sábado, 14 de novembro de 2009

Os Sete Samurais


Os Sete Samurais (Shicinin No Samurai), 1954. Japão. De Akira Kurosawa

Qual o valor de uma espada em tempos de paz? Embainhada, escondida, guardada: simplesmente inútil. Não há muito valor nessa lâmina, ao contrário das foices e de outras ferramentas utilizadas na faina agrícola.

O samurai sem senhor, chamado de ronin, é um errante, sem um lugar na sociedade feudal japonesa. Além de sua espada, a única coisa que traz consigo é sua honra, inconveniente, ambígua e, quase sempre, anacrônica.

Em um povoado, lavradores pobres estão na eminência de serem pilhados pelos saqueadores, alguns partem para a cidade buscando samurais pobres e famintos, dispostos a fornecerem proteção em troca de comida. Após um longo preâmbulo, sete guerreiros serão encontrados; personalidades distintas e objetivos diferenciados, mas com traços reconhecidamente em comum, um desamparo perante a vida, uma solidão difícil de ser amenizada.

Os samurais partem para defender os aldeões, mas há uma ambigüidade sobre esses camponeses que atravessa todo o filme. Que tipo de pessoas é essa gente simples? Não há como se esquivar de lançar um olhar ácido sobre esses trabalhadores, medrosos, mesquinhos, avarentos e supersticiosos, o peso da tradição atravessa tal modo de vida, tornando-os um tanto ingratos.

Os samurais expressam um orgulho que começa a se incompatibilizar com a sociedade do século XVI, se aos camponeses cabe o papel de histéricos e passionais (atributos tidos como femininos), aos sete defensores incube evidenciar a inflexibilidade, a fabilidade e a fatalidade. A ação dos samurais, de certa forma, também é parasitária, não produzem, não plantam, não colhem, apenas consomem. Não são, portanto, bem-vindos em um lugar apaziguado, tratam-se de eternos errantes.

O heroísmo demanda necessariamente uma capacidade para o auto-sacrifício e uma privação, algo que os sete compartilham. Um experiente samurai, mas que acumulou muitas derrotas durante a vida, traz junto seu antigo companheiro que havia aposentado a espada; outro habilidoso guerreiro, também sem nenhum lugar para onde ir; um jovem discípulo, que se propõe a acompanhar o grupo; um brilhante espadachim, que esconde sua angústia em um virtuosismo técnico; um samurai de 2ª grandeza, que encara a si mesmo com maior complacência; e, por fim, um lavrador travestido de samurai, o de temperamento mais tempestuoso.

O olhar que esses samurais lançam sobre os lavradores oscila entre a piedade e o desprezo, a ética do guerreiro e a do lavrador são diferenciadas. Mas o próprio lavrador-samurai justifica os camponeses, lembrando que eles são constantemente subjugados, pilhados e explorados. Humilhados e embrutecidos, não se interessam pela bravura dos soldados, preferem ver as plantas crescendo e o girar interminável do moinho d’água.

As duas classes se unem para enfrentar os inimigos, em uma série de batalhas, mas após o último conflito, no qual perecem inclusive quatro dos samurais, fica a dúvida sobre a razão do conflito. O mais velho e experiente guerreiro filosofa: “Nós perdemos, quem venceram foram os lavradores”.

Os camponeses retomam as atividades, esquecem do sacrifício dos seus convidados e defensores, as próprias camponesas deixam de achar os samurais homens “interessantes”. As espadas foram guardadas, que comece a plantação, uma atividade da vida, que remete ao futuro e ao nascimento. Enquanto isso, os guerreiros param diante dos túmulos e constatam a disponibilidade dos aldeões em se esquecerem do cemitério – lugar de morte e passado.

A tarefa do guerreiro é solitária, nunca há um ganho definitivo; sem dúvida os samurais deverão partir, pois já não há mais um lugar para eles na aldeia. A história do cinema associou em definitivo Os Sete Samurais com o western americano. Os justiceiros implacáveis (sejam usando espadas ou pistolas) estão fadados a lutar pela causa dos outros, padecem pelas arengas de terceiros. O término deste filme pode remeter a várias passagens do cinema hollywoodiano de primeira linha, mas a título de comparação pensemos na cena final de Rastros do Ódio, no qual John Wayne, após concluída sua missão, se afasta da cabana e ruma em direção ao deserto. Impossível dizer se seu sentimento é de tristeza ou resignação.


[Os samurais e o pistoleiro, a epopéia sobre os herói solitário é universal]

Essas duas emoções se materializam na feição de Kambei Shimada, o líder dos samurais, um olhar distante e triste, crítico em relação à conduta dos camponeses, mas também profundo e auto-reflexivo. Um samurai luta, essa é a sina, mas a questão é por que não se pode lutar por si próprio. Talvez, esse desprendimento – só aparentemente altruísta – seja o último elo entre os samurais e a humanidade. Que ao menos após a morte, haja um lugar definitivo para o repouso.

Cotação: Ótimo

14 de novembro de 2009

sábado, 17 de outubro de 2009

Distrito 9


Distrito 9 (District 9), 2008. África do Sul. De Neill Blomkamp

Onde Slumdog de Danny Boyle falhou, esse filme acertou em sua totalidade. Há tempos que esperava ver um trabalho assim, uma relação entre a segregação social e a alteridade.

Quem não se lembra da cena do Independence Day em que a nave alienígena sobrevoa a troposfera? Mas os seres do espaço não vieram com intuitos de destruir a Casa Branca. Para o azar dos pobres ETs, a gigantesca máquina encalhou sobre Joanesburgo, com a tripulação enfraquecida e desidratada. O mundo parou para ver a cena, os primeiros contatos foram marcados por uma expectativa geral e até certa amistosidade.

Passado o contato inicial, as dificuldades de convivência se acentuaram. Aliens, estranhos demais para os padrões humanos, a começar pela própria aparência, parecendo-se com “camarões”, termo pejorativo para designar a nova raça. Excluídos da sociedade humana, passam a cometer pequenos crimes, a vasculhar lixos, transformam-se então, na linguagem política corrente, em um problema social.

O governo da África do Sul adota uma medida por eles muito conhecida: a segregação. Cria-se então o Distrito 9, área isolada para os extraterrenos. A partir de então a xenofobia e o antropocentrismo podem se desenvolver com maestria! Aspectos muito bem trabalhados, uma vez que o roteiro foi eficazmente desenvolvido de forma neorealista pelo diretor Neill Blomkamp (estreante em longas metragens), apadrinhado pelo Peter Jackson.

Vejo três temas bastante importantes no filme, em primeiro lugar a questão da segregação com o surgimento de guetos e favelas – prática desenvolvida pelos seres humanos em vários momentos da história. Aliás, são eles os executores, os agressores, os confinadores, enquanto os “estrangeiros” vivenciam uma situação de completa impotência. Dentro do Distrito 9 surgem redes de tráfico controlados por gangues nigerianas, essas vendem alimentos para os alienígenas, além de oferecerem prostitutas humanas, recebem em troca armas muito sofisticadas, porém inúteis, já que funcionam somente com a biologia alienígena.

Percebe-se que os invasores não são uma raça conquistadora, até porque perderam seus líderes durante o acidente que reteve a nave na terra. Agressivos mas desorganizados, são facilmente contidos pelas forças da ordem.

O segundo aspecto é o papel das companhias multinacionais, sobretudo a empresa de segurança privada MNU, interessada em dominar a tecnologia extraterrena. Essa ficção mostra exemplarmente as conseqüências da privatização das forças militares e de segurança pública, entidades capazes de manipulação, atrocidades e desrespeitos aos tratados internacionais – algo como o caso de Abu Ghraibe e outros escândalos do gênero visto no Iraque e no Afeganistão.

A situação perde o controle após um medíocre funcionário da MNU se contaminar com um fluido encontrado em um barracão do Distrito 9, ele sofre uma mutação, começando a se transformar em um “camarão”. A empresa passa a persegui-lo a fim de obter seu material genético, o que a habilitaria a dominar as poderosas armas, até então inacessíveis aos humanos.

Por fim, vale conferir como as impressões do mutante, Wikus Van De Merwe, se alteram ao longo da projeção. Seu etnocentrismo se abala ao se ver como uma criatura que ele desprezava, mas seu arraigado especismo o impede de tomar um posicionamento ético mais preciso. Evidentes as dificuldades de romper com o individualismo, sua preocupação é recuperar a forma humana, o “herói” do filme seria, em certo sentido, seu oposto, o alienígena Crhistopher, desejoso de libertar sua raça.

O caráter quase documental do filme funciona como uma muleta fornecendo as informações ao público, também confere um ar de urgência e perigo constante. Nada é previsível, pois intervenções militares em assentamentos de minorias são necessariamente conturbadas. Não há como não torcer pela derrota dos humanos que não fazem o menor esforço para integrar os ditos camarões, apesar de que as motivações desses últimos nunca ficam plenamente claras.

Um filme denso, que propõe uma série de reflexões, centrado na questão da dificuldade do homem em reconhecer o “outro”. Situação que se agrava por se passar na África do Sul, país que, por anos, defendeu o Apartheid. O desfecho do filme resolve os problemas levantados e convence, mas ele insiste em conceder apatia às massas de oprimidos, incapazes de uma mobilização política.

No término da narrativa, Wikus Van De Merwe não ampliou tanto assim seu aprendizado. Tal como os gorilas (humanos) e os camarões (aliens), ele se resigna a uma posição de espera. Nenhum aprendizado humanista é alcançado, a segregação parece provar sua eficácia, uma patologia política que os humanos ensinaram aos seus inconvenientes e indesejáveis hóspedes.

Cotação: Bom

17 de outubro de 2009

A Vida Secreta das Abelhas


A Vida Secreta das Abelhas (The Secret Life of Bees), 2008. EUA. De Gina Prince-Bythewood

A nossa relação com o cinema é engraçada. O que nos estimula a pensar sobre o cinema? Em que momento a crítica nasce? De onde vem a cinefilia? Há algum tempo que não escrevo, na verdade, minha ligação com a sétima diminuiu. Trabalho excessivo, incumbências e dissabores da vida cotidiana resultaram em idas rareadas ao cinema e, mesmo em casa, a disposição em assistir filmes se tornou menor.

Trabalhos consistentes, ou ao menos provocadores, como Watchmen, A Onda, Bastardos Inglórios e Adeus Solo não me motivaram ao exercício da escrita. Acho que ainda não era a hora do retorno ao “pensar o cinema”. Mas essa nulidade, The Secret Life of Bees, relembrou-me a importância de uma leitura do filme mais adensada.

Nada que mereça destaque nessa película: melodramas esquemáticos, aquelas histórias de teor feminista um tanto esquisitinhas. Mulheres (no geral negras) contra um mundo cruel e masculinizado, trata-se da busca de um lugar, onde as tessituras do segundo sexo possam se desenvolver em segredo.

O texto parece ter sido redigido por um estudante de psicanálise, os personagens apresentam uma estranha compulsão para a auto-análise. Buscam solucionar seus conflitos, sejam sociais, internos (da própria subjetividade) ou de relacionamentos por meio de insights inverossímeis, típicos diálogos que nunca vemos na vida real.

A obviedade dá o tom do filme, a começar pelo paralelo entre as abelhas, insetos laboriosos com comportamentos que nem os próprios apicultores entendem, e as irmãs Boatwright, negras trabalhadoras e instruídas, proprietárias de uma indústria caseira de mel na machista sociedade sulista. Pobres abelhinhas contra um mundo adverso, mas resistentes, devotas da Maria Negra, uma imagem que apareceu miraculosamente para dar esperanças aos oprimidos e às oprimidas (ênfase nessas últimas, por favor), além de ser o logotipo da fábrica.

No mais, tudo transcorre sem grandes surpresas, cada personagem tem uma função, a abelha rainha, August Boatwright (interpretada por Queen Latifah), June, uma orgulhosa zangão e a tolinha May, nas vezes de uma mera abelha operária. Destaque para a atriz Dakota Fanning, que interpreta a adolescente de 14 anos Lily Owens, uma jovem moça iniciada na milenar arte de “como os homens brancos são maus”.

É o cinema unidimensional, sem qual qualquer profundidade, com certa propensão para o dramazinho barato. Cinema feito para um nicho muito específico, fala-se do feminino, mais não da feminilidade, as próprias mulheres se definem em função do homem – odiá-los ou amá-los? E, se amá-los, como não ser desonradas por algo tão bruto e incompreensível? Para June, a grande vitória da sua trajetória foi romper com sua masculinidade, aceitando seu lugar de mulher no mundo – o que no caso significou um casamento... contradições Simone de Beauvoir, contradições...

Questões de gênero fazem mais sentido para aquele pensamento binário americano, mas no caso dos brasileiros, híbridos a todo instante, A Vida Secreta das Abelhas é enjoativo demais. Não digo “água com açúcar”, acho que “água com mel” seria uma definição mais apropriada.

E o blog retorna.

Cotação: Fraco