quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Quem bate à minha porta?

Quem bate à minha porta? (Who’s that knocking at my door), 1968. De Martin Scorsese.

Em vários sentidos Quem bate à minha porta? é datado. É quase uma monografia de fim de curso, quando o Jovem Martin Scorsese terminava sua graduação em Cinema pela Universidade de Nova Iorque. Esse filme usa e abusa da maioria dos recursos da linguagem cinematográfica. O plongée, o traveling, o primeiríssimo plano, a montagem paralela, o efeito slow, enfim, o cineasta parece aplicar todas as técnicas aprendidas na faculdade.

Não que isso seja um desmerecimento, pelo contrário, ainda que a narrativa seja embaçada pelo excesso de intervenções, o resultado final é bem inteligível ao telespectador. Fica evidente a presença do cinema experimental; a própria repetição de cenas (influência do cinema francês, com a Nouvelle Vague) é um exemplo.

Outro ponto de destaque são os diálogos, que se aproximam da linguagem banal do cotidiano, dando um certo frescor ao roteiro. Quando Keithel conversa com Zina Bethune sobre John Wayne, é quase um prelúdio do diálogo entre Christian Slater e Patrícia Arquette sobre Elvis Presley em Amor à queima-roupa. A propósito, os diálogos característicos de Quentin Tarantino são uma influência de Martin Scorcese.

A trilha sonora, por sua vez, fornece uma sincronia e uma unidade para as cenas, assumindo, às vezes, a velocidade de planos-relâmpagos. Aquelas músicas – que hoje diríamos: típica – dos anos sessenta constroem uma atmosfera que beira a psicodelia. A seqüência de sexo protagonizada pelo jovem Harvey Keitel expressa o olhar poético do diretor, que conjugou eficientemente som e imagem.

Outro ponto importante (que é um recorrente na filmografia de Scorsese) é desconstrução do cinema clássico. Não aquelas ousadias pueris de jovens videomakers, mas sim um diálogo inteligente com a “Era de Ouro” hollywoodiana. Rastros de ódio e O homem que matou o facínora – ambos de John Ford – são citados. O que é muito apropriado para um filme que fala sobre jovens pobres e desempregados que insistem em manter um código de conduta machista em plena década de revolução sexual.

O cineasta expressa a distância entre uma era mítica (de inocência perdida) e a realidade das ruas em toda sua crueldade. Keitel, interpretando J.R., é o primeiro personagem do diretor a ser dividido entre os valores religiosos e mundanos.

É um tolo rapaz, que dorme com prostitutas (ainda que contra sua vontade), mas repudia uma moça que foi estuprada. Aqui é o nascimento do personagem scorsesiano por excelência, invariavelmente contraditório e confuso.

Cotação: Bom

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Os Simpsons - o filme

Os Simpsons – o filme (The Simpsons movie), 2007. De David Silverman

Há muito pouco para falar sobre esse longa, salvo que você dificilmente sairá aborrecido do cinema. O roteiro é bem elaborado, as piadas são oportunas, as referências às “celebridades” são válidas e as críticas ao governo norte-americano bem-vindas.

Porém, esse filme não consegue se caracterizar como uma narrativa cinematográfica. Trata-se de um episódio da televisão, ampliado para a telona e um pouco mais caprichado. Homer Simpson parece ter pego o espírito da coisa, no começo da história, ele e sua família estão no cinema assistindo ao longa do Comichão e Coçadinha, quando ele comenta que não faz sentido pagar por uma coisa que se pode ver de graça.

Talvez. Mas a verdade é que Os Simpsons – o filme é uma historinha muito divertida. O enredo retoma as primeiras temporadas, quando as peripécias eram o forte da série; que, a propósito, é muito mais interessante do que o humor negro e a iconoclastia gratuita que prevaleceram nos últimos episódios.

Contudo, não deixa de ser um despropósito esperar que um projeto para a televisão funcione como cinema. As complexidades inerentes a Sétima Arte, praticamente impedem que um produto anódino como esse tenha alguma expressão mais destacada.

Se nos ativermos em animações como A bela e a fera (1991), O Castelo Animado (2004) e mesmo Shrek (2001) veremos que são essas as produções que se aproximam de uma narrativa fílmica. Não só quanto ao roteiro, mas a própria direção revela uma seriedade maior – a intenção de criar uma composição, uma obra detalhada e menos caricatural. Não que a questão seja desmerecer Os Simpsons, pois a sua proposta foi clara desde o início: fazer um episódio final para encerrar um dos seriados de maior longevidade da televisão americana.

Uma vez aceito esses pressupostos, o trabalho para o crítico e o espectador fica fácil. Aos que sempre apreciaram as aventuras de Bart e companhia é mais do que aconselhável que vejam esse episódio final. Mas, para quem nunca foi fã desses personagens amarelos, o conselho de Homer prevalece: “por que pagar por algo que se pode ver de graça?”

Cotação: Fraco

A máquina

A Máquina: o amor é o combustível, 2006. De João Falcão

É um filme polêmico, desenvolvido com maestria. Narra sobre uma cidade imaginária e seus singulares habitantes. Apesar de ser específica e localista, a história alcança, brilhantemente, o universal. O filme a que me refiro é Dogville e seu diretor é Lars Von Trier.

Mas, muito distante desse exemplar cinematográfico temos A Máquina, dirigido por nosso amigo Jonhy Falcon. É um dos filmes mais constrangedores que eu já vi nos últimos tempos e mereceria toda a galeria de Troféus Framboesas, se essa premiação se dignasse a distinguir as nulidades do anonimato semi-amadorístico.

O filme narra a história de Antônio (Gustavo Falcão), que decide colocar sua vida em cheque para chamar a atenção do mundo para a pequena cidade de Nordestina, tentando, dessa forma, arrebatar o amor da linda (?) Karina (Mariana Ximenes). Ao final, ele consegue atrair o interesse da mídia internacional, mas o preço é sua própria martirização, no tempo e no espaço.

Nordestina? Ai. Só pelo nome da town já fica patente o interesse em atingir a “essência” do nordeste... E, diga-se de passagem, essa é uma estratégia que nunca funciona. Na maior parte da trama, as falas e os trejeitos dos personagens revelam – não o cerne do nordeste – mas sim uma visão estereotipada; o olhar do litorâneo sobre o que, supostamente, seria o sertão.

O filme é uma falha completa, começando pelo argumento e o desenvolvimento afetado do roteiro. O que resultou, ao final, em uma direção excessivamente teatralizada, que não soube peneirar as interpretações exageradas dos atores.

Gustavo Falcão resvala na canastrice – enrolando-se para pronunciar aquelas falas mal escritas, redundantes e pretensiosas. Alguém deveria ter lhe avisado que ele não é Matheus Nachtergaele e que o personagem em questão não era o João Grilo. Mas justiça seja feita, nada pode superar o papelão (digo, papel) interpretado por Ximenes. O momento em que ela é introduzida na história, cantando uma musiquinha songa-monga em uma bicicleta, pode ser considerado como um dos mais tristes momentos do cinema brasileiro.

A comparação inicial com Dogville não foi gratuita, pois alguns planos gerais de Nordestina, sobretudo quando a vemos em visão aérea ou em plongée, é possível uma associação com a cidade título do filme de Lar Von Trier: uma cenografia que remete a não arquitetura.

Porém, no caso de A Máquina, a desconstrução da paisagem cenográfica, enquanto um simulacro do real, opera por outro sentido que aquele da remoção das paredes. Aqui, se faz questão de assinalar os exageros do cenário e da iluminação (uma forma de atingir a essência). Nordestina não tem uma arquitetura real, a própria igreja (centro de toda cidade tradicional) não possui paredes, mas só a fachada com uma torre, que encobre e, ao mesmo tempo, revela o vazio do sertão. Contudo, quando Antônio parte para o “mundo”, as locações aparecem mais realistas (o mar é, de fato, o mar). O cenário sai da narrativa mítica e entre no tempo histórico real. Tal escolha implicou na quebra da homogeneidade espacial do filme, colocando dificuldades em um trabalho mais do que problemático.

No final, em uma coisa A Máquina acerta, ela consegue atingir a condição de alegoria e fábula. Pois esse filme é uma perfeita metáfora do cinema brasileiro (a Nordestina): incompleto, incoerente, imaturo, mas que quer ser descoberto pelo mundo, chamar a atenção daquela gente grande que, lá na terra da Estátua da Liberdade, faz cinema de verdade.

Grace (Nicole Kidman) disse que algumas cidades nunca deveriam existir. Se referia a Dogville, mas ainda bem que ela não conheceu Nordestina.

Cotação: Péssimo

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O Mensageiro Trapalhão

O Mensageiro Trapalhão (The Bellboy), 1960. De Jerry Lewis

Se fosse feito um remake de O Mensageiro Trapalhão, ninguém seria mais perfeito para o papel do que Rowan Atkinson. Sim, porque os trejeitos de Mr. Bean não deixam de remeter ao personagem Stanley, interpretado por Jerry Lewis. Na verdade o silêncio desses dois personagens – e a opção por um humor calcado em gags físicas – é um legado do próprio cinema mudo.

The Bellboy foi a primeira direção de Jerry Lewis, um trabalho despretensioso, mas com uma visão acertada do que é a comédia, dos diferentes recursos para produzir o humor. O diálogo com o cinema mudo está mais do que presente nesse trabalho, tanto que algumas referências são tão óbvias que é melhor deixar o prazer de destacá-las para o leitor.

Lewis cria uma série de quadros, divertidas situações, encabeçadas por um personagem atrapalhado, ingênuo e simpático. Um tipo de figura que é recorrente em certo modo de fazer comédia e sempre encontrou a empatia e o riso do telespectador – Roberto Gomes Bolaños, inserido em um contexto bem diferenciado, seria outro exemplo que nos é próximo.

Talvez, de todos os gêneros cinematográficos, seja a comédia a que tem maior facilidade de conviver com o absurdo. E Lewis (comediante nato) sabe disso muito mais do que nós: o non sense, o imprevisto e, por vezes, o previsível são ferramentas essenciais para convencer o público da hilaridade da piada.

Esse filme foi muito bem reinterpretado em Grande Hotel (Four Roons, 1995), dirigido por oito mãos – incluindo Quentin Tarantino e Robert Rodriguez– é uma homenagem e uma interação direta com O Mensageiro Trapalhão. O protagonista, interpretado por Tin Roth, também vive um “bellboy”, com trejeitos a la Jerry Lewis.

Em Grande Hotel, Tarantino – que além da direção tem uma ponta – diz que a figura de um mensageiro era um claro evocativo ao personagem Stanley. Como cinéfilo que ele é, estava evidenciando o papel de Lewis na construção e recuperação de um humor inteligente – entre o ingênuo e o provocativo – capaz de despertar uma simpatia e uma cumplicidade no telespectador.

Enfim, O Mensageiro Trapalhão é mais um dos exemplos de que os recursos do cinema clássico estão longe de serem datados e ultrapassados. A inteligência do roteiro (ou do anti-roteiro, como é o caso) explicita que a comédia é um grande gênero do cinema. A mediocridade dos exemplares contemporâneos só revela que a maneira antiga de se fazer humor foi perdida, em proveito de escatologias, piadas politicamente incorretas ou o mais puro e desclassificado besteirol.

A solução para Hollywood está na própria Hollywood. É só olhar para o passado e aprender com os mestres. E, no que toca a comédia, Jerry Lewis é um desses professores absolutos.

Cotação: Ótimo

Denominador comum: o medo nos extremos

O chamado (The Ring), 2002. De Gore Verbinski
Madrugada dos mortos (Dawn of the Dead), 2004. De Zack Snyder

Os meus imaginários leitores devem estar pensando no quanto eu estou desatualizado. Um filme de 2002 e outro de 2004. O que eu posso argumentar é que nesses últimos anos esses dois foram os melhores filmes de terror/horror e suspense que eu assisti.

Mas, são dois filmes completamente diferentes. O Chamado é suspense e terror. É a história sobre uma fita de vídeo que trará, em sete dias, a morte àquele que assisti-la. As vítimas só percebem o que ocorrem no momento em que se confrontam com, o até então, desconhecido. Nesse meio termo as pessoas recebem indícios, mas para a maior parte delas essas pistas são insuficientes para se salvarem.

O assustador desse filme é a solidão da morte e o absurdo da situação. O mundo continua o mesmo, mas a pessoa que viu o filme começa a ter contato com uma misteriosa garota chamada Samara. Em uma cena, vemos a personagem principal, protagonizada por Naomi Watts, debruçada em seu apartamento ela olha o prédio ao lado. Ela está assustada, mas as pessoas nas outras residências vivem normalmente, sem saber que sua vizinha receberá a sinistra visita da garotinha que nunca dorme. Assustador porque absurdo. É o medo da multidão, porque nela você é anônimo, portanto seu sofrimento passa despercebido.

Em Madrugada dos mortos a situação é inversa, o medo não é anônimo, é coletivo. O dia amanhece e algumas pessoas simplesmente se tornaram zumbis. A civilização desmorona, as pessoas correm para se salvar, uns matam os outros, acabou-se a família, os vizinhos. Mais assustador, acabou-se o Estado. As forças policiais nada mais podem fazer, os exércitos são inúteis. Escolas, ruas, igrejas, bairros, tudo abandonado. O que resta é se esconder dos canibais.

Um grupo de pessoas tenta sobreviver em um Shopping Center, sob a ameaça constante da invasão zumbi. Além desses náufragos da civilização nada mais vive (em sua conotação antiga). Esse é um filme de horror, mais do que medo, o que ele causa é desolação, não há mais conforto em lugar algum. O assustador do filme é justamente a coletividade do caos, todos compartilham do mesmo pânico. É o medo da multidão, porque nela você é visto por todos, portanto você é vulnerável, qualquer um pode te ferir.

O que nos assusta mais? Uma morte anônima em frente a sua televisão ou morrer junto com a civilização? O fantasma da garotinha te machuca individualmente, mas a horda de zumbis ataca todos ao seu redor. Pior, as vezes as pessoas que você mais ama se tornam um deles.

Dois extremos, mas uma certeza permanece, em ambas as situações o medo te consumirá. Morre-se o indivíduo ou morre-se o coletivo, mas o padecimento é só seu. Em um determinado momento qualquer preocupação com o outro desaparece, você pensa em salvar só sua própria vida. Não importa qual das duas situações, mas, a morte nos isola, nos arrebata na segurança ou na incerteza, da individualidade ou do coletivo.

Cotação:

Chamado: Bom
Madrugada dos Mortos: Ótimo