Contatos de 4º grau (The Fourth Kind), 2009. EUA. De Olatunde Osunsanmi
A estrada (The Road), 2009. EUA. De John Hillcoat
Sempre me fascinou como as experiências fílmicas se articulam a partir da prática cinéfila, gerando sentidos antes insuspeitos. Em uma tarde assisto Contatos do 4º grau e A estrada. Dois filmes bem estruturados e que mereceriam comentários específicos, mas que agora os utilizo como uma proposta à reflexão de temática da paternidade.
Contatos do 4º grau aborda tal questão tangencialmente, uma psicóloga interessada em estudar uma “epidemia” de distúrbios do sono e pavor noturno em uma cidade do Alasca choca-se com a possibilidade de que pessoas estariam sendo abduzidas. Sua metodologia (hipnose) passa a ser questionada por autoridades locais, que a consideram culpada por uma série de sinistros acidentes envolvendo seus pacientes. O aprofundamento na pesquisa resulta no desaparecimento da própria filha, provavelmente seqüestrada por seres misteriosos.
A estrada é um filme forte e impactante, com uma tonalidade tão pessimista que faz outros filmes apocalípticos parecerem um passeio no parque. O planeta terra está morrendo, não restam mais animais ou vegetais, tão somente troncos de árvores e gramíneas ressecadas e congeladas. Grande parte dos seres humanos pereceu, há uma minoria que anda errante a procura de migalhas da civilização caída. O canibalismo é a ameaça cotidiana. Nesse cenário sombrio (no qual o suicídio se converteu na mais sábia decisão) pai e filho tentam sair do interior americano em rumo ao mar, para depois alcançarem o sul.
Como recuperar a filha retirada do aconchego do lar e conduzida até uma nave por uma luz dourada, fria e paralisante? Como a mulher deve se posicionar para a defesa da criança já traumatizada por eventos anteriores?
[O homem e o fardo da força; a mulher e a absorção da paixão.]
Como proteger um garoto de um mundo no qual a solidariedade humana se sublimou e a perspectiva mais realista é a morte por fome ou frio, quando não o abate por outro ser humano? Poderá um homem ensinar ao filho os valores de uma civilização já inexistente? Como garantir a sobrevivência moral e física?
Dois desafios lançados, que receberão itinerários diferentes com eventuais possibilidades de redenção. No filme de Osunsanmi o que fica são os lugares já visitados da mulher acusada de insanidade e histeria. Parece prevalecer a crença de que a defesa materna se consiste em um jacto violento de amor, desprovida de racionalidade. A ação feminina carece de uma força para o enfrentamento às adversidades, o choro e o desfalecimento são as conseqüências esperadas de qualquer ação.
Visões sutis e implicitamente misóginas abundam a história do cinema americano e no que se refere ao universo familiar as mulheres sempre caem nas mesmas armadilhas. As autoridades as interpelam “estás louca?” e a resposta é um grito histérico “I want my daughter”. O embate poder masculino X instinto materno é fundamental, em Contatos do 4º grau transparece o desconforto do delegado perante os métodos da Dra. Tyler, esta vista constantemente como suspeita. Recusa à vida alienígena ou a percepção de uma inadequação entre as condições de mulher e cientista?
Tal filme é, sobretudo, um sensacionalista pseudo-documentário acerca da possibilidade de vida extraterrestre. Mas traz em seu bojo uma caricatura da mulher, mãe na busca incessante ao rebento subtraído.
Já no excelente trabalho de John Hillcoat, vemos outro caminho se constituir em torno da paternidade: racionalismo e virilidade. Não há lugar para prantos desmedidos, cabe ao masculino defender o filho e ensinar a lição sobre o gênero humano em épocas sombrias. Tudo dito em tom seco e melancólico, pois se questiona, em primeiro lugar, a própria perfectibilidade da natureza.
A destruição do mundo revelou a disposição dos homens e mulheres em se abnegarem de qualquer altruísmo, tudo em nome de uma sobrevivência visceral. No ocaso da Terra, não há nada de bom no homem que faria um deus sábio prolongar sua existência. Somente a inquebrantável força do amor paterno (sentimento heróico e quase bíblico) parece dar sentido ao autofágico mundo pós-hecatombe.
Dois filmes bastante diferenciados, mas quando inter-cruzados nos oferecem paralelos interessantes:
mulher – amor/incondicional – descontrole – histeria – fraqueza
homem – amor/obrigação – racionalidade – auto-controle – força
Embora a escolha desses dois filmes seja aleatória, não há como negar as relações de gênero existentes no cinema americano (tipicamente ilustrada nos dois exemplos). Vejo possíveis releituras e banalizações de estereótipos da psicanálise que se popularizaram em começos do século XX.
As duas sagas apontam para desfechos dramáticos, nos quais as rupturas nas vidas de uns significam a continuidade da existência de outros. O cinema americano parece obcecado em se perguntar sobre a viabilidade da família nuclear. Valores tradicionais em roupagens modernas. Que os desavisados não se enganem, a questão de fundo é se o mundo pode sobreviver fora de uma ordem patriarcal.
A estrada (The Road), 2009. EUA. De John Hillcoat
Sempre me fascinou como as experiências fílmicas se articulam a partir da prática cinéfila, gerando sentidos antes insuspeitos. Em uma tarde assisto Contatos do 4º grau e A estrada. Dois filmes bem estruturados e que mereceriam comentários específicos, mas que agora os utilizo como uma proposta à reflexão de temática da paternidade.
Contatos do 4º grau aborda tal questão tangencialmente, uma psicóloga interessada em estudar uma “epidemia” de distúrbios do sono e pavor noturno em uma cidade do Alasca choca-se com a possibilidade de que pessoas estariam sendo abduzidas. Sua metodologia (hipnose) passa a ser questionada por autoridades locais, que a consideram culpada por uma série de sinistros acidentes envolvendo seus pacientes. O aprofundamento na pesquisa resulta no desaparecimento da própria filha, provavelmente seqüestrada por seres misteriosos.
A estrada é um filme forte e impactante, com uma tonalidade tão pessimista que faz outros filmes apocalípticos parecerem um passeio no parque. O planeta terra está morrendo, não restam mais animais ou vegetais, tão somente troncos de árvores e gramíneas ressecadas e congeladas. Grande parte dos seres humanos pereceu, há uma minoria que anda errante a procura de migalhas da civilização caída. O canibalismo é a ameaça cotidiana. Nesse cenário sombrio (no qual o suicídio se converteu na mais sábia decisão) pai e filho tentam sair do interior americano em rumo ao mar, para depois alcançarem o sul.
Como recuperar a filha retirada do aconchego do lar e conduzida até uma nave por uma luz dourada, fria e paralisante? Como a mulher deve se posicionar para a defesa da criança já traumatizada por eventos anteriores?
[O homem e o fardo da força; a mulher e a absorção da paixão.]
Como proteger um garoto de um mundo no qual a solidariedade humana se sublimou e a perspectiva mais realista é a morte por fome ou frio, quando não o abate por outro ser humano? Poderá um homem ensinar ao filho os valores de uma civilização já inexistente? Como garantir a sobrevivência moral e física?
Dois desafios lançados, que receberão itinerários diferentes com eventuais possibilidades de redenção. No filme de Osunsanmi o que fica são os lugares já visitados da mulher acusada de insanidade e histeria. Parece prevalecer a crença de que a defesa materna se consiste em um jacto violento de amor, desprovida de racionalidade. A ação feminina carece de uma força para o enfrentamento às adversidades, o choro e o desfalecimento são as conseqüências esperadas de qualquer ação.
Visões sutis e implicitamente misóginas abundam a história do cinema americano e no que se refere ao universo familiar as mulheres sempre caem nas mesmas armadilhas. As autoridades as interpelam “estás louca?” e a resposta é um grito histérico “I want my daughter”. O embate poder masculino X instinto materno é fundamental, em Contatos do 4º grau transparece o desconforto do delegado perante os métodos da Dra. Tyler, esta vista constantemente como suspeita. Recusa à vida alienígena ou a percepção de uma inadequação entre as condições de mulher e cientista?
Tal filme é, sobretudo, um sensacionalista pseudo-documentário acerca da possibilidade de vida extraterrestre. Mas traz em seu bojo uma caricatura da mulher, mãe na busca incessante ao rebento subtraído.
Já no excelente trabalho de John Hillcoat, vemos outro caminho se constituir em torno da paternidade: racionalismo e virilidade. Não há lugar para prantos desmedidos, cabe ao masculino defender o filho e ensinar a lição sobre o gênero humano em épocas sombrias. Tudo dito em tom seco e melancólico, pois se questiona, em primeiro lugar, a própria perfectibilidade da natureza.
A destruição do mundo revelou a disposição dos homens e mulheres em se abnegarem de qualquer altruísmo, tudo em nome de uma sobrevivência visceral. No ocaso da Terra, não há nada de bom no homem que faria um deus sábio prolongar sua existência. Somente a inquebrantável força do amor paterno (sentimento heróico e quase bíblico) parece dar sentido ao autofágico mundo pós-hecatombe.
Dois filmes bastante diferenciados, mas quando inter-cruzados nos oferecem paralelos interessantes:
mulher – amor/incondicional – descontrole – histeria – fraqueza
homem – amor/obrigação – racionalidade – auto-controle – força
Embora a escolha desses dois filmes seja aleatória, não há como negar as relações de gênero existentes no cinema americano (tipicamente ilustrada nos dois exemplos). Vejo possíveis releituras e banalizações de estereótipos da psicanálise que se popularizaram em começos do século XX.
As duas sagas apontam para desfechos dramáticos, nos quais as rupturas nas vidas de uns significam a continuidade da existência de outros. O cinema americano parece obcecado em se perguntar sobre a viabilidade da família nuclear. Valores tradicionais em roupagens modernas. Que os desavisados não se enganem, a questão de fundo é se o mundo pode sobreviver fora de uma ordem patriarcal.