Sundelbolong. De Sisworo Gautama Putra, 1981.
Um
dos maiores desafios na construção de uma sensibilidade cinéfila é a ruptura
com os padrões estéticos norte-americanos, que são, via de regra, formativos.
Assistindo a este clássico do cinema indonésio, somos capazes de perceber como
as conexões com o chamado sul global são reais. A tendência inicial seria tomar
o filme como de mau gosto, fruto de um olhar treinado pelo viés estético
ocidental. No entanto, em vários sentidos, a película lembra os próprios
esforços brasileiros na construção de uma cinematografia própria.
O
filme aborda a história de uma ex-prostituta que foi estuprada a mando de sua
antiga empregadora. Alissa desfrutava de sua vida de recém-casada, aguardando o
retorno de seu marido de uma viagem, quando foi atacada. Ela não resiste ao
julgamento moral de uma sociedade conservadora e crítica, acabando por se
suicidar. Seu espírito retorna como Sundel bolong, uma criatura do folclore
indonésio, resultado do sincretismo entre tradições asiáticas e a religião
islâmica.
A
construção do filme como narrativa de terror funciona, embora faça incursões no
drama e, ocasionalmente, na comédia. A noção de um gênero cinematográfico
rigidamente organizado em categorias estanques nem sempre é uma preocupação das
tradições cinematográficas marginais. Assim, tornam-se evidentes as
proximidades com os filmes de José Mojica Marins, especialmente no universo do Zé
do Caixão.
A
produção transpira improvisação e ausência do apuro técnico típico dos grandes
estúdios, sobretudo nas maquiagens, que revelam rostos realistas e cheios de
imperfeições – algo muito diferente dos rostos assépticos de Hollywood. As
aparições e os tormentos provocados pela criatura são engenhosos, com soluções
típicas do horror de alto nível, embora haja exageros, como os raios disparados
por Alissa nos momentos de enfrentamento com um feiticeiro.
O
filme é revelador de como as representações dos fantasmas asiáticos foram
mescladas às tradições religiosas islâmicas. A imagem do fantasma japonês –
como a personagem Sadako, de Ringu, por exemplo – é facilmente
identificável. Nesse sentido, Sundelbolong é mais uma porta de entrada
para o cinema oriental.
A
assombração da mulher é o elemento angular do filme. No Oriente, essas
entidades são chamadas de onryō, espíritos vingativos femininos. A dor e
o sofrimento inviabilizam o descanso dessas almas, levando-as a perpetuar a
violência contra os vivos, criando outras vítimas e alimentando o ciclo
vicioso. No filme, tais imagens são contrapostas por religiosos islâmicos, que
as combatem como forças demoníacas — seres perdidos que precisam da proteção e
do perdão de Alá. Tal elemento confere ao filme uma complexidade narrativa,
embora a naturalidade com que os personagens aceitam a Sundel bolong seja um
tanto desconcertante. Tudo se acomoda fácil demais, sem as ambivalências
psicológicas comuns ao gênero.
O
filme, no entanto, não deixa de dialogar com o cinema ocidental, parecendo
inspirar-se no horror norte-americano, inclusive com elementos do slasher.
Sundelbolong foi um dos responsáveis pela consolidação da fama do horror
oriental e contou com a presença da scream queen indonésia, a atriz Suzzanna,
uma mulher cuja vida esteve sempre envolta em mistérios.
Enfim,
Sundelbolong é um clássico cult que, quando analisado sem o viés
ocidentalizante, revela-se um achado precioso.
Cotação: ☕☕☕☕