sábado, 8 de março de 2008
O Orfanato
O Orfanato (El Orfanato), 2007. México/Espanha. De Juan Antonio Bayona
Um, dois, três, toca na parede.
Alguns imaginários são persistentes e eficientes. Recentemente, em vistia por uma cidade, tive a oportunidade de visitar um antigo casarão sobre o qual circulam algumas lendas acerca de sua propriedade mal-assombrada. Aparentemente era uma construção comum, genuíno exemplar da arquitetura de fazenda do setecentismo mineiro.
Tratava-se de um sobrado de dois andares, construído em pau-a-pique, com assoalho em tábuas largas e algumas divisórias de madeiras, também possuindo vários cômodos, alcovas, porões e despensas. Supostamente, uma família inteira adoeceu de bexiga e pereceu, sendo sepultados em uma das alas do porão. O proprietário, meio bobamente, me relatou as estranhas ocorrências que ele pode observar quando morava no local, como os vários barulhos que ele escutava durante a noite.
Em uma casa de madeira de quase trezentos anos escutar barulhos é mais do que normal, aliás, sobrenatural seria não ouvir a madeira dilatar... Enfim, todo modo, esse casarão tem um bom potencial para nos assustar e nos fazer esperar o confronto com o sobrenatural. Imaginem: um pequeno ruído no porão às três da manhã. Vale a pena descer as escadas? Abrir as portas? Ir conferir o que te espreita na escuridão? O que te motivaria a procurar o desconhecido?
Certamente a representação cinematográfica da casa mal-assombrada se assenta em elementos do imaginário popular. A noção de que alguns espaços contenham conexões com o além é uma recorrência antiga, acionada em diversas ocasiões. O caso do cemitério parece ser o exemplo mais característico: espaço dos vivos para o descanso dos mortos. Curiosamente, é pouco comum que os filmes de terror se ambiente nessas paragens.
A princípio, o cemitério seria local de harmonia e equilíbrio, onde os dois mundos se respeitam. Situação contrária é a de uma casa antiga, na qual há rastros fantasmagóricos que insistem em perambular pelos lugares em que habitavam quando vivos.
Os filmes sobre casas mal-assombradas têm recursos limitados para nos surpreender – somos capazes de antecipar os principais desdobramentos. E é esse aspecto que eu destaco em O Orfanato, trabalho bem feito que consegue nos conduzir a momentos de suspense, mas que, apesar da inteligência do seu desenvolvimento, tem um roteiro incapaz de extrapolar certas convenções do gênero.
Laura, seu esposo e o filho adotivo Simon se mudaram para a casa na qual ela vivera no passado, quando então abrigava um orfanato. Sua intenção é poder cuidar do seu filho que tem uma grave doença. No entanto, o garoto alega estar em companhia de outras crianças. A princípio, Laura não levará a sério essas brincadeiras, até se convencer de que realmente há uma força sobrenatural tentando afastá-lo do filho.
Se os casarões mal-assombrados são elementos recorrentes nas narrativas fantásticas as odisséias das mães que não medem esforços para proteger ou salvar seus filhos também é outro tema constantemente abordado. Convicções de que as mulheres seriam capazes de atravessar o reino dos mortos para salvar seus rebentos. Trata-se de uma atualização do mito do amor materno, de que as mães, por natureza, são protetoras.
Os pais aparecem como o elemento racional, aqueles que se restringem ao campo da lógica e da virilidade para salvar seus filhos. Do amor paterno, espera-se o empunhar das armas e a defesa ao lar, mas o contato como o outro mundo (inconstante e imprevisível) ainda é tarefa feminina. Seriam atualizações do machismo oitocentista?
Há várias sub-tramas no filme que impedem que o expectador desvende o desfecho da história. A criança desaparecida teria sido seqüestrada por uma antiga funcionária? Ou raptada pelos fantasmas do orfanato? Aliás, esses seres existiriam ou seria apenas a imaginação de algumas mulheres histéricas? É de se questionar as causas pelas quais as assombrações sempre preferem aparecer para mulheres e crianças. Seriam incapazes de confrontar a masculinidade e cientificidade dos homens?
Talvez. Mas em O Orfanato, quando o horror já transparece em sua totalidade, Carlos, marido de Laura, prefere negar o ocorrido e opta por abandonar a residência. O que transparece em sua fisionomia é o medo do desconhecido e o rancor por sua esposa, que insiste em buscar o intangível. Aliás, sua expressão nos antecipa qual será o destino de Laura, algo pelo qual, no meio da narrativa, eu já esperava.
De fato, se a resposta ao enigma é surpreendente (e extremamente cruel), o desfecho do filme (ao menos para mim) não surpreende. Final típico para o gênero que se o leitor pensar em outros exemplares já vistos, há de saber a resposta.
Entretanto, o dado mais curioso é que o enredo só involuntariamente se tornar uma história de terror. Isso é dito na primeira cena, quando vemos o orfanato na época de Laura, a fotografia iluminada, a paisagem bucólica e a alegria das crianças dizem inequivocamente que aquele espaço é o recanto dos pequenos, lugar seguro e nada ameaçador.
Embora o garoto Simon, desde o começo, já tivesse uma relação “natural” com o outro mundo, em momento algum ele se encontrava em perigo. A projeção trilha o curso do terror somente em função dos equívocos cometidos e das falhas humanas. Não há como associar o orfanato ao espaço maligno e hostil, pelo contrário, ao final ele pode ser visto como o paraíso perdido. Território benigno e de complacente repetição.
Um, dois, três, toca na parede.
Cotação: Regular
sábado, 1 de março de 2008
Jogos de Poder
Jogos de Poder (Charlie Wilson’s War), 2007. EUA. De Mike Nichols
A possibilidade de um desfecho desfavorável no Iraque tem preocupado largos setores da sociedade americana, da população leiga aos políticos, dos militares nacionalistas a intelectualidade esclarecida.
Nos últimos tempos, várias produções hollywoodianas têm abordado esse tema, com maior ou menor habilidade. Mike Nichols é um cineasta crescido e, supõe-se, ele sabe o que está fazendo. Ora, que Nichols siga a corrente política que bem entender, mas em sua idade a ingenuidade é algo que não cai bem.
Em Jogos de Poder (tradução idiota) temos um genuíno exemplar da direita americana. A projeção nos surpreende desde o começo, quando o nome de Charles Wilson aparece pintado nas cores azul e vermelha, projetado, em seguida, sobre uma bandeira americana.
Como narrativa conservadora, o filme possui uma visão teleológica e facistóide da história. No decorrer de uns 90 minutos somos convencidos do argumento de que aos Estados Unidos cabe o direito de ditar o curso do mundo. Em começos dos anos oitenta a União Soviética invadiu o Afeganistão, iniciava-se um conflito de forças desigual, no qual a população do país invadido tentava, de forma desesperada, resistir ao avanço do exército vermelho
Em Houston, uma socialite, com dons de profetiza, enxergou que essa era a possibilidade da democracia americana derrotar o império comunista. Ela sugere ao congressista Charlie Wilson que intensifique o auxílio bélico ao Afeganistão, com intuito de superaquecer os gastos soviéticos, levando-os a bancarrota. Concepção voluntarista da história, na qual duas pessoas puderam decidir os acontecimentos mais marcantes do último quartel do século XX.
Em última análise, o que se prescreve é que o império soviético estava pré-determinado à falência, o que revela um desconhecimento da dinâmica interna dessa potência. A experiência socialista foi encerrada unicamente porque um congressista, apreciador de bebidas, cocaína e mulheres (até que ele é um cara legal), concluiu que caberia ao governo americano a missão de salvar os afegãos.
Sim, trata-se de uma salvação. Pois o cruel Império Soviético invadiu o Afeganistão. Pois o cruel Império Soviético entrou em uma guerra desigual, usando modernas tecnologias contra rifles ultrapassados. Pois o cruel Império Soviético atirou contra a população civil, destruiu suas casas e torturou pessoas indefesas, aleijando mulheres e crianças. Como o exército soviético é cruel. A democracia americana jamais cometeria tais deslizes.
As cenas do exército vermelho são caricatas, resquícios da propaganda da Guerra Fria. Em um momento, a câmera mostra a perspectiva das armas dos helicópteros russos que atiram contra os civis, a música de fundo é um hino soviético. Em outra cena, antes de partir para o combate, antipáticos soldados riem cinicamente da desgraça dos afegãos, demonstrando total insensibilidade.
Essa denúncia, feita justamente pelo país que inventou o conceito de guerra cirúrgica, só pode ser um sarcasmo pré-meditado.
A mensagem do filme é clara. Ela diz: “Armamos os fundamentalistas, pois eles foram necessários para combater o exército vermelho. Naquele momento essa ação contribuiu com a democracia, infelizmente perdemos o controle sobre esses grupos”.
O que não deixa de ser uma verdade, mas, chamar a realpolitik contemporânea de luta pela liberdade universal já é ume exagero. Aliás, em outra cena, surge novo vidente para alertar que, em um futuro próximo, aqueles mulçumanos gritando o nome de Deus seriam um problema para a América.
Teleologia: o islamismo estaria pré-determinado a se voltar contra o “Ocidente”. A América não teria participação nenhuma nesse processo, esqueça-se a proteção a Israel, suas pretensões geopolíticas e a insaciável sede de petróleo.
Alguns momentos da narrativa deslizam para a pieguice explícita, quando Charlie Wilson visita o campo de refugiados no Paquistão, comovendo-se com a miséria local. Cabe questionar a possível reação desse humanitário político perante a destruição que sua democracia promoveu no Vietnã.
Em suma, o que Jogos de Poder esclarece é a legitimidade da espionagem, o direito dos Estados Unidos interferir de forma direta ou não na vida de outros países. Desde que estejam no sentido contrário do bem comum, que só por acaso coincide com seus interesses particulares.
Em um dos piores momentos do filme, Charlie Wilson confessa para sua assistente puxa-saco seu amor pela América. Os olhos da garota (bem bonitinha por sinal) lacrimejam e ela transparece toda a admiração pelo seu chefe. Alguém menos acrítico diria:
“Então você se apaixonou pela América em função da possibilidade de se manipular os negros nas eleições em proveito de suas pretensões particulares?”
Charlie Wilson, com seu maneirismo típico diria: “Sir, Woman”.
Vindo de um apreciador de álcool, cocaína e strippers, há mesmo certa coerência. Como eu havia dito, Charlie Wilson é um cara legal.
Pelo menos para a Era Reagan.
Cotação: Bom
A possibilidade de um desfecho desfavorável no Iraque tem preocupado largos setores da sociedade americana, da população leiga aos políticos, dos militares nacionalistas a intelectualidade esclarecida.
Nos últimos tempos, várias produções hollywoodianas têm abordado esse tema, com maior ou menor habilidade. Mike Nichols é um cineasta crescido e, supõe-se, ele sabe o que está fazendo. Ora, que Nichols siga a corrente política que bem entender, mas em sua idade a ingenuidade é algo que não cai bem.
Em Jogos de Poder (tradução idiota) temos um genuíno exemplar da direita americana. A projeção nos surpreende desde o começo, quando o nome de Charles Wilson aparece pintado nas cores azul e vermelha, projetado, em seguida, sobre uma bandeira americana.
Como narrativa conservadora, o filme possui uma visão teleológica e facistóide da história. No decorrer de uns 90 minutos somos convencidos do argumento de que aos Estados Unidos cabe o direito de ditar o curso do mundo. Em começos dos anos oitenta a União Soviética invadiu o Afeganistão, iniciava-se um conflito de forças desigual, no qual a população do país invadido tentava, de forma desesperada, resistir ao avanço do exército vermelho
Em Houston, uma socialite, com dons de profetiza, enxergou que essa era a possibilidade da democracia americana derrotar o império comunista. Ela sugere ao congressista Charlie Wilson que intensifique o auxílio bélico ao Afeganistão, com intuito de superaquecer os gastos soviéticos, levando-os a bancarrota. Concepção voluntarista da história, na qual duas pessoas puderam decidir os acontecimentos mais marcantes do último quartel do século XX.
Em última análise, o que se prescreve é que o império soviético estava pré-determinado à falência, o que revela um desconhecimento da dinâmica interna dessa potência. A experiência socialista foi encerrada unicamente porque um congressista, apreciador de bebidas, cocaína e mulheres (até que ele é um cara legal), concluiu que caberia ao governo americano a missão de salvar os afegãos.
Sim, trata-se de uma salvação. Pois o cruel Império Soviético invadiu o Afeganistão. Pois o cruel Império Soviético entrou em uma guerra desigual, usando modernas tecnologias contra rifles ultrapassados. Pois o cruel Império Soviético atirou contra a população civil, destruiu suas casas e torturou pessoas indefesas, aleijando mulheres e crianças. Como o exército soviético é cruel. A democracia americana jamais cometeria tais deslizes.
As cenas do exército vermelho são caricatas, resquícios da propaganda da Guerra Fria. Em um momento, a câmera mostra a perspectiva das armas dos helicópteros russos que atiram contra os civis, a música de fundo é um hino soviético. Em outra cena, antes de partir para o combate, antipáticos soldados riem cinicamente da desgraça dos afegãos, demonstrando total insensibilidade.
Essa denúncia, feita justamente pelo país que inventou o conceito de guerra cirúrgica, só pode ser um sarcasmo pré-meditado.
A mensagem do filme é clara. Ela diz: “Armamos os fundamentalistas, pois eles foram necessários para combater o exército vermelho. Naquele momento essa ação contribuiu com a democracia, infelizmente perdemos o controle sobre esses grupos”.
O que não deixa de ser uma verdade, mas, chamar a realpolitik contemporânea de luta pela liberdade universal já é ume exagero. Aliás, em outra cena, surge novo vidente para alertar que, em um futuro próximo, aqueles mulçumanos gritando o nome de Deus seriam um problema para a América.
Teleologia: o islamismo estaria pré-determinado a se voltar contra o “Ocidente”. A América não teria participação nenhuma nesse processo, esqueça-se a proteção a Israel, suas pretensões geopolíticas e a insaciável sede de petróleo.
Alguns momentos da narrativa deslizam para a pieguice explícita, quando Charlie Wilson visita o campo de refugiados no Paquistão, comovendo-se com a miséria local. Cabe questionar a possível reação desse humanitário político perante a destruição que sua democracia promoveu no Vietnã.
Em suma, o que Jogos de Poder esclarece é a legitimidade da espionagem, o direito dos Estados Unidos interferir de forma direta ou não na vida de outros países. Desde que estejam no sentido contrário do bem comum, que só por acaso coincide com seus interesses particulares.
Em um dos piores momentos do filme, Charlie Wilson confessa para sua assistente puxa-saco seu amor pela América. Os olhos da garota (bem bonitinha por sinal) lacrimejam e ela transparece toda a admiração pelo seu chefe. Alguém menos acrítico diria:
“Então você se apaixonou pela América em função da possibilidade de se manipular os negros nas eleições em proveito de suas pretensões particulares?”
Charlie Wilson, com seu maneirismo típico diria: “Sir, Woman”.
Vindo de um apreciador de álcool, cocaína e strippers, há mesmo certa coerência. Como eu havia dito, Charlie Wilson é um cara legal.
Pelo menos para a Era Reagan.
Cotação: Bom
Pefume
Perfume – a história de um assassino (Perfume: The Story of a Murderer), 2006. Alemanha/Espanha/França. De Tom Tykwer.
O filme se passa na primeira metade do século XVIII, por isso há vários anacronismos que são intoleráveis. Alguns personagens agem como se estivessem em um momento pós-freudiano, ao tentar “entrar na mente do assassino”. Há vários termos que simplesmente inexistiriam naquele momento, a própria noção de perversão sexual, que uma personagem insinua em um dado momento, é incompatível com aquele período.
No século XVIII não havia legistas para certificar se as vítimas foram estupradas. Pelo amor de Deus! Autópsias e dissecações ainda eram um tabu... que dirá a medicina legal.
Porém é verdade que qualquer filme que não seja ambientado no presente ou num passado próximo será em certa medida anacrônico. Aliás, o cinema não tem que ter nenhum compromisso com a verossimilhança histórica, a MENOS que essa desobrigação se torne um problema para o roteiro ou a direção.
É o que ocorre em Perfume, na segunda metade da projeção a trama se desmorona completamente. É um filme de serial killer, e pronto... aquela sugestão sexual típica, aquele jogo de gato e rato, aquela identificação com o assassino, aquela ambigüidade moral muito artificial. A única diferença é que é no século XVIII.
A primeira metade do filme é indiscutivelmente superior. Vemos como o nascimento e o crescimento do jovem Jean-Baptiste Grenouille, um órfão que possui um sentido de olfato muito apurado. Sua intenção é conhecer os aromas e depois conseguir perenizá-los através de técnicas de perfumaria. É interessante observarmos como o mundo se revela diferente para o personagem, pois ao contrário da maioria dos seres humanos não é a visão seu sentido prioritário.
Ele é um maldito, sua presença nunca é bem quista e seu afastamento sempre deixa seqüelas desagradáveis. O jovem Genouille é uma anomalia entre os homens... mas isso não o traz infelicidade, pois o que ele procura é exatamente o singular, o etéreo. A temática do filme é interessante, até a narrativa centrar-se no enfoque dos assassinatos cometido pelo jovem perfumista.
É uma pena que as atitudes de alguns personagens não sejam coerentes com a França setecentista, pois os cenários foram muito bem produzidos. A precariedade das remanescentes construções medievais, em um momento de explosão urbana, é convincente. Há uma cena em que a câmera focaliza os barcos com os pescadores e, em seguida, faz um movimento vertical para cima, mostrando as pontes repletas de habitações. Esse apuro revela uma direção de arte bem entendida com a proposta do filme, causar um estranhamento no expectador.
Os figurinos também estão satisfatórios, drapeados usados pelos pobres sendo contrapostos às roupas ajustadas especialmente para os nobres. Uma maneira sutil e eficiente de mostrar as diferenças sociais no século XVIII.
Perfume é um filme com acertos e muito mais desacertos. Embora com discussões interessantes, sua pretensa complexidade acaba desmascarada pela insistência em se tornar um trilher de assassinos... uma história de bandido e mocinho...
Vamos ser justos, o filme tem seus bons momentos, ele não chega a cair, mas que dá uma escorregada, vexatória e irrecuperável, isso dá!
Cotação: fraco
O filme se passa na primeira metade do século XVIII, por isso há vários anacronismos que são intoleráveis. Alguns personagens agem como se estivessem em um momento pós-freudiano, ao tentar “entrar na mente do assassino”. Há vários termos que simplesmente inexistiriam naquele momento, a própria noção de perversão sexual, que uma personagem insinua em um dado momento, é incompatível com aquele período.
No século XVIII não havia legistas para certificar se as vítimas foram estupradas. Pelo amor de Deus! Autópsias e dissecações ainda eram um tabu... que dirá a medicina legal.
Porém é verdade que qualquer filme que não seja ambientado no presente ou num passado próximo será em certa medida anacrônico. Aliás, o cinema não tem que ter nenhum compromisso com a verossimilhança histórica, a MENOS que essa desobrigação se torne um problema para o roteiro ou a direção.
É o que ocorre em Perfume, na segunda metade da projeção a trama se desmorona completamente. É um filme de serial killer, e pronto... aquela sugestão sexual típica, aquele jogo de gato e rato, aquela identificação com o assassino, aquela ambigüidade moral muito artificial. A única diferença é que é no século XVIII.
A primeira metade do filme é indiscutivelmente superior. Vemos como o nascimento e o crescimento do jovem Jean-Baptiste Grenouille, um órfão que possui um sentido de olfato muito apurado. Sua intenção é conhecer os aromas e depois conseguir perenizá-los através de técnicas de perfumaria. É interessante observarmos como o mundo se revela diferente para o personagem, pois ao contrário da maioria dos seres humanos não é a visão seu sentido prioritário.
Ele é um maldito, sua presença nunca é bem quista e seu afastamento sempre deixa seqüelas desagradáveis. O jovem Genouille é uma anomalia entre os homens... mas isso não o traz infelicidade, pois o que ele procura é exatamente o singular, o etéreo. A temática do filme é interessante, até a narrativa centrar-se no enfoque dos assassinatos cometido pelo jovem perfumista.
É uma pena que as atitudes de alguns personagens não sejam coerentes com a França setecentista, pois os cenários foram muito bem produzidos. A precariedade das remanescentes construções medievais, em um momento de explosão urbana, é convincente. Há uma cena em que a câmera focaliza os barcos com os pescadores e, em seguida, faz um movimento vertical para cima, mostrando as pontes repletas de habitações. Esse apuro revela uma direção de arte bem entendida com a proposta do filme, causar um estranhamento no expectador.
Os figurinos também estão satisfatórios, drapeados usados pelos pobres sendo contrapostos às roupas ajustadas especialmente para os nobres. Uma maneira sutil e eficiente de mostrar as diferenças sociais no século XVIII.
Perfume é um filme com acertos e muito mais desacertos. Embora com discussões interessantes, sua pretensa complexidade acaba desmascarada pela insistência em se tornar um trilher de assassinos... uma história de bandido e mocinho...
Vamos ser justos, o filme tem seus bons momentos, ele não chega a cair, mas que dá uma escorregada, vexatória e irrecuperável, isso dá!
Cotação: fraco
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