segunda-feira, 23 de junho de 2025

Irmão, Irmã

Irmão, irmã. Ani imoto. De Mikio Naruse, 1953.

O filme aborda as difíceis relações dentro de uma família camponesa enfatizando o embate entre três irmãos: Mon, a moça mais velha que acaba se envolvendo com a prostituição, San, a filha mais nova que tenta um casamento e Inokichi, o rapaz mais velho que almeja ser o polo disciplinador da família. Seus pais mais idosos operam como observadores passivos, incapazes de coordenar as tensões internas.

Um simbolismo recorrente é a contraposição entre a água e as pedras, sugerindo a tensão entre permanência e transformação. A cena inicial é um resumo visual da narrativa. As pedras simbolizam os valores tradicionais e masculinos, a ordem patriarcal resistente à transformação: o pai decadente e nostálgico e o filho bruto e hipócrita. O riacho, por sua vez, é a mudança, o elemento que flui e precisa se adaptar, tratando-se da representação do anseio feminino[DR1]  pela autonomia.

Outra imagem visual forte é a barragem, modificando a relação dos barqueiros e dos pescadores com a água. Tais imagens são sintéticas. Naruse resume bem o papel da personagem feminina: em um mundo rígido, terroso, ela precisa encontrar a fluidez. A correlação entre esses dois elementos, firmeza e flexibilidade, pode fornecer a resposta para a fundação de um Japão moderno que não faça a tábula rasa do passado.

O pano de fundo sociológico enquadra a vida das pessoas comuns. No cinema japonês esse tipo de melodrama é reconhecido como Shōshimin-eiga, constituindo-se uma variação dos filmes Gendai-geki: dramas urbanos e rurais contemporâneos. Os embates internos são duros e relevam a fragmentação da ordem familiar, representação da própria sociedade japonesa do pós-guerra.

Como expressão cinematográfica o filme revela uma força quase teatral, não economiza nas expressões dramáticas para culminar na agressão de Inokichi a Mon. San é a possibilidade de equilíbrio, uma operação feita, no entanto, com sacrifícios individuais. Ani imoto constitui-se assim, um exemplar precioso do cinema de Mikio Naruse e do esforço da cinematografia nipônica em se autorrepresentar.

Cotação: ☕☕☕☕☕

sexta-feira, 20 de junho de 2025

A chegada do outono

A chegada do outono. Aki tachinu. De Mikio Naruse, 1960.

Mikio Naruse (1906–1969) é um dos grandes nomes do cinema clássico japonês, cuja filmografia atravessa diferentes momentos da história do Japão contemporâneo. Em A chegada do outono, acompanhamos o processo de amadurecimento de Hideo, uma criança que, após ser abandonada pela mãe – que foge com um cliente da pousada onde trabalhava –, passa a viver com os tios em Tóquio.

O filme articula-se ao drama familiar, temática recorrente na obra de Naruse, mas também se aproxima de reflexões sobre a infância – uma preocupação presente tanto no Cinema clássico quanto na Nouvelle Vague japonesa. A narrativa busca representar como um menino de dez anos reelabora suas experiências ao se deslocar do interior para a capital. Hideo carrega o peso do estigma social da pobreza e da rejeição materna, sentindo-se um fardo para os tios. Apesar das dificuldades, tenta se adaptar à nova vida, desenvolvendo uma amizade com Junko, filha da proprietária da pensão onde sua mãe trabalhava.

O contexto social retratado no filme é o de um Japão em transformação, quase duas décadas após o fim da Segunda Guerra. A cidade de Tóquio surge como um espaço de descobertas, mas ainda atravessado por fortes moralismos. A família de Hideo reflete os conflitos geracionais de uma sociedade em mudança: seus primos mais velhos buscam se afastar do controle paterno, o que intensifica ainda mais as tensões dentro da casa.

O filme também revela as contradições de uma sociedade que se moderniza, mas preserva estruturas tradicionais. A figura da mulher fora dos modelos vigentes aparece como uma espécie de ameaça silenciosa às convenções. Prova disso é a situação da mãe de Junko, que vive como “segunda esposa”: uma relação extraconjugal marginalizada, mas que era mais comum na realidade do que os discursos conservadores admitiam.

A fantasia de Junko de que Hideo se tornasse seu irmão reforça o seu próprio sentimento de abandono da figura paterna. A amizade dos dois é o ponto alto do filme revelando o a dialética entre o desabrochar e o permanecer. Eles percorrem Tóquio descobrindo-se como amigos e como rejeitados. A cidade aparece como um substituto para as lacunas familiares.

A fotografia em preto e branco, marcada pela luminosidade dos dias de verão, privilegia espaços abertos, planos gerais e uma notável profundidade de campo. Embora trate de uma temática melancólica, o filme capta com sensibilidade o otimismo resiliente da infância, sem deixar de lado os momentos de tristeza e desconforto que marcam a trajetória de Hideo. O uso do cinemascope é particularmente eficaz: ao mesmo tempo em que estabelece uma certa distância confortável para o espectador, também permite uma imersão empática na vivência do garoto, reforçando sua condição de pequeno dentro da imensidão urbana.

Ao longo do filme, Hideo se empenha em capturar um besouro-rinoceronte para presentear Junko – um gesto que carrega o desejo de manter viva sua identidade e seus vínculos com o mundo rural de onde veio. No entanto, seus esforços se perdem no ritmo incessante da vida na cidade, produzindo um sentimento agridoce que perpassa toda a narrativa.

Assim, A chegada do outono não é apenas um retrato da infância, mas também uma delicada crônica sobre os afetos, as rupturas familiares e as contradições de um Japão em processo de transformação.

Cotação: ☕☕☕☕☕

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Sundelbolong

Sundelbolong. De Sisworo Gautama Putra, 1981.

Um dos maiores desafios na construção de uma sensibilidade cinéfila é a ruptura com os padrões estéticos norte-americanos, que são, via de regra, formativos. Assistindo a este clássico do cinema indonésio, somos capazes de perceber como as conexões com o chamado sul global são reais. A tendência inicial seria tomar o filme como de mau gosto, fruto de um olhar treinado pelo viés estético ocidental. No entanto, em vários sentidos, a película lembra os próprios esforços brasileiros na construção de uma cinematografia própria.

O filme aborda a história de uma ex-prostituta que foi estuprada a mando de sua antiga empregadora. Alissa desfrutava de sua vida de recém-casada, aguardando o retorno de seu marido de uma viagem, quando foi atacada. Ela não resiste ao julgamento moral de uma sociedade conservadora e crítica, acabando por se suicidar. Seu espírito retorna como Sundel bolong, uma criatura do folclore indonésio, resultado do sincretismo entre tradições asiáticas e a religião islâmica.

A construção do filme como narrativa de terror funciona, embora faça incursões no drama e, ocasionalmente, na comédia. A noção de um gênero cinematográfico rigidamente organizado em categorias estanques nem sempre é uma preocupação das tradições cinematográficas marginais. Assim, tornam-se evidentes as proximidades com os filmes de José Mojica Marins, especialmente no universo do Zé do Caixão.

A produção transpira improvisação e ausência do apuro técnico típico dos grandes estúdios, sobretudo nas maquiagens, que revelam rostos realistas e cheios de imperfeições – algo muito diferente dos rostos assépticos de Hollywood. As aparições e os tormentos provocados pela criatura são engenhosos, com soluções típicas do horror de alto nível, embora haja exageros, como os raios disparados por Alissa nos momentos de enfrentamento com um feiticeiro.

O filme é revelador de como as representações dos fantasmas asiáticos foram mescladas às tradições religiosas islâmicas. A imagem do fantasma japonês – como a personagem Sadako, de Ringu, por exemplo – é facilmente identificável. Nesse sentido, Sundelbolong é mais uma porta de entrada para o cinema oriental.

A assombração da mulher é o elemento angular do filme. No Oriente, essas entidades são chamadas de onryō, espíritos vingativos femininos. A dor e o sofrimento inviabilizam o descanso dessas almas, levando-as a perpetuar a violência contra os vivos, criando outras vítimas e alimentando o ciclo vicioso. No filme, tais imagens são contrapostas por religiosos islâmicos, que as combatem como forças demoníacas — seres perdidos que precisam da proteção e do perdão de Alá. Tal elemento confere ao filme uma complexidade narrativa, embora a naturalidade com que os personagens aceitam a Sundel bolong seja um tanto desconcertante. Tudo se acomoda fácil demais, sem as ambivalências psicológicas comuns ao gênero.

[Olha aí a bisavó da Samara...]

Ainda assim, o filme não se limita a ser uma curiosidade cultural, possuindo uma organização autônoma, com simbolismos próprios. Merece destaque a contraposição entre Alissa e Cinta, duas versões da entidade Sundel bolong, sendo uma maligna e a outra benigna. A narrativa é concisa, apesar de não ser um filme curto, e apresenta um desenvolvimento linear coerente, embora marcado por interpretações melodramáticas, próprias das telenovelas da época. Apesar de apresentar algumas inconsistências narrativas e derrapagens nas situações cômicas, o conjunto é funcional. Surpreende, inclusive, o desfecho sóbrio, que evidencia as conexões da cultura local com o islamismo.

O filme, no entanto, não deixa de dialogar com o cinema ocidental, parecendo inspirar-se no horror norte-americano, inclusive com elementos do slasher. Sundelbolong foi um dos responsáveis pela consolidação da fama do horror oriental e contou com a presença da scream queen indonésia, a atriz Suzzanna, uma mulher cuja vida esteve sempre envolta em mistérios.

Enfim, Sundelbolong é um clássico cult que, quando analisado sem o viés ocidentalizante, revela-se um achado precioso.

Cotação: ☕☕☕☕

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Pesadelo Perfumado

Pesadelo Perfumado. Perfumed Nightmare. De Kidlat Tahimik, 1977.

Importante referência do cinema pós-colonial, Pesadelo Perfumado foi roteirizado, dirigido e editado de forma quase “artesanal” pelo cineasta filipino Kidlat Tahimik. Em muitos sentidos, sua proposta se aproxima da de Glauber Rocha e do Cinema Novo brasileiro — uma versão local do anticolonialismo estético.

Mas há nuances significativas entre eles. Pesadelo Perfumado explora com mais ênfase o humor, adicionando elementos de nonsense e absurdo. O filme acompanha um personagem que vive na zona rural de uma aldeia filipina, fascinado pela exploração espacial norte-americana e entusiasta da tecnologia moderna.

Kidlat tem então a oportunidade de viajar para a França, onde conhece o chamado mundo civilizado. Inicialmente, mostra-se fascinado pela tecnologia, por uma sociedade que entrega resultados concretos — uma sociedade com “muitas pontes”, como ele repete, empolgado e, por vezes, atônito.

A metáfora das pontes é central para entender o filme. Trata-se de uma ponte ao mesmo tempo frágil e resistente, que conecta sua aldeia ao resto do mundo. Ao mesmo tempo, Kidlat deseja ser, ele próprio, essa ponte entre seu universo local e o mundo moderno. Lança mão de diversos elementos simbólicos de conexão — correspondências, transmissões radiofônicas, automóveis —, mas seu real desejo é atravessar essa ponte e habitar o outro lado.

Superada a euforia inicial, o personagem se depara com as mazelas do mundo capitalista: desperdício, individualismo, obsolescência programada e racionalidade instrumental. Nesse processo, começa a reconsiderar a equação entre arcaico e moderno, questionando se, afinal, não seriam os civilizados aqueles que precisam atravessar a ponte em direção aos saberes e valores que perderam.

Alternando entre humor e um viés etnográfico — sobretudo no arco inicial da aldeia —, o filme constrói um discurso potente e contundente. É uma expressão vibrante do cinema não hegemônico da década de 1970.

A fotografia é assumidamente experimental, tensionando constantemente a fronteira entre registro antropológico e intervenção subjetiva, de forma a questionar a própria ontologia da imagem. Permanecem questões em aberto: até que ponto o colonizado pode representar-se sem ser atravessado pelas lentes e olhares do colonizador? É possível mostrar a alteridade sem convertê-la em fetiche visual, domesticada sob o selo do exotismo?

O filme suscita essas reflexões, mas mantém, ao mesmo tempo, uma potência narrativa capaz de envolver o espectador na trajetória de um personagem ingênuo, mas arguto, que busca — metaforicamente — construir pontes entre a cultura ocidental e o mundo não hegemônico. Trata-se de um filme-potência: entretém, provoca e produz o desconforto necessário para nos arrancar da McDonaldização da sétima arte.

Poucas experiências cinematográficas são tão cativantes quanto acompanhar a trajetória de um sonhador filipino tentando atravessar, literal e simbolicamente, a ponte entre sua aldeia e o mundo ocidental. Assim, Pesadelo Perfumado não é apenas um filme sobre a Filipinas, mas sobre o contraponto entre a sedutora promessa do progresso e a indiferença do capitalismo global.

Cotação: ☕☕☕☕☕

segunda-feira, 9 de junho de 2025

A Filha do General

A Filha do General. The General's Daughter. De Simon West, 1999.

Um thriller policial com ação e todos os elementos característicos do cinema dos anos 1990. Conhecido por seus filmes de ação, Simon West aposta novamente em personagens durões e outsiders. Aqui, temos John Travolta como um investigador da polícia militar, designado para elucidar o assassinato de uma oficial do exército: a capitã Elizabeth Campbell, encontrada amarrada e, possivelmente, estuprada.

Elizabeth é filha de um general prestigiado e em ascensão política, cotado inclusive para a presidência dos Estados Unidos, adicionando, assim, mais tensão e urgência à narrativa. A partir desse ponto, a misoginia das Forças Armadas americanas começa a se revelar.

Se a premissa é promissora, seu desenvolvimento deixa a desejar. O filme até funciona, mas exige boa vontade do espectador. Travolta, com seu estilo canastrão hipertrofiado, encarna bem o papel: um sargento e investigador que não segue as regras. A condição de investigador militar parece lhe conferir certa liberdade para burlar a hierarquia, mas isso nem sempre soa verossímil – como na cena em que prende um coronel sem grandes consequências. É um exagero típico do gênero, mas que enfraquece a credibilidade da trama.

Essa liberdade narrativa em torno do herói determinado a se contrapor ao sistema não é muito realista. Investigadores militares, especialmente de baixa patente, não teriam tanto autonomia para interrogar ou prender oficiais superiores. O filme conta com a suspensão de descrença da audiência média. Esse tipo de personagem não é exatamente os anti-heróis que vemos hoje, mas é o mais próximo que se tinha na época; eram frequentes no gênero policial (vide Máquina Mortífera).

O filme busca criar um clima de tensão crescente. A pressão sobre os investigadores e o receio de que o caso escape da jurisdição militar para cair nas mãos do FBI são bem traduzidos pela fotografia: com baixa saturação e textura granulada, a imagem transmite a atmosfera insuportável em que vivem os personagens. Estão sempre transpirando e seus rostos molhados e ofegantes reforçam a sensação de calor opressivo, como se a própria instituição estivesse febril diante da possibilidade de escândalo.

Porém, as cenas de ação são insuficientes para um público apreciador de embates mais diretos. As rotinas de investigação não convencem plenamente e, para contornar isso, o roteiro recorre a situações forçadas – como a presença de uma investigadora civil desguarnecida em um cenário hostil, exposta aos militares. O médio oficialato também é representado de forma apequenada, sem se manifestar como contraponto adequado ao sargento durão de Travolta.

A temática é relevante, especialmente por abordar a posição delicada das mulheres no ambiente militar. Mas, como era comum nos anos 1990, elas aparecem pouco e quase sempre como coadjuvantes ou vítimas. Não são totalmente passivas, mas continuam presas a estruturas que não controlam. Toda a agência cabe ao personagem de Travolta, que sai metendo o pé em todas as portas até encontrar, meio ao acaso, os verdadeiros culpados.

Para o espectador atual, o filme tem valor limitado, mas serve como peça de época. É um exemplar de um momento em que o “cinemão” buscava narrativas mais adultas, ainda distante da era dos super-heróis e do predomínio dos efeitos visuais. De certo modo, o filme oferece um mergulho no universo militar norte-americano, com tintas políticas, mas termina mirando na denúncia institucional e acertando numa ferida mais íntima: a figura paterna ausente e a solidão traumática da filha do general. O desfecho é triste, pouco redentor, mas coerente com esse cenário em que as Forças Armadas dos Estados Unidos tentavam tornar-se mais inclusivas.

Cotação: ☕☕☕

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Heróis do Oriente

Heróis do Oriente. Zhonghua Zhangfu. De Lau Kar-leung, 1978.

Filme interessante e marcante do cinema chinês, lançado em um período em que as artes marciais estavam no auge do prestígio internacional. Heróis do Oriente oferece mais do que apenas pancadaria estilizada: parte de uma premissa curiosa e criativa, na qual os descompassos entre um jovem casal, o marido chinês e a esposa japonesa, são traduzidos em embates físicos, transformando a convivência conjugal em uma disputa sobre qual estilo de luta seria mais formidável: o kung fu chinês ou as artes marciais japonesas.

Inicialmente, a história é particularmente cativante ao usar as batalhas entre o casal como metáfora para os ajustes e atritos naturais dos recém-casados. O entusiasmo da personagem Yumiko, interpretada por Yuka Mizuno, contrasta com a altivez e teimosia de Ho Tao, vivido por Gordon Liu, que se recusa a fazer concessões à esposa ou reconhecer o valor do conhecimento que ela traz de sua cultura. Esses duelos domésticos bem-humorados evidenciam não apenas as tensões históricas entre Japão e China, mas os próprios desafios universais do casamento.

A maneira como eles se digladiam pela casa dá o tom da obra, deixando os serviçais e os parentes apreensivos. O ajudante de Ho Tao, por exemplo, sofre particularmente com isso: suas tentativas de separar as brigas acabam rendendo-lhe uma série de golpes involuntários, tanto de karatê quanto de kung fu. Esses momentos contribuem para o tom cômico do filme, mas também reforçam como os descompassos dos pombinhos.

Derrotada em todas as modalidades de kung fu apresentadas pelo marido, Yumiko foge humilhada para o Japão. Lá, retorna com um admirador e um grupo de mestres japoneses, cada um representante de uma arte marcial distinta – karatê, judô, kendo, entre outras – com o objetivo claro de provar a superioridade técnica e filosófica das tradições marciais nipônicas. A trama então se desloca para um desfile de confrontos altamente coreografados, cuidadosamente diferenciados por estilo, armamento e ritual. Nesse momento o filme perde um pouco do brilho, pois Yumiko praticamente desaparece.

Embora o filme assuma um tom pacifista, promovendo o respeito e o intercâmbio cultural, é inegável que sua narrativa pende para um viés pró-chinês. Ho Tao, mesmo descrito como um lutador apenas razoável, derrota todos os mestres japoneses que chegam para desafiá-lo. A mensagem, por vezes sutil, por vezes cômica, é direta: cuidado, mestres japoneses! Qualquer zé-ninguém nas esquinas de Xangai pode dar-lhes uns sopapos com uma boa dose de kung fu tradicional.

Não fica claro o período em que a trama se passa – talvez já no século XX. O pai de Yumiko usa ternos ocidentais, reforçando sua posição como mediador das duas culturas. Os navios apresentados nas cenas de desembarque são modernos, o que evidencia uma certa liberdade temporal por parte da produção. Não se sabe se faltaram recursos ou se simplesmente não houve preocupação em recriar embarcações da época. De todo modo, a ambientação do filme é abertamente caricata: os cenários são teatralizados, mas eficazes para estabelecer a contraposição visual entre o universo chinês e o japonês.

Essa distinção cultural é reforçada também pela fotografia. O filme aposta em uma paleta de cores saturadas e contrastes simbólicos. As cenas ambientadas na China são mais quentes, densas e urbanas, com cores vibrantes e movimento constante. Já o Japão é retratado com tons mais frios, claros e compostos – transmitindo uma sensação de ordem, silêncio e espiritualidade zen. Essa diferença cromática reforça, visualmente, o contraste entre dois mundos culturais distintos que precisam aprender a coexistir.

Produzido pela lendária Shaw Brothers Studio, Heróis do Oriente carrega muitas das marcas estilísticas que consagraram o estúdio como um dos maiores expoentes do cinema de artes marciais de Hong Kong entre as décadas de 1960 e 1980. Conhecida por seus cenários artificiais, figurinos exuberantes e abordagem teatral, a Shaw Brothers priorizava a clareza coreográfica e o impacto visual sobre o realismo histórico. Em vez de ambientações fiéis ao passado, seus filmes criavam espaços simbólicos onde os combates podiam ser lidos como metáforas culturais ou morais. Essa estética, claramente presente em Zhonghua Zhangfu, contribui para o caráter atemporal da narrativa e reforça o contraste visual e ideológico entre as tradições marciais da China e do Japão.

Logo no início do filme, já se percebe essa oposição: os chineses estranham as vestes brancas da noiva japonesa, que destoam dos trajes pretos do noivo e de seus convidados. A sequência é um microcosmo visual do que o filme desenvolverá ao longo de sua narrativa: uma dança constante entre estranhamento e tentativa de assimilação. Mas Yumiko está em desvantagem, pois o seu horizonte é da capitulação.

A primeira parte do filme é mais rica em termos de desenvolvimento narrativo, com um sabor de comédia conjugal. Já a segunda metade assume um tom quase instrucional, com demonstrações técnicas de combates, dissipando um pouco do frescor da obra. Além disso, os conflitos matrimoniais não chegam a ser plenamente resolvidos: Yumiko previsivelmente faz concessões ao retornar com trajes chineses, mas essa mudança é mais simbólica do que uma efetiva reconciliação.

Trata-se, portanto, de uma comédia divertida, engenhosa em sua premissa, mas narrativamente limitada. E, claro, não tem vergonha de aplicar um simbólico 7 a 0 para os chineses – com direito a reverência final dos derrotados. Para fãs do gênero, é uma pequena joia com sabor nacionalista e bom humor coreografado.

Cotação: ☕☕☕☕