melhor delas. Sob a direção de
Robert Eggers, combina com maestria elementos dos filmes de mesmo nome dos anos
de 1922 e de 1979, bem como alguns detalhes do Drácula de Bram Stoker (1992).
De forma primorosa, inspira-se nos antecessores, fecha pontas soltas deixadas por
eles e traz novos elementos que o transformam em uma excelente opção para ser
vista.

Tal
como o enredo pioneiro de 1922, Eggers manteve os personagens adaptados por Friedrich Wilhelm Murnau em virtude dos impedimentos criados
pela viúva de Bram Stoker, conforme já explicado em crítica anterior. Thomas
Hutter, em lugar de Jonathan Harker, é um corretor de imóveis que recebe a
missão de viajar para a remota e sombria Transilvânia. O objetivo era negociar
a venda de uma casa em Wisborg para o misterioso conde Orlok, em lugar de conde
Drácula, cuja nova residência ficaria bem em frente à casa onde vive com a
esposa, Ellen, em lugar de Mina. Ao chegar ao castelo, Hutter percebe que há
algo profundamente perturbador no conde. Mais aterrorizante ainda é a
constatação de que o conde se mostra fascinado por Ellen e a ameaça da presença
dele se estende a Wisborg, onde Hutter vive com a esposa em meio a uma união
recentemente celebrada.

Knock,
em lugar de Renfield, chefe de Hutter, não é um perfil assustadoramente estranho
como na filmagem de 1922 nem uma mistura tragicômica de um homem claramente
desnorteado como na obra de 1979. É aparentemente um homem polido, mas que no
domínio privado entrega-se a rituais de magia. No decorrer da história, a
instabilidade mental de Knock ganha força, incluindo os ataques em busca por
sangue humano ou animal.

O castelo do conde apresenta um ambiente rústico,
mostrando-se ameaçador por meio da exploração dos jogos de luz e sombra. Já o conde
Orlok é menos caricato que nas outras versões: é uma sombra potente, de voz
intensa, bem como grande poder psicológico, cuja aparência é desvelada aos
poucos para o espectador. Quando muito é possível perceber que se trata de um
homem alto, com aparência decomposta pelos séculos de existência, mas de farto
bigode, poucos cabelos e a presença de uma corcunda. Não tem uma aparência
agradável de ser vista, mas possui uma forte presença, capaz de impactar o
espectador. Permanecem os dedos anormalmente longos, terminados em garras,
comuns nas outras produções.

Há um intenso jogo de luz e sombra, recurso usado
na primeira versão e aprimorado na produção de 2024. Além de explorar,
portanto, a sensação de ameaça constante, muito presente no filme de 1922, torna
a atmosfera densa e o conde assustador, porém impactante, sem precisar recorrer
a recursos que o assemelhem a um monstrengo. Orlok denota um ser enigmático,
mas na reta final, permite que entendamos em alguma medida a conexão dele com
Ellen por meio de explicações sobrenaturais, ao mencionar, por exemplo, outras supostas
encarnações em que conviveram. Esse detalhe também é reforçado pelo professor excêntrico
que é convidado a trabalhar no caso de Ellen, que a define como alguém que poderia
ter sido uma grande sacerdotisa, dadas as conexões mediúnicas que ela demonstra.
No diálogo final entre Ellen e Orlok, a conversa deixa transparecer aquilo que
a doutrina kardecista compreende como compatibilidade espiritual (ou fluídica)
entre ambos, despertada por Ellen quando criança sem que tivesse noção da
capacidade mediúnica que portava e o alcance da mesma. Tais informações não
foram exploradas nas obras fílmicas anteriores.

Diferente
das produções de 1922 e de 1979, quando o vampiro usa os dentes frontais para
sugar o sangue das vítimas ou aqueles que posteriormente o fazem por meio dos dentes
caninos, Nosferatu (2024) explora a absorção do sangue, mas não necessariamente
focando no uso da arcada dentária. Como um vampiro contemporâneo, circula
apenas de madrugada, diferindo do filme de 1922. De outro lado, rompendo com as
releituras pós- Murnau, não concede espaço para
a simbologia do morcego em associação com a presença do vampiro. Retoma,
todavia, a presença dos ratos e a menção à peste que trouxeram, tal como os
antecessores. Não explica, porém, a conexão dos ratos com a vitalidade
do vampiro como na produção de da década de 1920.

Distinto dos antecessores, a película não só vai
além das relações entre Ellen, Hutter e Orlok, abarcando os impactos da peste
na população da cidade, como aprofunda outros aspectos. Detalha, por exemplo, a
morte de pessoas próximas à protagonista, traz à tona diálogos sobre transformações
psiquiátricas no período e explora o embate entre o conceito de ciência em fins
do século XIX frente às manifestações sobrenaturais. Esses três temas são
abordados como em nenhuma outra versão até agora.

Em nítido contraste com o antagonista, Hutter
encarna o arquétipo de bom moço. Não é ingênuo como o de 1922, não é frágil
como o de 1979 e nem totalmente incrédulo como ambos. É um homem correto, em
alguma medida ambicioso, oscila entre o medo e o cumprimento do dever, a
coragem e angústia do que está por vir, alguma fé e o eco das superstições, o
susto e o enfrentamento da realidade. Distinto dos demais filmes, consegue
fugir de forma mais ousada e é curado parcialmente em um convento de freiras
católicas ortodoxas, não em um hospital. Repete a postura de interromper a
própria recuperação para retornar aos braços da amada em busca de salvá-la de
um mal maior. Embora perceba a possibilidade de ter sido atacado por conde
Orlok enquanto foi hóspede do castelo, não se rende à condição de vampiro como
na película de 1979 nem a trata de forma cômica como na de 1922. Usa essa
aparente conexão como meio para localizar o antagonista em meio à caçada
necessária para combatê-lo.

Assim como os filmes de 1979 e de 1922, traz a
presença dos povos ciganos do leste europeu no caminho para o castelo do conde Orlok,
os quais atuam como uma fonte de alertas sobre a natureza vampiresca daquele. Hutter
não compreende, mas não desacredita, impelido pelo que aparenta ser a força do
dever a ser cumprido. Fica dividido entre pesadelos e o medo da realidade.
Reflete a confiança no mundo racional, motivado pelos avanços trazidos pelo
século XIX, mas não deixa de lado a perturbação frente à inevitável presença do
que não controla nem explica. Para tanto, no decorrer do enredo, abre espaço
para a presença de um médico que transita entre o científico e o místico, questão
essa trazida pelo filme de 1979 e aprofundada no de 2024, abrindo espaço para a
única solução que para a tragédia que se avizinha: uma caçada literal ao
vampiro.

Ellen, amor comum de Hutter e Orlok, distingue-se
ao não apresentar nítidas perturbações como as protagonistas anteriores, mas sim
um histórico que supostamente mistura melancolia e crises de sonambulismo,
aspecto esse mencionado desde o início da película. No transcorrer da trama a
protagonista traz características de uma suposta possessão combinada com
aparente êxtase, os quais desafiam os conhecimentos psiquiátricos do período. Em
comum com a mocinha das películas de 1922 e de 1979, Ellen tem olhos grandes e olheiras
profundas, mas também aparenta uma firmeza de caráter que nenhuma das
antecessoras demonstrou. De igual modo, aparece rodeada de um gato, rememorando
a crença que remonta ao Antigo Egito de que tais felinos permanecem onde estão
presentes os maus espíritos.

Semelhante à sequência de 1979, Ellen alterna
entre fragilidade e enfrentamento, sobretudo na segunda metade do filme, quando
passa a se comportar de forma mais assertiva com diferentes personagens que a
rodeiam. Oferece, uma vez mais, a vida a Orlok visando à salvação de Hutter e estancar
a disseminação da peste. O conde, como nas outras versões, sacia-se do sangue
da jovem no decorrer de horas a fio, quando é surpreendido pelo cantar do galo,
não percebendo o nascer do sol. Padece, assim, sob a claridade que o atinge.
Tal cena tem um forte componente de sensualidade, maior do que a versão de 1979,
assim como outros momentos do filme denotam uma proximidade entre algoz e
vítima que vai além da conexão espiritual, mas também são marcados por forte
tensão sexual.
Camila Similhana