quinta-feira, 4 de julho de 2024

O Protetor


O Protetor (The Equalizer), 2014. De Antoine Fuqua

Tudo bem, eu reconheço elementos do traço autoral do diretor Antoine Fuqua: apreço pelos personagens ambíguos, ou seja, os sujeitos situados nos limiares da bondade e da maldade. Isso pode ser visto no infame Dia de treinamento (2001) ou n'Os Sete magníficos (2016).

Há, também, uma preferência por heróis, anti-heróis ou, ainda, anti-vilões (personagens cujos propósitos e métodos positivos resultam no mal). Uma visão acrítica da história recente dos Estados Unidos e a busca pelo paladino perfeito disposto a fazer o trabalho sujo necessário completam o pacote: cosmovisão pautada em um tipo mais sofisticado de maniqueísmo.

Particularmente não aprecio.

Mas em O Protetor a construção minimalista do personagem Robert McCall tem seu valor. Um indivíduo bondoso cujas memórias muscular e emocional clamam por situações violentas. Tentando se passar por um simples funcionário de uma loja de construção ele oferece uma ordem ao mundo caótico com conselhos clichês e violência, por vezes, desproporcional.

Coach de dia e Batman de noite. Olha que estávamos em 2014...

O diretor Fuqua gosta da violência visceral, dos conflitos nas ruas, das espreitas e dos regimes de autoridade que prevalecem em paralelo, as leis escritas e as das ruas. O personagem de Denzel Washington não se importa em aceita-las ou confrontá-las, mas sempre conforme a conveniência de sua situação.

Mas é uma construção muito interessante, os TOCs, o estado de constante espera, o método de autoaperfeiçoamento – Robert McCall é uma arma aguardando a ocasião perfeita para ser colocado em ação. Antes de liberar todo seu potencial de justiceiro (ultrapassando sua atuação mais contida de vigilante) McCall necessita do aval do mundo da lei, de um representante do governo ainda que de forma oficiosa.

[A obsessão em orientar e proteger as prostitutas: quase um vício dos vigilantes noturnos. Está tudo certo, eles também são voyeurs.]

Nesse sentido, trata-se de um personagem extremamente conservador. Uma moralidade hipócrita assemelhada às figuras do Juiz Dredd da Marvel e do Morcego da DC. A referência ao universo dos quadrinhos não é despropositada pois o quadrinhesco faz parte da composição de O Protetor.

Um ótimo personagem em um universo ficcional cínico, calculista e violento. Mas mesmo com esse conjunto, ou talvez por isso mesmo, a trama se desenvolve de forma infantil naturalizando expedientes quase mágicos, dependentes de um frágil senso de realismo .

O filme poderia ser mais maduro, exaurindo a ontologia do protagonista e a compreensão de suas ações. Sua vinculação é de fato com a justiça ou com a nostalgia por uma suposta ordem social do passado mítico fundamentada na violência dos bons? Os cowboys solitários não existem já faz muito tempo.

Mas aí eu estou saindo do lugar do resenhista e entrando no restrito patamar do roteirista e argumentista.

Não dá para ser juiz e executor ao mesmo tempo. Disso, até eu mesmo sei.

Cotação: 

sábado, 29 de junho de 2024

Desespero Profundo

Desespero Profundo
(No Way Up), 2024. De Claudio Fäh

Uma ideia interessante na cabeça (de vento).

Vamos fazer um filme claustrofóbico? Mas tem que ser desastre! Um avião em queda! Um avião em queda submergido na água! Sobreviventes dentro de uma bolha de ar no avião precariamente equilibrado no precipício subaquático! Aos poucos o avião se afunda rumo ao abissal profundo. Acho que está inviável o suficiente para que alguém escape com vida, mas que tal se colocarmos tubarões famintos invadindo o avião?

Hey! Not Snakes! But Sharks on the plane!

Um pouco de catástrofe, um pouco de suspense. Convenhamos, o filme certamente é um desastre aéreo. Várias leis da física e do senso comum quebradas. Suspenda a descrença e talvez você possa se divertir com história de um avião dentro d’água e a consequente e enfadonha luta rumo à superfície do autoconhecimento... Personagens unidimensionais interpretados por atores monocórdicos.

[Vai dar trabalho nadar de volta à superfície heim?]

O efeito de totalidade e a possibilidade de roer as unhas (não importa o absurdo) é útil para lembrarmos o amor que temos pelo cinema. O roteirista deve ter desafiado a si próprio em criar uma situação na qual não fosse possível tirar os personagens com vida (ou com os tímpanos estourados por causa da pressão). Aí ele nos aparece com uma solução frouxa e chocha, risinho amarelo entre os dentes.

Mas não dá para reclamar, o avião cai praticamente inteiriço no oceano criando um safe space para meia dúzia de escolhidos. Aviso do comandante da cabine: atenção espectadores, toda picaretagem poderá ser recompensada no reino de deus... deus o Poseidon.

Olha ele aí de novo, de novo não. Agora é um avião. Bem, eles se reinventam...

Cotação: ☕

terça-feira, 25 de junho de 2024

O Regresso


O Regresso (The Renevant), 2015. De Alejandro Gonzáles Iñárritu

Embora o tema principal seja a vingança é inegável como a dimensão da violência ganha destaque em O Regresso. O filme demonstra como a relação entre natureza, animais e pessoas comporta uma atrição: choque entre o meio e as civilizações. O resultado é a dor inscrita nas peles, nos corpos e até nas pedras.

Dessa vez, uma situação de fronteira expressa não no oeste, mas no norte selvagem em direção ao Canadá. O que temos não é o terreno árido e desértico, mas a floresta temperada, densa, fria, abundante em alimentos e repleta de animais ferozes. Em alguns momentos, até os nativos são representados como forças da natureza. Em suma, um filme sobre aventureiros, desbravadores, gente gananciosa e terrível.

A narrativa acompanha a trajetória de Hugh Glass deixado para morrer na floresta após o ataque de um animal selvagem. Ele sobrevive arrastando-se por centenas de quilômetros a fim de se vingar do homem que o abandonou. Glass mostra-se capaz de enfrentar as maiores provações devido ao seu conhecimento sobre a natureza. Um personagem verossímil por ser um “produto” típico desse mundo muito além da civilização.

Os próprios antagonistas escapam da mecânica maniqueísta, pois a brutalidade faz parte daquele modo de vida comum a todos. No limite nem bons e nem maus, apenas seres desesperados em luta pela sobrevivência. A frase dita por um dos personagens “Deus é um suculento esquilo” ilustra o nível mais imediato de existência no qual a realidade paira na preservação da frágil corporeidade humana contra a brutalidade do mundo externo.

A perspectiva filosófica do filme implica no quão pequeno é o homem no quadro da vida ressaltando a pouca importância da vingança. Homens matam-se o tempo todo sejam anglo-americanos, franco-americanos ou nativos-americanos. Enquadramentos da moralidade podem revelar-se, por isso mesmo, mesquinhos e inócuos.

Capaz de perscrutar outras dimensões da realidade (transes ou delírios?) Hugh Glass é tanto agente como produto de um mundo em destruição. Não seria exagero comparar este filme com o posterior O Homem do Norte acerca da saga de vingança de um viking. Estamos falando de proximidades temáticas: natureza opressora, sociabilidade cruel, arcos de vinganças e flertes com uma fuga da realidade por meio do hiper-realismo estetizado. Sobressai-se em O Regresso (e nesse sentido ele é único) a sua capacidade de compor um quadro tanto mítico quanto naturalista. Eis o olhar da câmera que vai da natureza para a corpo e da ferida para a expiação.

Neve e sangue constituem-se em par reconhecedor da provisoriedade da vida. Todo derramamento e trasbordamento acabam absorvidos por uma natureza eligida por meio da destruição. Afinal de contas, ali é a fronteira; e lá os homens não têm valor nenhum.

Assisti em 23/06/2024

Cotação: ☕☕☕