quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Denominador comum: Criador X Criatura

Capote(Capote), 2005. EUA. De Bennett Miller
Conceição – autor bom é autor morto, 2007. Brasil. De André Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro
Mais Estranho do que a Ficção (Stranger than Fiction), 2006. EUA. De Marc Foster

Em Conceição - autor bom é autor morto (2007), uma das pusilanimidades que assisti no Festival de Tiradentes de 2007, ficou patente o interesse dos aspirantes a diretores em discutir acerca da relação estabelecida entre o autor e o personagem. De que modo a criação literária ou cinematográfica afeta aquele que a originou?

Se formos pensar seriamente nessa matéria, teremos que reconhecer que, em alguns casos, escrever um romance ou um poema é um processo interno de modificação e confrontação – um embate psicológico e íntimo. É reconhecido que, ter redigido A sangue frio, afetou decisiva e sombriamente a personalidade de Truman Capote.

No filme Capote, de Bennett Miller, as relações estabelecidas entre esse escritor e os assassinos do massacre de Kansas City salientam o confronto existente entre o narrador e a figura envolta na narrativa. Nesse caso, Truman Capote procurou os criminosos, estabelecendo um contato com eles, na tentativa de compreender os elementos que os condicionaram a realizarem tal chacina. Verifica-se, de um lado, a ação do esteta/documentarista ao criar uma composição, na qual são suas próprias explicações que emergem, estruturando os eventos, uma forma de ter o controle do real vivido. Do outro lado, vemos o interesse dos envolvidos em fazer suas próprias interpretações sobressaírem nos escritos de um terceiro. A derradeira estratégia para a sobrevivência, perpetuação da memória pela canção de um aedos.

Com efeito, em Capote, os personagens, retratados como reais, não podem escapar das grades que lhes foram impostas. Já em Conceição, os personagens, existentes em uma realidade fílmica (como o galante ator que foge das telas do cinema em A Rosa Púrpura do Cairo) são capazes de promover uma insurreição, desprendendo-se do seu universo de origem e vindo confrontar diretamente seus inventores. Trata-se, de forma pouco elaborada, é verdade, da vingança da criatura (inconsequentemente criada) contra seu criador. Porém, inexiste uma possibilidade de diálogo, a metalinguagem é feita em mão única, um exercício de reflexão de estudantes de cinema, não se ramificando em uma trama adulta, na qual seria necessário um maior conhecimento sobre a razão de ser de cada ficção.

Sem dúvida que, em Conceição, a estrutura narrativa falha na tentativa de construir uma trama inteligível ao telespectador, capaz de mesclar a auto-citação e auto-referenciação com o desenvolvimento de um enredo coerente e significante.

Longe dessas debilidades também se encontra Mais Estranho do que a Ficção, na qual um homem comum se descobre personagem, envolto numa trama, parcialmente orientado por uma narradora onisciente. Assim, ele também se encontra preso e indefeso, já que não detém as informações suficientes para salvaguardar sua existência. A qualquer momento a narrativa pode ser encerrada, com a morte do objeto da narração.

Vemos um duplo confronto, em primeiro lugar há que se descobrir em qual narrativa Hardold, que se transformou em uma figura dramática, está inserido. Em seguida, criar caminhos para interação e negociação com a voz da narrativa, poderosa, colocada em uma posição de deus.

Nesse caso, vemos o confronto do homem comum com o universo hegemônico – mesmo que esse universo seja literário. Um simples auditor da receita federal pode ter sido alçado à categoria de herói, se dramático ou cômico ainda não se sabe.

Enfim, nos três casos vemos uma imbricação entre as esferas dos fictícios e a dos demiurgos. Situação mais evidente em Conceição, na qual personagens são paridos para serem abandonados a própria sorte. Por isso mesmo, eles retornam aos seus “pais”, questionando a razão da existência. Uma ação que não seria muito diferente se o homem tivesse a oportunidade de indagar seu criador.

Em Capote, os delinqüentes pertencem ao mesmo nível de realidade do escritor, mas ainda assim não deixam de ser personagens, querendo, de idêntica maneira, que Truman Capote interfira sobre suas vidas, ao menos de forma literária – já que não querem ser eternizados como assassinos.

Em Mais Estranho do que a Ficção, não há distinção entre o personagem, aprisionado em uma trama literária, e sua autora. Há a perspectiva de que eles acabem se encontrando, podendo um interferir na esfera do outro – ainda que as relações de força não sejam iguais. Mas, de qualquer maneira, o embate é franco e sincero.

O que toda essa discussão traz a tona é que os personagens têm vida própria, não são escravos dos seus criadores. Cada unidade tem sua carga dramática, suas especificidade, seria uma trapaça incorrer a qualquer elemento que pudesse contrariar as premissas básicas, sob o risco da incoerência e da inverossimilhança. Conan Doyle não conseguiu matar Sherolck Holmes, isso já nos diz muita coisa. O escritor jaz, mas seu personagem continua vivo, persistindo de diversas maneiras.

De fato, para um escritor, a prova maior de sua perenidade é ser convertido em personagem. Shakespeare virou personagem da história da literatura inglesa, Lima Barreto faz parte da tragédia dos mulatos cariocas, vítimas do preconceito e desdém do governo brasileiro - algo tematizado em seus próprios escritos.

A realização do ficcional pressupõe que o autor pertença aos dois mundos, portanto ele pode ser vítima dos seus escritos. Seus personagens se convertem em algozes, às vezes alcançando um sucesso inaudito e obscurecendo seus criadores.

No cinema isso também é verdade, quando alguém se põe a dirigir um filme em que ele mesmo atua, a sua pretensão é assegurar um controle total sobre os dois universos. Ser pai e ser filho de si mesmo. Uma façanha que, a despeito de todo avanço biotecnológico, só pode ser atingida por intermédio da arte. O aedos também tem sua parcela de divindade.

Cotação:

Capote: Bom
Conceição: Fraco
Mais estranho que a ficção: Regular

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Planeta Terror

Planeta Terror (Planet Terror), 2007. EUA. De Robert Rodriguez

O principal mérito desse filme é o interesse de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino em promoverem uma homenagem ao cinema de terror B.

Entre aspas, entre aspas. Porque, ao bem da verdade, cumpre lembrar a artificialidade dessa produção, uma vez que seu financiamento é de primeira linha. Há uma diferença entre o brega cabotino e o genuíno.

Esses dois diretores estão brincando com o universo do cinema, revisitando as mitologias e os estereótipos, criando releituras divertidas e bem articuladas, mas, carecendo de alguma originalidade e sofisticação. Mulheres nuas, carros envenenados, armas e cenas de mutilação estão longe de ser garantia de uma produção trash, já que são facilmente captáveis por qualquer produção de primeira linha.

Alguns elementos insistem em se repetir nos filmes de Robert Rodriguez. A figura da stripper (ou dançarina go go) é um deles, seja em Um Drink no Inferno (1996) ou em seu curta metragem contido em Grande Hotel (1995). Outro ponto que também já se repetiu é a fusão entre o homem e as armas, como aquele personagem de Um Drink no Inferno que acoplava uma pistola abaixo da sua linha do abdome... Algo também insinuado em A Balada do Pistoleiro (1995).

Justamente, em Planeta Terror, uma dançarina tem sua perna arrancada por zumbis, no lugar, como prótese, é colocada uma metralhadora automática. A garota se converte, portanto, em uma arma, se colocando em posições muito sugestivas para poder disparar conta seus agressores. Aliás, o filme começa com uma de suas apresentações no palco, quando ela exibe suas duas pernas, em uma dança sensual. Armas e sexo, uma representação corriqueira no imaginário adolescente, mas que, convenhamos, soa muito paspalhona para qualquer telespectador médio.

Não adianta a alegação de que o diretor pretendia realizar um filme despretensioso, com uma anti-estética, e, por isso, liberar todas as suas projeções juvenis, como as previsíveis sugestões ao lesbianismo. É um filme de zumbis, próximo A volta dos mortos vivos (1985), que, por sua vez, é uma releitura limitada dos clássicos do gênero.

Em termos de fotografia, o filme também simula uma precariedade da película, o que, obviamente, é outro artifício. Na verdade é de se questionar qual o interesse cinematográfico em realizar produções dispendiosas para mimetizar o trabalho de diretores, independentes ou não, que com poucos recursos fazem o melhor que pode. É como se fosse uma festa à fantasia, na qual todos os ricos fossem fantasiados de mendigos.

Divertido? Sim. Limitado? Com certeza. Isto é, desde que você não tenha mais 16 anos, o que não parece ser o caso de Quentin Tarantino e seu fiel escudeiro Robert Rodriguez.

Cotação: Regular

O Rei e Eu

O Rei e Eu (The King and I), 1956. EUA. De Walter Lang

Muito já foi dito sobre a representação da Ásia e da África colonial no cinema ocidental. Esses filmes, comprometidos ideologicamente com a política imperialista, justificaram e legitimaram o domínio dos países europeus sobre suas colônias.

Filme que faz parte dessa galeria é o clássico O Rei e Eu, produzido no ano de 1956. A história é sobre uma professora inglesa, Anna Leonowen, que em meados de 1860 é contratada pelo rei de Sião para ensinar seus filhos.

Os primeiros planos do filme nos ajudam a dimensionar o exotismo de Sião, pessoas com trajes exóticos, elefantes trafegando pelas ruas e monumentais palácios. Depois, a partir do olhar de Anna, conheceremos o rei, suas esposas e seus filhos (este um dos momentos famosos da história do cinema).

O filme é estruturado na relação entre a professora (representação da cultura e domínio ocidental) e o rei de Sião (representação do exotismo e atraso do oriente). Na verdade, o rei é sagaz e inteligente, embora seja desprovido do saber europeu. Caprichoso e orgulhoso como “devem ser” os soberanos do oriente ele recorre à professora para tornar seu país “mais científico”.

O clímax do filme está ligado exatamente ao desejo e necessidade do rei em mostrar a Inglaterra que seu país havia se tornado científico. A rainha Vitória, informada de que Sião era um país bárbaro decide enviar uma comitiva para averiguar essas informações, caso as denúncias fossem confirmadas seria instalado no país um protetorado militar.

Para evitar a intervenção inglesa, Sião deve se mostrar suficientemente civilizada e para isso o rei necessitará da ajuda de Anna. Uma recepção é preparada para receber a comitiva inglesa, enquanto as esposas do rei aprendem a usar talheres e vestidos do Ocidente. Percebemos que a Inglaterra coube o direito de decidir quais são os povos bárbaros e civilizados, tendo como padrão de referência sua própria cultura.

Embora a mensagem seja eurocêntrica, o filme acaba, por um momento, se traindo. Anna convence o rei a ofertar um espetáculo durante o banquete, uma peça teatral para impressionar os ingleses. A idéia de Anne é apresentar a adaptação do livro A cabana de pai Tomás feita por Tuptim, a mais recente das esposas do rei – que é inconformada com sua situação de concubina.

Esse é o melhor momento do filme que, involuntariamente, desmonta todo o discurso colonial. A história encenada pela jovem esposa, não se passa no sul dos Estados Unidos, mas sim em Sião. Tuptim usou a obra de uma escritora norte americana para declamar a sua própria condição de escrava.

Cai por terra todo o discurso da necessidade de se civilizar, pois, no próprio ocidente – a suposta civilização – existia a barbárie, os Estados Unidos estava no auge da Guerra Civil. Um violento conflito para tentar por fim a escravidão.

Tuptim aproveitando das festividades foge para encontrar com seu verdadeiro amor, porém é capturada e colocada em presença do rei e de Anna. O rei incapaz de castigar sua concubina em presença de Anna – em presença dos olhos da civilização – cai em uma intensa depressão, adoecendo profundamente e confirmando os temores de seu primeiro ministro de que a professora o destruiria.

Anna rompe definitivamente com esse país, não suportando viver naquela barbárie. Porém, antes de sua partida, é informada de que o rei está morrendo o que a leva a retornar à presença do soberano.

Momentos antes de seu desfalecimento o rei passa o reino ao seu jovem filho, este possui a mesma impetuosidade paterna. Enquanto o príncipe faz seu primeiro pronunciamento ao pequeno grupo que rodeia seu pai moribundo, este confirma a continuidade do magistério de Anna.

O embate do rei com a civilização foi doloroso e esgotou toda sua energia. Ele deve morrer para que seus sucessores, uma geração revitalizada, distante das bárbaras tradições, se aproximem mais da Inglaterra.

Novamente o projeto colonizador se afirma, a civilização vence a barbárie, o preço é a morte do rei, isto é, dos antigos dirigentes que serão sucedidos por uma nova geração mais ocidentalizada. Anna continuará professora do jovem soberano, exercendo sua influencia sobre ele, mantendo a ocidentalização.

Rei morto, rei posto. Enquanto um falece o outro é coroado, repudiando a barbárie, mas não a submissão à Inglaterra. Ansioso pela ocidentalização, o jovem príncipe se diz rei em presença de sua professora, uma inglesa. Mais um país oriental que passa a ser tutelado pela Inglaterra.

Enfim a civilização...

Cotação: Bom