sábado, 3 de agosto de 2024

Comanche Station (Cavalgada Trágica)

Cavalgada Trágica (Comanche Station), 1960. De Budd Boetticher.

Eis o cinema clássico com colheradas de inquietações autorreflexivas. Personagens questionando-se quanto ao sentido da existência no Velho Oeste com os vilões relutando em serem vilanescos.

Cody (interpretado pelo veterano Randolph Scott) vive uma busca infrutífera na região dos Comanche atrás de sua esposa raptada dez anos atrás. Em uma dessas andanças resgata uma mulher branca recém-sequestrada, a Sra. Lowe, iniciando o retorno rumo à civilização. Um plot bem simples, mas carregado de camadas e nuances. Os Comanches são antagonistas, mas simplesmente reagindo a ataques recentes.

Cody cruza com um antigo desafeto, Lane, que decide acompanha-lo no intuito de receber a recompensa pelo resgate da moça. Lane e seus dois pistoleiros são personagens ambíguos, indivíduos cinzentos; não podem ser equiparados facilmente aos malvadões do Western. Embora terminem por assumir a posição de vilões, encontram-se abertos a reconsiderações. Advinham, inclusive, seus próprios destinos: em um dado momento Cody pergunta a um dos jovens criminosos se ele estaria ciente de seu possível enforcamento ao que o aprendiz de facínora responde “sim”.

No Oeste não há como fugir dos papeis impostos; o solitário está fadado à solidão; e não obstante o seu respeito aos indígenas não lhe cabe outro destino se não matá-los. Os Comanches, por sua vez, são uma força quase natural. Nos limites do Novo México encontram-se reduzidos a uma provação adicional ao herói. A própria Senhora Nancy Lowe, possivelmente violentada pelos indígenas, regressa com uma sensação de impureza, externando o lugar ocupado pela mulher nesse universo masculinizado.

Mas há inflexões geradas pelos ventos das mudanças. Trata-se de uma das muitas remissões do gênero relacionada ao contexto sociocultural dos anos sessenta nos Estados Unidos. O desfecho, com Cody se voltando para o território selvagem, dialoga com a caminhada de John Wayne no filme Rastros de ódio de 1956. Neste último, o plano de fundo exibido são as formações rochosas do Monument Valley ao passo que em Comanche Station são as belíssimas paisagens de Alabama Hills.

Os dois filmes abordam o resgate de brancas abduzidas por Comanches. Ambos reforçam a moral do homem branco em seu dever civilizacional, mas denunciando a destruição das culturas nativas. Tal revisionismo do gênero – miticamente considerado o fim do Western – seria radicalizado anos mais tarde com um outro filme (talvez o mais potente de todos): Once Upon a Time in the West de Sérgio Leone. Ferrovia e telégrafo finalmente ligam leste e oeste atravessando planícies outrora dominadas pelos nativos-americanos. E uma vez concluída a missão civilizatória, pistoleiro e ranger tornam-se obsoletos e desnecessários. Comanche Station prevê tal situação e dita a possibilidade do “bang-bang” se intelectualizar por meio da autorreflexão.

Cotação: ☕☕☕☕

[Alabama Hills, região muito utilizada nas locações de filmes, aparece em Comanche Station].

[Monument Valley, regitão também utilizada nas locações cinematográficas, aparece em The Searches e Once Upon a Time in the West].

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Jogos de Apocalipse

Jogos de Apocalipse (After the Dark), 2013. De John Huddles

Este filme tem um título alternativo, The Philosophers, empregado na distribuição para outros lugares fora dos Estados Unidos. Os norte-americanos não gostam muito desse lance de filosofia e pensamento, portanto faz sentido ficarem com um título genérico: After the Dark.

Valeu a pena? Bem, podemos dizer que o filme é um esforço de abordar as temáticas filosóficas na forma de autoconhecimento. Adolescentes multiculturais estudando em Jacarta e oriundos de elites cosmopolitas enfrentam a prova final de um professor de filosofia cujo intuito é analisar as suas respostas individuais diante do fim do mundo. Porém a filosofia apresentada em classe mostra-se restrita a um exercício individualista e narcisista.

No último dia de aula o sr. Eric Zimit impõe um exame surpresa aos seus estudantes. Eles precisam decidir quem vive e morre com base em ocupações fictícias atribuídas pelo professor. Os eleitos deverão ocupar um bunker no decorrer de um ano com o propósito de salvar a raça humana. Nessas especulações os estudantes precisam tomar decisões e arcar com as consequências de suas escolhas. Tudo no faz de conta, claro.

Ao perseguir com ameaças e ridicularizações um aluno chamado James, o sr. Zimit revela-se como o antagonista. Ele mostra-se irritado com o jovem, aparentando ter sentimentos de rivalidade e de ciúmes. Segundo o professor, James é privilegiado e por isso a pressão na disciplina é merecida. Interpondo-se entre os dois está Petra, namorada de James, mas com uma posição ambígua em relação ao Zimit. Detrás dos esforços argumentativos do professor se escondem as dificuldades diante da perda, revelando uma visão bem oposta a uma moralidade estoica que eventualmente ele poderia emular.

E em meio a esse triângulo amoroso (ops.) somos agraciados com uma verborragia vazia sustentada por um suposto pensamento criativo de um curso de Iniciação à Filosofia Ocidental (ou algo do gênero). Partindo da proposta de imaginar realidades possíveis, a narrativa se complica com a inevitável constatação do elitismo sugerido: a salvação do mundo estaria nas mãos de uma dezena de jovens ricos.

O filme se organiza a partir da dramatização de três cenários apocalípticos com resultados distintos. No entanto, ao enfatizar o caráter pedagógico das realidades imaginadas a imersão em cada uma das histórias perde força. Talvez fosse necessário enfatizar linhas de tempo possíveis ao invés de um tipo de RPG educativo. Assim, nos importamos pouco com o destino dos personagens, pois sabemos que nada daquilo é real.

O filme também soa piegas ao defender com muito bom-mocismo as artes como o melhor antídoto para a destruição do mundo. Afinal, depois da escuridão só restariam os filósofos mirins na obrigação de decidirem entre a lógica ou a ética. Mas parece que nesse exercício a questão do sexo e da sexualidade ganha maior destaque do que a reflexão sobre a miséria e a finitude humana.

Mesmo com uma proposta bem intencionada o filme acaba nos entregando apenas um professor babão e uma garotada narcisista. Pensando bem, acho que o título After the Dark foi a melhor escolha mesmo.

Cotação

P.s.: Por dever do ofício docente filme assistido muitas e muitas vezes; a última delas em 29/07/2024.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Popeye the Sailor Man: Blow me down

📺 História da animação

Blow me down, 1933. De Dave Fleischer.

Excelente animação para resgatar um período de maior liberdade criativa dos desenhos animados nos Estados Unidos – porém menos anárquico do que as produções de anos anteriores. Lançado no cinema pela Paramount como parte de uma série de animações curtas, “Blow me down” traz um Popeye brigão, barra pesada aportando com seu barco baleia em uma cidade mexicana. Derrota facilmente os mexicanos com seus chapéus característicos que insistem em entrar no seu caminho. Chegando a um bar do tipo saloon sai no braço com o chefão-mor, o Blutos, o chefe dos bandoleiros.

O personagem mantém proximidade com sua origem cartunesca, mais caçador de confusões do que herói. Olívia faz as vezes de uma dançarina e não é poupada pelo Popeye que ri de suas atrapalhadas. As caricatas representações dos mexicanos nos informam a generalização do estereótipo dos faroeste. A influência do cinema também é perceptível na simulação de um ângulo de câmera alto, quando Popeye sobre as escadas para salvar Olívia, uma solução narrativa bem original.

O estilo dos irmãos Fleischer (1933-1942) é mais seco e objetivo do que a tradição rival inaugurada por Walt Disney. A paleta em preto e branco produzida pela técnica do desenho a mão revela um traço livre da emulação do belo e fiel ao antigo formato de cartoon impresso. Com presença de elementos non-sense (algo comum no período), utiliza as gags visuais como fonte de comicidade. O foco, no entanto, está dado na sucessão de conflitos entre Popeye e o mundo. Torna canônico este episódio a famosa música “I'm Popeye the Sailor Man”, além da bublagem do marinheiro realizada por Willian Costelo.

A força do marinheiro encrenqueiro aparece em várias metonímias e metáforas, enfatizando sua força física: símbolo de outra época e mentalidade. O uso do cachimbo para consumir fumo (algo minorado em períodos posteriores) e de bebida alcóolica revelam outras concepções do adequado à audiência infantil. Nesse momento o personagem estava mais para o bad boy do que para o nice guy.

De fato, esta curta animação (6m19s) pertence a uma das fases mais criativas da franquia Popeye. Rever o episódio é um estímulo para o resgate de uma história do desenho animado.