terça-feira, 25 de junho de 2024

O Regresso


O Regresso (The Renevant), 2015. De Alejandro Gonzáles Iñárritu

Embora o tema principal seja a vingança é inegável como a dimensão da violência ganha destaque em O Regresso. O filme demonstra como a relação entre natureza, animais e pessoas comporta uma atrição: choque entre o meio e as civilizações. O resultado é a dor inscrita nas peles, nos corpos e até nas pedras.

Dessa vez, uma situação de fronteira expressa não no oeste, mas no norte selvagem em direção ao Canadá. O que temos não é o terreno árido e desértico, mas a floresta temperada, densa, fria, abundante em alimentos e repleta de animais ferozes. Em alguns momentos, até os nativos são representados como forças da natureza. Em suma, um filme sobre aventureiros, desbravadores, gente gananciosa e terrível.

A narrativa acompanha a trajetória de Hugh Glass deixado para morrer na floresta após o ataque de um animal selvagem. Ele sobrevive arrastando-se por centenas de quilômetros a fim de se vingar do homem que o abandonou. Glass mostra-se capaz de enfrentar as maiores provações devido ao seu conhecimento sobre a natureza. Um personagem verossímil por ser um “produto” típico desse mundo muito além da civilização.

Os próprios antagonistas escapam da mecânica maniqueísta, pois a brutalidade faz parte daquele modo de vida comum a todos. No limite nem bons e nem maus, apenas seres desesperados em luta pela sobrevivência. A frase dita por um dos personagens “Deus é um suculento esquilo” ilustra o nível mais imediato de existência no qual a realidade paira na preservação da frágil corporeidade humana contra a brutalidade do mundo externo.

A perspectiva filosófica do filme implica no quão pequeno é o homem no quadro da vida ressaltando a pouca importância da vingança. Homens matam-se o tempo todo sejam anglo-americanos, franco-americanos ou nativos-americanos. Enquadramentos da moralidade podem revelar-se, por isso mesmo, mesquinhos e inócuos.

Capaz de perscrutar outras dimensões da realidade (transes ou delírios?) Hugh Glass é tanto agente como produto de um mundo em destruição. Não seria exagero comparar este filme com o posterior O Homem do Norte acerca da saga de vingança de um viking. Estamos falando de proximidades temáticas: natureza opressora, sociabilidade cruel, arcos de vinganças e flertes com uma fuga da realidade por meio do hiper-realismo estetizado. Sobressai-se em O Regresso (e nesse sentido ele é único) a sua capacidade de compor um quadro tanto mítico quanto naturalista. Eis o olhar da câmera que vai da natureza para a corpo e da ferida para a expiação.

Neve e sangue constituem-se em par reconhecedor da provisoriedade da vida. Todo derramamento e trasbordamento acabam absorvidos por uma natureza eligida por meio da destruição. Afinal de contas, ali é a fronteira; e lá os homens não têm valor nenhum.

Assisti em 23/06/2024

Cotação: ☕☕☕

sábado, 15 de junho de 2024

Aloners

Aloners (Honja Saneun Saramdeul), 2021. De Hong Sung-eun

Um filme essencial para apreendermos a lógica da sociedade pós-moderna em suas contradições – um mundo de tecnologia que convive com fantasmas depressivos e reflexivos. A história focaliza o cotidiano solitário e sem alegria de Yu Jina, a atendente de call center misantropa que precisa treinar uma nova funcionária. Jina acabou de perder a mãe e encontra-se em um processo de luto delicado no qual ela nutre suspeitas e relutâncias em relação ao seu pai em um processo de transferência de culpa.

A solidão e o hiper-individualismo são desdobramentos de uma sociedade precarizada (empregos ou subempregos destituídos de sentido) com indivíduos gastando suas vidas em frente às telas. O egoísmo aparece, portanto, como a forma mais sensata de sociabilidade. O acidente ocorrido no apartamento vizinho de Jina (uma pilha de pornografia desabou e matou o rapaz soterrado) evidencia a condição insalubre da grande cidade. Nasce mais um fantasma na cidade, assombrando, antes de tudo, a si mesmo.

Assim, fantasmas rondam à cidade evocando o medo da solidão: vida e morte solitárias. A cidade com sua multidão é o lugar de vazio, aporta-se aí a contradição do mundo pós-moderno. Na visão retangular prevalece o novo recorte da vida: telas de celular e televisão, janela do ônibus e estação do trabalho. Cubículos e bolhas que servem de proteção e afastamento esvaziando todo o sentido de sociabilidade.

A visão de Yu Jina é estreita: não consegue ver nada além dos pequenos retângulos que emolduram sua vida. Seu olhar apreende apenas o que é imediato; assim, a câmera focaliza as imagens pelos retângulos, isto é, sempre uma visão que corta a totalidade, mantendo-se em um nível de egoísmo primário. Esse tipo de enquadramento é literalmente um quadrado, quer dizer, um recorte muito reduzido da realidade que traduzido por uma fotografia em tons acinzentados.

[O recorte retangular da experiência moderna]

Em suma, Aloners traduz para o cinema aquilo que o sociólogo Byung-Chul Han identificou como uma característica das sociedades capitalistas modernas avançadas. As pessoas são cobradas a ter uma positividade mesmo com a desolação do entorno. A autoexpiação liga os vivos e os mortos vinculando Jina ao fumante melancólico. Os fantasmas que esgueiram nas imagens de câmeras ou nos corredores dos prédios de solitários aparecem como uma confirmação enfática de uma crise que é, antes de tudo, existencial.

Cotação: ☕☕☕☕☕

terça-feira, 11 de junho de 2024

Cléo das 5 às 7


Cléo das 5 às 7
(Cléo de 5 à 7), 1962. De Agnès Varda

As cores estão nas cartas, nos presságios, não na vida na qual há suspensão das certezas. O afoitamento da doença e o enigma do cotidiano.

Cleo passa algumas horas esperando o resultado de um exame e nesse sentido sua relação com a cidade é de espera e de ansiedade. O deslocamento pelo ambiente urbano demonstra a força da vida, mas ao mesmo tempo o alheamento pela multidão aos seus dramas individuais. Passando por cafés, lojas, transporte público e parques Cléo lida com a incerteza com seu fluxo de pensamentos revelando a inconstância e a angústia.

Mas Paris paira soberana, com seus códigos e ritmos. Os elementos da cidade podem ser interpretados pela personagem como oráculos, ordálios cujos sinais sutis antcipam o futuro. O filme começa exatamente nesses termos, com a visita a uma cartomante. Mas diante de prenúncios insatisfatórios, a sua busca de revelações continua. Desse modo, situações casuais são tomadas por Cléo como indícios de algo possivelmente negativo que irá se revelar no fim do dia.

A fotografia (restaurada) é belíssima, espelhando a cidade em várias superfícies: vidraças, espelhos, fontes d’água, automóveis e janelas. Os travellings conduzem o olhar do espectador por Paris na perspectiva da personagem. Andar pela cidade, no entanto, pode ser uma fonte de distração, mas não de amparo. Cada rua é um microcosmos com diferentes personagens aos quais suas histórias de vida não podem ser absorvidas por Cléo. Mas esse anonimato sempre será uma via de mão dupla.

A narrativa coloca-nos no lugar de Cléo tensionando a superficialidade da personagem (uma moça vaidosa) a partir dos impactos filosóficos da existência. Revela-se, assim, um traço característico da Nouvelle Vague: cineasta Agnès Varda traz as implicações da finitude para o horizonte de uma jovem mulher. A conflitualidade decorrente de tal situação reverbera na cidade que apesar de tudo mostra-se magnifica . A sensação de solidão é persistente – quando sofremos, sofremos sozinhos – só atenuando-se no arco final quando Cléo encontra um soldado a espera de ser enviado para o conflito na Argélia.

Assim, as duas pessoas que têm a morte como uma possibilidade podem romper as amarras contra a incomunicabilidade e construir um elo em comum. É na humanidade, portanto, e não na cidade que há respostas para a superação da iminente mortalidade. Não há para o casal outro caminho além de confiar no laço recém constituído. Basicamente, a filosofia entra na narrativa fílmica pela temática da morte se resolve com as garantias oferecidas pela amizade e afeto.

Cotação: ☕☕☕☕☕