sábado, 24 de agosto de 2024

Knightriders/Cavaleiros de Aço

Cavaleiros de Aço (Knightriders), 1981. De George Romero.

George Romero, conhecido por seus filmes de zumbis, nos entrega uma pérola em forma de um filme sobre um grupo de motoqueiros itinerantes que vivem segundo os códigos da cavalaria medieval. Uma apreciação positiva da contracultura aliada à denúncia da conspurcação provocada pela sociedade de massas.

Os motoqueiros precisam seguir Billy, o rei, até que este seja derrotado em uma peleja, mas essa não é uma tarefa fácil, porque além dele ser habilidoso existe o séquito de cavaleiros com a função de defende-lo. Os combates são organizados conforme as justas medievais, eles constroem armaduras e armas e tentam se derrubar para delírio do público provinciano.

Ao chegarem nas cidadezinhas americanas os cavaleiros se tornam a sensação local atraindo tanto entusiastas quanto opositores. Com uma arrecadação espontânea conseguem os recursos para continuar as suas atividades, ou seja, trata-se de um estilo de vida até certo ponto anticapitalista. Mas no interior do grupo dissensos aparecem, uma ala passa a questionar o idealismo do rei propondo uma abordagem mais comercial e com maior publicidade.

[Escapismo ou Idealismo?]

O estilo de filmagem de George Romero valoriza ângulos diferentes sobre as motos, optando por manter uma certa distância, reforçando a perspectiva do espectador com o contraste antigo-novo. O mundo moderno aparece ser um elemento intrusivo na história, pois os cavaleiros motociclistas optam por desafiar o consumismo. As comunidades visitadas pela trupe demonstram pobreza espiritual; caipiras conservadores presos à miséria cotidiana.

A banalidade da sociedade norte-americana destoa dos propósitos elevados do grupo, no entanto não há um consenso sobre o que significa ser um cavaleiro nos dias de hoje. Nesse sentido, o filme dialoga com o ultrarromantismo a partir do escapismo de Billy. Interpretado pelo jovem Ed Harris, o rei dos motoqueiros busca um tipo de transcendência ao qual os seus companheiros não conseguem atingir. Sua melancolia, no entanto, enfatiza a resolução do coletivo em ressignificar a vida moderna de forma alternativa.

A disposição ao sacrifício e ao martírio entregam um personagem depressivo, mas apaixonado por uma causa até certo ponto intangível. Nesse sentido parece ser uma despedida dos últimos lampejos da rebeldia não cooptada. A recusa radical em fazer qualquer tipo de concessão é o ponto de inflexão que coloca não só Billy, mas todo o grupo, em crise existencial.

Quase um filme-manifesto Romero parece mostrar, mais uma vez, a existência dos mortos-vivos. Agora não se trata de monstros decompostos e sim da mediocridade suburbana demarcada no excesso de álcool e fast-food, além da violência doméstica e da religiosidade opressiva. Compartilhando temas comuns com o famoso Easy Rider (1969), Knightriders também aposta nas motos como vetor de fuga dos insubmissos e contestadores rumo à autenticidade da vasta América.

Cotação: 

sábado, 17 de agosto de 2024

The Outlaw/O Proscrito

O Proscrito (The Outlaw), 1943. De Howard Hughes.

Dando continuidade a minha imersão no Western chego a esse “clássico maldito”. Uma história, diríamos hoje, de bromancers, tratando-se apenas da velha e genuína sociedade machista dos cowboys. A história se passa no Oeste bravio com as figuras históricas do xerife Pat Garret e dos foras da lei Doc Hollyday e Billy the Kid em uma perseguição um tanto quanto desconexa.

Doc e Billy integram um triângulo amoroso com Rio (interpretada por Jane Russell), embora o pivô da rivalidade entre eles seja a propriedade do cavalo Red. A valorização do animal em detrimento da bela moça (mencionada como uma “mestiça”) constitui-se em um dos elementos cômicos, pois não é ela a causa da contenda.

Trata-se de um universo no qual a sociabilidade masculina prevalece, mesmo com amizade e inimizade andando juntas. Cabe ao feminino a cozinha, o cuidado e o sexo. Rio revela uma das representações femininas recorrentes na história do cinema: bela, voluvél, imprevisível e insensat, capaz de declarar o amor verdadeiro momentos após a flagrante traição. O cavalo, por sua vez, é sempre leal gerando por isso disputas acirradas.

Rio, relegada várias vezes, vinga-se de seus amantes entregando-lhes ao xerife. Há excesso de reviravoltas que prejudica o desenvolvimento da narrativa. O aparecimento dos nativos Mescaleros, por exemplo, acontece somente para abrir o arco final, uma situação reputada como grave para ser descartada logo em seguida.

[O marketing do filme girou em torno dos atributos físicos de Jane russel].

As atuações e os diálogos são típicos desse cinema teatralizado onde não há intenção de naturalidade. Estamos falando da década de 1940 com dramatização trabalhada por meio de frases de efeito e tiradas inteligentes. Assim, o desempenho de Jane Russel é eficaz sobretudo pela contenção. O filme, no fim das contas, tem sua elegância nos enquadramentos e nas alocações dos cenários externos e internos. A câmera, também, mostra-se atenta para acompanhar os rápidos sacar de armas dos atiradores.

O foco da narrativa desloca-se da ação para os conflitos do grupo destacando mais os aspectos psicológicos do que o bang-bang convencional. A tensão (quase sexual, diriam os amigos da Queer Theory) entre Doc e Billy ancora o conjunto da obra. De fato, em verdade, em verdade, dá para ficar em dúvida se Doc e Billy querem se matar ou se beijar. Já Garret age como um marido traído, não perdoando Doc ter se voltado contra ele. O desfecho alimenta a lenda de Billy the Kid, mas diminui a dos outros dois, sobretudo Garret. O filme, afinal, é uma história de parcerias entre homens, armas e cavalos.

A fraternidade é masculina, mas o amor, puro e platônico, equino.

Cotação: 

Assistido em 16/08/2024.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

John and the Hole/Um Lugar Secreto

Um Lugar Secreto (John and the Hole), 2021. De Pascual Sisto

Para que eu não me acuse de ser um diletante que fica apreciando filmes de bang-bang dos anos 50 propus-me a ver essa picaretagem sugerida pelo algoritmo de um serviço de streaming.

O olhar a partir do interior de um buraco em direção à superfície, um contra-plongé, pode fazer correspondência com o filme O chamado (2002): a visão da garota Samara atirada pela própria mãe para morrer em um poço. O quebra-luz formado pela tampa do poço gera a ilusão de um anel, daí o título original do filme (The Ring).

Em John and the Hole a perspectiva inferior não encontra um círculo, mas um quadrado. A estrutura do bunker, quatro paredes lisas de concreto escondidas em um bosque, é a prisão da família do garoto John. Esse literal enquadramento parece ser uma metáfora perfeita para o filme – filme que não entrega absolutamente nada, apenas um quadrado vazio...

Depressivo, angustiado e com mais algumas psicopatias a serem arroladas pelos profissionais competentes, John decide escapar da dura vida do 1% atirando papai, mamãe e irmãzinha em um bunker parcialmente construído. Mas acho que ninguém pode reclamar, pelo menos não é um poço e nem há por ali fantasmas de garotas japonesas.

O que há é um excesso de metáforas ruins: a família desagregada e disfuncional, os desejos de morte e autodestruição, as mágoas e os ressentimentos presentificados na lama que passa a cobrir os rostos e as roupas dos prisioneiros. Enquanto a família permance no bunker sem entender as reais motivações de John, este tenta parar o tempo, recusando o amadurecimento e a compreensão dos seus sentimentos, sobretudo a sensação de abandono da figura paterna.

Precisando contar com uma alta dose de suspensão da descrença para funcionar, o filme abusa da boa vontade do espectador ao apresentar um caçula franzino e inapto social, mas com habilidades o suficiente para aprisionar os pais e a irmã mais velha. Tudo isso em um universo no qual a polícia não parece se preocupar com o desaparecimento de gente rica.

As conexões entre narrativa e metáfora me fizeram lembrar do filme Calmaria (2019), porém este é mais ousado ao romper com o realismo em proveito de uma alegoria completa da deterioração familiar. Como um trilher intimista John and the Hole fica no banal, embora tente parecer complexo ao inserir uma micronarrativa aparentemente deslocada de uma menininha a fim de explicitar ainda mais as crises internas do John.

Para um suspense com nuanças de terror o filme fracassa, pois John, embora imprevisível, não é propriamente uma figura ameaçadora. Outro filme que pode ser lembrado é o O Buraco (2001) de Nick Hamm, este também se passa em um bunker, porém com desdobramentos bem mais perturbadores. Isso sem falar do satisfatório O Quarto do Pânico (2002) de David Fincher.

E vejam só! Estou identificando uma ramificação do subgênero “home invasion”, eis o “bunker inavsion”. É um medo legítimo, afinal, qualquer um pode ficar preso em seu próprio bunker.

Cotação

Assistido em 14/08/2024

domingo, 11 de agosto de 2024

The Misouri Breaks (Duelo de Gigantes)

Duelo de Gigantes (The Misouri Breaks), 1976. De Arthur Penn.

The Misouri Breaks dialoga com as transformações socioculturais dos anos sessenta e setenta, bem como a influência do movimento cinematográfico conhecido como Nova Hollywood. O filme é estruturado em torno do gênero Western, a morada do cinema americano, com muitas desconstruções de foco narrativo e de protagonismo.

O filme tende a assumir a perspectiva dos bandidos destacando os laços entre eles. São uma guilda fraterna, amigos que se preocupam uns com os outros. Contra eles está o mundo dos poderosos utililzando-se o discurso da lei e da ordem para cometer suas próprias injustiças. Os grandes proprietários agem hipocritamente; condenando nos atuais bandidos o que eles próprios fizeram no passado.

No filme, o bando liderado por Tom Logan (interpretado por Jack Nicholson) é um grupo marginal dedicado ao roubo de cavalos, mas atraem a antipatia de um proprietário que contrata um temido justiceiro chamado Robert Lee Clayton (Marlon Brando) para matá-los. A tensão construída entre o chefe dos bandidos e o caçador de criminosos dimensiona a narrativa. Não é possível afirmar com certeza onde encontra-se a regra da moralidade, pois Logan e Clayton são disruptivos. A presença deles assegura a impossibilidade de delimitar no Oeste selvagem a seperação entre a civilização e a barbárie.

O personagem de Nicholson é um cafajeste, embora tente ser agradável sua conduta charmosa não esconde a violência. Já Brando entrega um personagem extremamente afetado, um justiceiro que alterna entre o bufão e o assassino frio. Seu personagem poderia ser uma das típicas personas de Klaus Kinski: o janotismo, a privação física-corporal, a violência estetizada e o alheamento ao perigo revelam a paradoxal combinação entre leste e oeste.

O embate entre os dois custa chegar as vias de fato. Lee Clayton mostra-se um sádico com sensibilidade de artista; ele faz questão de mostrar sua “genialidade”, Logan mostra-se dividido e seduzido pela possibilidade de se tornar um simples fazendeiro. Além disso ele se envolve com a filha do fazendeiro que encomendou sua morte, acrescentando novos problemas ao plot.

O filme se passa na região de Montana, nas proximidades do rio Misouri trazendo um visual mais frio que árido. Embora a exploração econômica da região não seja o foco, fica evidente as dificuldades de colonização. O roubo de gado é um dos muitos expedientes empregados pelos foras da lei para sobreviverem. Isso não muda muito em relação ao passado, quando os primeiros colonos massacraram os nativos.

As sequências de comédia física utilizam gags para adocicar a visão do público com os fora-da-lei. O humor suaviza a violência (ainda que ela esteja presente durante todo o filme) recuperando o lado mais anárquico da contracultura. Isso pode ser observado em vários momentos; a inabilidade dos criminosos em roubarem um trem ou cavalos da polícia montada canadense acrescenta puerilidade até certo ponto incompatível com o sisudo lado Western do filme. A liberalidade sexual da personagem Jane Braxton também vai nesse sentido, isto é, são os novos valores que emergem.

Heterodoxo o bastante para desagradar os fãs do gênero, The Misouri Breaks tematiza a corrupção e a lealdade, mas sem os mocinhos costumeiros. Cabe ao anti-herói expor as hipocrisias vigentes do capitalismo em ascensão e denunciar a punição dos pequenos em proveito dos grandes parasitas.

Cotação: ☕☕☕☕

Filme assistido em 11 de agosto de 2024.

sábado, 3 de agosto de 2024

Comanche Station (Cavalgada Trágica)

Cavalgada Trágica (Comanche Station), 1960. De Budd Boetticher.

Eis o cinema clássico com colheradas de inquietações autorreflexivas. Personagens questionando-se quanto ao sentido da existência no Velho Oeste com os vilões relutando em serem vilanescos.

Cody (interpretado pelo veterano Randolph Scott) vive uma busca infrutífera na região dos Comanche atrás de sua esposa raptada dez anos atrás. Em uma dessas andanças resgata uma mulher branca recém-sequestrada, a Sra. Lowe, iniciando o retorno rumo à civilização. Um plot bem simples, mas carregado de camadas e nuances. Os Comanches são antagonistas, mas simplesmente reagindo a ataques recentes.

Cody cruza com um antigo desafeto, Lane, que decide acompanha-lo no intuito de receber a recompensa pelo resgate da moça. Lane e seus dois pistoleiros são personagens ambíguos, indivíduos cinzentos; não podem ser equiparados facilmente aos malvadões do Western. Embora terminem por assumir a posição de vilões, encontram-se abertos a reconsiderações. Advinham, inclusive, seus próprios destinos: em um dado momento Cody pergunta a um dos jovens criminosos se ele estaria ciente de seu possível enforcamento ao que o aprendiz de facínora responde “sim”.

No Oeste não há como fugir dos papeis impostos; o solitário está fadado à solidão; e não obstante o seu respeito aos indígenas não lhe cabe outro destino se não matá-los. Os Comanches, por sua vez, são uma força quase natural. Nos limites do Novo México encontram-se reduzidos a uma provação adicional ao herói. A própria Senhora Nancy Lowe, possivelmente violentada pelos indígenas, regressa com uma sensação de impureza, externando o lugar ocupado pela mulher nesse universo masculinizado.

Mas há inflexões geradas pelos ventos das mudanças. Trata-se de uma das muitas remissões do gênero relacionada ao contexto sociocultural dos anos sessenta nos Estados Unidos. O desfecho, com Cody se voltando para o território selvagem, dialoga com a caminhada de John Wayne no filme Rastros de ódio de 1956. Neste último, o plano de fundo exibido são as formações rochosas do Monument Valley ao passo que em Comanche Station são as belíssimas paisagens de Alabama Hills.

Os dois filmes abordam o resgate de brancas abduzidas por Comanches. Ambos reforçam a moral do homem branco em seu dever civilizacional, mas denunciando a destruição das culturas nativas. Tal revisionismo do gênero – miticamente considerado o fim do Western – seria radicalizado anos mais tarde com um outro filme (talvez o mais potente de todos): Once Upon a Time in the West de Sérgio Leone. Ferrovia e telégrafo finalmente ligam leste e oeste atravessando planícies outrora dominadas pelos nativos-americanos. E uma vez concluída a missão civilizatória, pistoleiro e ranger tornam-se obsoletos e desnecessários. Comanche Station prevê tal situação e dita a possibilidade do “bang-bang” se intelectualizar por meio da autorreflexão.

Cotação: ☕☕☕☕

[Alabama Hills, região muito utilizada nas locações de filmes, aparece em Comanche Station].

[Monument Valley, regitão também utilizada nas locações cinematográficas, aparece em The Searches e Once Upon a Time in the West].