segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Restrospectiva 2024 - filmes assistidos

Com possíveis omissões e muitas redundâncias (os curtas enchem a lista) esses foram os filmes que eu assisti em 2024. Foi um ano de retorno à cinefilia. Espero explorar, em 2025, uma gama mais variada, inclusive o cinema brasileiro.

Total de filmes assistidos: 80.

Filmes vistos em 2024:

  • O Auto da Compadecida 2. De Guel Arraes e Flávia Lacerda, 2024.
  • Longlegs: vínculo mortal. Longlegs. De Oz Perkins, 2024.
  • Cuckoo. De Tilman Singer, 2024.
  • A armadilhaTrap. De M. Night Shyamalan, 2024.
  • Abigail. De Tyler Gillett e Matt Bettinelli-Olpin, 2024.
  • Desespero Profundo. No Way Up. De Claudio Fäh, 2024.
  • O dublê. The fallguy. De David Leitch, 2024.
  • Megatubarão 2. Meg 2: The Trench. De Ben Wheatley, 2023.
  • Jackpot: Loteria Mortal! Jackpot. De Camila José Donoso, 2023.
  • O jogo do elevador. Elevator game. De Rebekah McKendry, 2023.
  • Fale Comigo. Talk To Me. De Danny e Michael Philippou, 2023.
  • A Morte do Demônio: A Ascensão. Evil Dead Rise. De Lee Cronin, 2023.
  • A Avó. La Abuela. De Paco Plaza, 2023.
  • Os Vourdalak. Le Vourdalak. De Adrien Beau, 2023.
  • Tartarugas Ninjas: Caos MutanteTeenage Mutant Ninja Turtles: Mutant Mayhem. De Jeff Rowe, 2023.
  • O homem dos Sonhos. Dream Scenario. De Kristoffer Borgli, 2023.
  • O mal que nos habita. Cuando acecha la maldad. De Demián Rugna, 2023.
  • O Protetor 3. The Equalizer 3. De Antoine Fuqua, 2023.
  • Não fale o mal. Speak no Evil. De Christian Tafdrup, 2022.
  • Na mente de um assassino em série. A Wounded Fawn. DeTravis Stevens, 2022.
  • O Chamado 4: Samara Ressurge. Sadako DX. De Hisashi Kimura, 2022.
  • Um Lugar SecretoJohn and the Hole. De Pascual Sisto, 2021.
  • Willy's Wonderland. De Kevin Lewis, 2021.
  • Retorno da Lenda. Old Henry. De Potsy Ponciroli, 2021.
  • Aloners. Honja Saneun Saramdeul. De Hong Sung-eun, 2021.
  • Benedetta. De Paul Verhoeven, 2021.
  • O Lobo de Snow Hollow. The Wolf of Snow HollowDe Jim Cummings, 2020.
  • 1BR – O apartamento. 1BR. De David Marmor, 2019.
  • Pequenos monstrosLittle monsters. De Abe Forsythe, 2019.
  • Limbo: Entre o céu e o inferno. Limbo. De Mark Young, 2019.
  • Hellraiser: Judgment. De Gary J. Tunnicliffe, 2018.
  • A freira. The Num. De Corin Hard, 2018.
  • VHS Viral. VHS Viral. De Justin Brooks, 2014.
  • Cadáver. The Possession of Hannah Grace. De Diederik Van Rooijen, 2018.
  • O Protetor 2. The Equalizer 2. De Antoine Fuqua, 2018.
  • Shin Gojira. Shin Gojira. De Hideaki Anno, 2016.
  • O chamado vs. o grito. Sadako vs. Kayako. De Kōji Shiraishi, 2016.
  • O Regresso. The Renevant. De Alejandro Gonzáles Iñárritu, 2015.
  • Garota sombria que anda a noite. A Girl Walks Home Alone at Night. De Ana Lily Amirpour, 2014.
  • O Protetor. The Equalizer. De Antoine Fuqua, 2014.
  • Jogos de Apocalipse. After the Dark. De John Huddls, 2013.
  • Senhorita Zumbi. Miss Zombie. De Yoshiki Kumazawa e Satake Kazumi, 2013.
  • 30 dias de noite. 30 Days of Night. De David Slade, 2007.
  • Madrugada dos Mortos. Dawn of the Dead. De Zack Snyder, 2004.
  • O Monge à Prova de Balas. The Bulletproof Monk. De Paul Hunter, 2003.
  • O Albino Noi. Noi Albínói. De Dagur Kári, 2003. 
  • O Carteiro nas Montanhas. Nàshān nàrén nàgǒu. De Huo Jianqi, 1999.
  • Jurassic Park - O Parque dos Dinossauros. Jurassic Park. De Steven Spielberg, 1993.
  • Visions of ecstasy. De Nigel Wingrove, 1989.
  • A maldição dos Mortos-Vivos. The Serpent and the Rainbow. De Wes Craven, 1988.
  • Silverado. Silverado. De Lawrence Kasdan, 1985.
  • Cavaleiros de açoKnightriders. De George Romero, 1981.
  • Vestida para matar. Dressed to kill. De Brian de Palma, 1980.
  • Apocalypse Now: Final Cut. De Francis Ford Copolla, 1979.
  • Duelo de Gigantes. The Misouri Breaks.De Arthur Penn, 1976.
  • As Troianas. The Trojan Women. De Michael Cacoyannis, 1971.
  • Os palhaços. I clown. De Frederico Fellini, 1970.
  • O garoto Toshio. Shōnen. De Nagisa Oshima, 1969.
  • O Vale do Gwangi. The Valley of Gwangi. De Jim O'Connolly, 1969.
  • A negra de... La noire de... França-Senegal. De Ousmane Sembène, 1966.
  • Elegia da briga. Kenka erejii. De Seijun Suzuki, 1966.
  • Cléo das 5 às 7. Cléo de 5 à 7. De Agnès Varda, 1962.
  • Cavalgada Trágica. Comanche Station. De Budd Boetticher, 1960.
  • O homem do Oeste. Man of the West. De Anthony Mann, 1958.
  • O Fantasma de Mora Tau. Zombies of Mora Tau. De Edward L. Cahn, 1957. 
  • A 7ª Cavalaria. Seventh Cavalry. De Joseph H. Lewis, 1956.
  • Noites de circo. Sawdust and Tinsel. De Ingmar Bergman, 1953.
  • Luzes da Ribalta. Limelight. De Charles Chaplin, 1952.
  • O Padre Voador. The Flying Padre. De Stanley Kubrick, 1951.
  • O baile na casa Anjo. Anjo no Yakata. De Kōzaburō Yoshimura, 1947.
  • Vítimas da Tormenta. Sciuscià. De Vittorio De Sica, 1946.
  • O Proscrito. The Outlaw. De Howard Hughes, 1943.
  • A Haunting We Will Go. De Burt Gillet, 1939.
  • Popeye. Blow me down. De Dave Fleischer, 1933.
  • The Skeleton Dance. De Walt Disney, 1929.
  • Hell’s Bells. De Ub Iwerks, 1929.
  • The Haunted Dance. De Walt Disney, 1929.
  • O Homem que Ri. The Man Who Laughs. De Paul Leni, 1928.
  • A morte cansada. Der müde Tod. De Fritz Lang, 1921.
  • One Week. De Buster Keaton, 1920.

Megatubarão 2/Meg 2

Megatubarão 2. Meg 2: The Trench. De Ben Wheatley, 2023.

Filme com apelo comercial, a começar por contar com Jason Statham no elenco, o último dos moicanos dos filmes de ação. Megatubarão 2 é um híbrido: um pouco de catástrofe, um pouco de monstruosidade e umas doses exageradas de humor. Uma equipe de exploração desce até fossas subaquáticas nas quais ainda existem animais pré-históricos. Lá, sob intensa pressão da água (situação que o roteiro vai lembrar e esquecer conforme conveniência) os exploradores encontram uma estação de mineração clandestina.

As premissas que sustentam o filme dispensam maiores comentários, naturalmente. O plot descarta, também, a verossimilhança recuperando a despretensão criativa dos anos noventa. Naqueles tempos tudo era pretexto para dar ribalta ao mocinho com seus dotes físicos invejáveis e a sua perícia formidável. A narrativa, no entanto, custa a chegar a esse ponto, mostrando-se inicialmente muito mais séria do que necessário. A primeira parte é de claustrofobia com a tripulação dos submarinos presa entre tubarões pré-históricos e mineradores assassinos. Os ângulos de câmera fechados e a baixa iluminação sugerem situações de risco iminente, confirmadas pela morte de membros da equipe.

Durante boa parte do tempo, a Dona Morte parece pegar leve com o núcleo de personagens principal. Jonas Taylor, o herói interpretado por Statham, sua filha Meiying e seu cunhado Jiuming Zhang enfrentarão as criaturas marinhas, os criminosos e as traições internas no grupo. Meiying é uma jovem de 14 anos clandestinamente embarcada na  expedição, aumentando a sensação de urgência. Já o arrojado explorador Zhang, tio da menina, acredita ser possível “domesticar” os megatuberaões. Ele corre tantos riscos quanto Taylor. Durante os primeiros sessenta minutos, o filme segue essa toada colocando dilemas e riscos para os personagens. Na outra metade, porém, quando já estão na superfície o trilher levemente inspirado na ficção científica cede lugar à comédia de ação.

Planos abertos, micronarrativas com efeito cômico, fotografia limpa e bem iluminada destoam do primeiro arco, no qual a tensão estava presente. A própria necessidade de autossacrifício, inicialmente uma possibilidade, torna-se motiva de joça e piada entre os personagens. A segunda metade peca por introduzir desafios simultâneos, reduzindo a importância dos tubarões na trama. Ao emergirem à superfície eles arrastam consigo toda uma fauna aquática, incluindo um polvo gigante e alguns monstros que remetem às criaturas de Jurassic Park. Porém toda a tensão do arco anterior já está perdida.

Essa mudança no foco narrativo pode ser percebida, por exemplo, nas imagens idílias do resort para onde os monstros estão a se deslocar. As cenas das pessoas nadando, tomando drinks ou se apaixonando tem o efeito de preparar o espectador pela carnificina que se seguirá. Mas o efeito não é o de suspense e sim o de comicidade. De fato, como comédia de ação o filme funciona bem, mas para isso ele precisa deixar o drama e a tensão no fundo do mar.

A contraposição entre os defensores e os saqueadores da natureza mostra-se pífia, é um ponto do roteiro que só é citado sem qualquer desenvolvimento. Os exploradores mostram-se interessados em proteger a natureza, mas ao mesmo tempo mantém um megatubarão em cativeiro. E não fica claro porque a mineração naquela região seria ilegal, possivelmente por causa dos megas, mas isso é abordado de forma superficial. Esse parece ser o principal problema do filme: um excesso de temáticas e elementos, todos abordados de forma superficial. Isso resulta em sequências de ações dinâmicas, mas com pouco foco no que é relevante. Com os atos finais tal problema é intensificado. Os tubarões, sempre citados como as ameaças, ocupam um lugar pequeno, embora não desprezível, nos eventos.

O destaque reduzido dado aos tubarões vai de encontro às atuais produções de monstros. Filmes da já citada franquia Jurassic Park e de outros como Godzilla e King Kong, além do próprio subgênero dos megatubarões assassinos, sugerem que essa temática está em alta. No filme, os tubarões são o perigo de fundo, um background sem a consistência necessária para ocupar o plano principal. Com dificuldade em eleger “o inimigo” a narrativa alterna entre vários antagonistas até lembrar-se dos tubarões, mas nesse ponto tudo está fatalmente reduzido a um filme genérico de ação.

O filme é capaz de fornecer um momento pipoca para os apreciadores de filmes de monstros, mas está aquém de outras produções, inclusive com uma produção e um estrelato inferiores.

Cotação: ☕☕

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

O Fantasma de Mora Tau/Zombies of Mora Tau

O Fantasma de Mora TauZombies of Mora Tau. De Edward L. Cahn, 1957.

O filme se passa na África e enfoca o esforço de uma equipe de exploradores em recuperar um antigo tesouro subaquático guardado por zumbis. É um filme de horror comercial lançado pela Columbia Pictures com temática e estrutura de um “Filme B” dos anos 50. O Fantasma de Moura Tau é econômico na apresentação dos personagens e da trama. Ao retornar para a casa da avó, Jan tem notícias da incursão dos zumbis na região. Ao longo da trama envolve-se com os mergulhadores e se apaixona por um deles.

O Fantasma de Mora Tau nos ajuda a compreender como a figura do zumbi modificou-se ao longo dos anos. Até A Noite dos Mortos-Vivos de George Romero (1968) parece ter existido uma polissemia de significados acerca de tais criaturas. A forma de representar os zumbis em Mora Tau aproxima-se do “terror de catacumbas” revelando a influência das histórias e vampiro. Antes dos filmes de Romero, os zumbis eram pensados como ghouls, entidades espirituais ligadas a um corpo. Há diálogo com as narrativas de fantasmas e, em diferentes momentos, os personagens precisam entrar em um mausoléu a fim de salvar vítimas (mulheres) dos mortos-vivos. Embora os monstros tenham uma dimensão corpórea, eles também se comportam como fantasmas.

O enredo busca transpor o espectador para uma região desconhecida e misteriosa. No entanto, a cultura africana não é abordada. Há referências despropositadas ao vodu que, diga-se de passagem, não consiste em uma prática africana, mas caribenha. O argumento de uma enseada na “África exótica” é o argumento inicial da história revelando um olhar colonialista ao representar o “Velho Mundo” como uma região na qual coisas absurdas e inexplicáveis acontecem. A narrativa segue o ponto de vista dos colonizadores brancos sem contatos ou menções aos povos nativos. É uma África sem africanos e com a memória apenas dos expedicionários que por ali passaram em busca dos diamantes.

O núcleo dos personagens divide-se entre os moradores locais, a Senhora Peters e sua neta Jan e os exploradores, com destaque para o capitão Harrison, sua esposa Mona e Jeff, o mergulhador responsável por retirar as joias o mar. Os antagonistas são os antigos marinheiros perecidos nos intentos anteriores, como assombrações mostram-se implacáveis. Possuem, de fato, semelhanças com os mortos-vivos de White Zombie (1932). Não são seres maus, mas não podem ter o descanso enquanto a maldição não for quebrada.

A construção da narrativa é trivial, como uma ghost story as situações são previsíveis. O desfecho para a personagem Mona, por exemplo, era esperado, afinal, uma mulher de moral ambígua nos anos cinquenta não poderia ir muito longe. Ela compete com Jan pela atenção do mergulhador chegando a beijá-lo na frente de seu marido. Em um outro polo, representando a conduta da esposa ideal, está a viúva Senhora Peters. Desejosa de libertar o marido da malidção zumbi, ela é a única com clareza da situação.

A relação com os cenários é esquemática. Os acontecimentos desenrolam-se na casa da Senhora Peters, na floresta ou no barco. As cenas dentro do oceano (cenários) não são amadoras, mas exalam o terror comercial do estúdio Colúmbia Pictures. O cenário revela um olhar sobre a alteridade, ou seja, como o outro é visto na perspectiva do ocidental. No caso, o outro é a própria África, afinal das contas, onde estaria esse lugarzinho chamado Mora Tau? O que temos aí não é o umbral entre a vida e a morte, mas o eterno retorno à região do ignoto.

O ignoto pode ser entendido como a terra distante e misteriosa. Há inclusive um tipo de romantização identificada na fala de Jan ao perceber que as estradas locais continuam abandonadas. Parece ser um lugar parado do tempo em conexão com forças antigas. O fracasso dos europeus revela um ambiente inóspito ao homem branco e, mesmo assim, há o fascínio por um região longínqua, onde a sexualidade reprimida das personagens femininas encontra algum tipo de vasão.

Mesmo para um cinema de entretenimento de curto fôlego, a mise-en-scène deixa muito a desejar: há o barco naufragado, o cemitério dos colonos europeus e só. As selvas são bem comportadas, não há animais por lá. Ora vejam, um filme na África sem leões! Tudo é muito superficial, e talvez o maior atrativo seja o próprio título chamativo. Mora Tau desperta a curiosidade, a habitação do diferente, ambiente desconhecido e inexplorado e, por isso, desejado.

Essess zumbis são o típico monstro dos anos cinquenta na forma de assombrações cobertas de algas marinhas avistadas nas estruturas tumulares, na praia ou debaixo d’água. Apesar das limitações da produção, o esforço de compreensão crítica do filme ajuda a entender as distintas representações dos mortos-vivos no cinema. Nos filmes, por vezes são representados como criaturas cadavéricas em decomposição e interessadas em alimentarem-se dos vivos, mas também podem ser vistas como almas penadas. De qualquer forma são eficazes para revelar os desejos reprimidos externados somente em um mundo distante da civilização.

Cotação: ☕☕

Filme assistido em 23 de dezembro de 2024.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

O homem do Oeste/Man of the West

O homem do Oeste. Man of the West. De Anthony Mann, 1958.

O fim do ciclo do Western é complexo, relacionando-se às mudanças de época e à forma de conceber as narrativas cinematográficas. A passagem dos anos cinquenta para os sessenta significou a revisão de paradigmas até então dominantes. Ao mesmo tempo, a linguagem cinematográfica passou a questionar suas abordagens, adicionando novas camadas de conflito e subjetividade nos personagens.

Esse é o caso de O homem do Oeste, um dos últimos filmes de Gary Cooper acerca dos dilemas de um ex-criminoso, Link Jones, acidentalmente envolvido com o antigo bando devido a um malsucedido assalto a um trem. Mesmo abandonando sua vida de crime, Link vê-se confrontado pelos outrora parceiros, agora interessados em seu retorno ao grupo. Esquecido na linha do trem com uma cantora e um jogador de cartas durante o assalto, Jones precisa fingir seu retorno ao crime para naõ ser morto. O líder dos bandidos é seu tio cruel, violento e com sinais de demência.

Observa-se na narrativa vários símbolos de decadência: os bandidos são degradados morais; o personagem de Cooper enfrenta a corrupção de precisar recorrer à violência. Há uma tensão profunda no personagem, apesar do seu distanciamento da vida criminosa ele não está livre do passado. No western, muitos os mocinhos são potencialmente bandidos e há até aqueles que sofrem com isso.

Jones precisa defender a cantora Billie Ellis de ser violentada pelo grupo, mas desarmado fica à mercê dos. Há mesmo um componente de terror e suspense quando ele e os outros dois prisioneiros são confrontados pelo tio, o velho Dock Tobin. A fragilidade do personagem mostra-se essencial para a construção de um clima de desespero.  A ausência do revólver no coldre é o sinal da castração.

As cenas com enquadramentos fechados e baixa iluminação conduzem o homem adulto ao tempo em que era um agregado do bando sob a dominação do tio. Esse arco de impotência vai permanecer até sua vitória na briga com um dos integrantes devolvendo sua viralidade. De dia e em um ângulo aberto, o filme abandona o aspecto mais sombrio ao afiançar a capacidade de justiceiro de Link Jones.

Porém o quadro de incerteza não está superado, pois o grupelho de decadentes celibatários atiçados pela presença da cantora é o resquício do Oeste selvagem. Perigo e decadência andam lado a lado, conforme se verá no projeto de furtar o banco de uma cidade mineradora. Os bandidos, no entanto, descobrem que a localidade foi abandonada e se tornou um vilarejo fantasma. Nesse ambiente de profunda decadência, casebres malcuidados, carroças abandonadas, terra árida, Jones poderá acertar as contas com os antigos comparsas em seu novo papel da justiceiro.

O tio permanece no acampamento, isolado com a prisioneira, ampliando o clima de ameaça e decadência. Provavelmente violentada pelo velho, o herói recebe, assim, a “permissão” para matar o próprio tio. Um entrelaçamento de situações beirando aos desfechos trágicos, impedidos somente pela capacidade do protagonista fazer apenas a escolha pelo caminho correto.

O aspecto sombrio do filme antecipa as ambiguidades do western tardio. Os próprios criminosos recebem uma parcela de humanização e é com relutância que o herói os elimina. Jones precisa recuperar sua potência, isto é, sua ação. O seu acesso à jovem como parceira romântica está fechado por ele ser casado e com filhos. A violência serve como válvula de escape das tensões e parece ser a única forma de afeto em uma família criminosa. Este é o Oeste que precisa ser esquecido.

Um Gary Cooper envelhecido vai tirar de dentro de si a energia necessária para transformar-se, mais uma vez, em herói, devolvendo Billie ao mundo da lei e da ordem. Ambos partem do Oeste sentido o vazio, pois a experiência foi profunda e não há muito a se esperar do fim da jornada. Afinal Jones ainda pode ser imputado como criminoso e a jovem sabe que ao seu lado está o último dos heróis.

Cotação: ☕☕☕☕

domingo, 22 de dezembro de 2024

O baile na casa Anjo/Anjo no Yakata

O baile na casa Anjo. Anjo no Yakata. De Kozaburo Yoshimura, 1947.

Há o pecado de didatismo no filme, pois ele aborda temáticas candentes de uma maneira muito evidente e elementar. A família Anjo, nobres japoneses bastante europeizados, precisa lidar com a sua derrocada após o término da Segunda Guerra. Presos nos valores tradicionais, eles lamentam o novo mundo burguês que se anuncia.

A família Anjo, ciente de que vai perder a casa para um credor, um homem de negócios ressentido contra a nobreza, decide fazer um baile de despedida. No decorrer do festejo os não-ditos são explicitados, evidenciando a necessidade da nobreza abrir mão de seus valores aristocráticos para a autossobrevivência. Nesse contexto dois personagens merecem destaque: Tadahiko Anjo, o conde e patriarca relutante em fazer concessões, e Atsuko Anjo, a habilidosa e diplomática filha. O filme passa-se na casa do manso senhorial acompanhando os dramas familiares tais como o orgulho excessivo e os casos de amor com os empregados.

O filme é um importante registro das transformações socias vivenciadas pelo Japão. O diretor Kozaburo Yoshimura é conhecido por arcos dramáticos e comportamentais. Mas as metáforas em O baile na casa Anjo são muito óbvias. A armadura do samurai caída ao chão, as pérolas largadas sobre a praia e a etiqueta deslocada da aristocracia mimetizam os conflitos profundos enfrentados por aquele país tão orgulhoso, mas derrotado por uma jovem nação capitalista. Assim, o jovem chofer Kurakichi Toyama, capaz de comprar a mansão dos Anjo com o dinheiro fruto do seu trabalho, representa os próprios Estados Unidos da América.

A própria espacialidade da casa carrega várias camadas de tensão: o salão principal com sua decoração europeia, o quarto do filho do conde, como um lugar de conquistas amorosas, afora os espaços anexos, como a área dos empregados. A execução do baile é o momento no qual os conflitos até então latentes tomam o primeiro plano. Tensionando, inclusive, os personagens coadjuvantes, tanto aqueles que abraçam quanto os que se opõem às mudanças em curso.

Com alusões pouco sutis, mas em um período de desenvolvimento da linguagem cinematográfica, Anjo no Yakata consiste em uma porta de entrada para compreender o cinema nipônico.

Cotação: ☕☕☕☕

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Não fale o mal/Speak no Evil

Não fale o mal (Speak no Evil), 2022. De Christian Tafdrup.

Filme que aborda de forma brutal os convencionalismos do mundo moderno em meio a um processo de corrosão civilizacional. É possível considerarmos as contradições de uma Europa que teme a perda de seus pilares éticos e políticos por meio do brutalismo contemporâneo. No entanto, foram os países europeus que guiaram o mundo a uma destruição cultural em escala global, frisa-se bem.

Longe de tecer qualquer discurso de culpabilização é necessário apontar na narrativa a gestação de um senso de perigo para o ethos europeu. A história de uma família dinamarquesa “aprisionada” pelas regras de educação a permanecer na casa de uma outra família, esta holandesa, enquanto os indícios parecem sugerir a necessidade de ir embora imediatamente do luar. As boas maneiras perante os bárbaros, compreende-se, é arriscada!

Na versão americana de O homem que odiava mulheres (2011) havia uma reflexão sobre o risco de colocar o senso de civilidade acima da autopreservação, algo também visto em Jogos de violência, tanto na versão austríaca original (1997) quanto na americana (2007). Em Não fale o mal essa situação é ampliada em uma trama-metáfora acerca da violência contemporânea.

O filme também aciona o nosso senso de fobia social ao mostrar a excessiva tolerância e passividade para com desconhecidos. Abrir-se demais pode ser arriscado. Isso é explicitado no trágico desfecho, quando um subtexto referente ao multiculturalismo emerge e é escancarado no primeiro plano. Há um personagem secundário de nome Muhajid que fantasmagoriza o islã como algo que já está do “lado de dentro”. A narrativa também incorpora elementos sobre mutilação e silenciamento dos mais frágeis podendo ser interpretado como uma crítica à boa vontade para com a alteridade – leia-se o fundamentalismo islâmico.

Mostrando a impotência do bom senso, da razão e da educação perante a loucura e a maldade o filme atira o espectador ao senso do vazio. Há um mundo pedregoso, arenoso, estéril disposto a extinguir a vida e a drenar a beleza da civilização. Os europeus parecem temer os bárbaros do Terceiro Mundo.

Nós deveríamos, em nosso turno, recear o próprio monstro fascista que eles trazem dentro de si. E escrevo isso porque é preciso falar o nome do mal.

Cotação: ☕☕☕