quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Violência gratuita


Violência gratuita (Funny Games U.S.), 2008. EUA / França / Inglaterra / Alemanha / Itália / Áustria. De Michael Haneke

Crianças têm medo de Bicho Papão. A inverossimilhança do monstro faz todo o sentido para elas. Bicho Papão nada mais é que a soma dos medos infantis: ele ataca a noite quando estão todos dormindo, ele fica debaixo da cama, ele se esconde atrás da porta, os barulhos noctívagos são de sua autoria.

Um dia o Bicho Papão é desmascarado, não há nada debaixo da cama ou atrás da porta, o escuro não é necessariamente uma ameaça e os barulhos não passam de móveis se dilatando. Uma vez adultos, aprendemos a ter outros receios: seqüestro relâmpago, assalto a mão armada, o estuprador escondido na noite, o ensandecido viciado em drogas.

Violência gratuita não funciona comigo. Lamento, mas dois jovens brancos de alta classe, com roupa de golfe e um ar esnobe não são uma ameaça para mim. Disso eu sei.

Gosto de imaginar um travesti vendo esse filme e rindo, pensando: “navalha na cara dos dois, na primeira oportunidade”.

Gosto de imaginar uma prostituta vendo esse filme com um ar meditativo: “já tive clientes piores”.

Gosto de imaginar um detetive da polícia investigativa (com um bigodinho aparado e uma camisa florida suja com molho de almôndegas) assistindo esse filme meio desconcertado: “quebrava a cara dos dois e depois subornava”.

Gosto de imaginar um burguês que vive em condomínio fechado e anda em carro blindado vendo esse filme: “meu Deus! Isso é real! Pode acontecer a qualquer momento!”.

Lembramos que Funny Games U.S é remake de um trabalho feito em 1989 pelo próprio Haneke, originalmente ambientado na Europa. Parece-me crível o entendimento de que as altas classes européias temem que, um certo dia, seus lindos jardins sejam invadidos pela barbárie. É o que acontece com família de Ann, George e o pequeno Georgie, que em certa manhã recebem a visita de dois belos e mortais jovens, interessados em submeter seus anfitriões a degradantes tratamentos.

Se os rapazes fossem negros, com sotaques africano ou jamaicano, a crítica social seria evidente demais. Não é isto que o diretor pretende, uma de suas intenções é abordar a insanidade do terror e da tortura. A maldade pura, desvinculada de qualquer contexto. O bom burguês teme que seus privilégios um dia venham ser cobrados (aqui já é minha interpretação). Nesse sentido, teríamos uma radicalização de Edukators, filme que também retrata o uso de estratégias para aterrorizar as classes ricas (mas nesse último caso, temos motivações políticas expressas claramente).



[Imagem acima: o belo Paul, por traz de sua aparência serena, esconde o torturador de burgueses]

Vislumbra-se o fim de qualquer ilusão de segurança ou estabilidade; o que os refinados jovens denunciam é que não há nenhuma ética aplicável ao universo das classes altas. Elas podem perecer ad infinitum e não serão notadas, pois estão tão escondidas em seus bairros, que passam despercebidas. Não há possibilidade de vicinalidade em uma região de mansões, pois qualquer um pode esconder em suas proximidades um assassino e quando o horror eclode, os “privilegiados” se revelam impotentes.

Paul e Peter, os intrusos, são os que detêm o controle da narrativa cinematográfica e o poder de decidir quem vive ou morre. Mas “Todos devem morrer”, concluem sadicamente. A metalinguagem constante é o verdadeiro desafio ao telespectador, reiteradamente o cineasta nos engana, o resultado do filme já está colocado desde o início. Mas por que torcer pela família aprisionada? Realmente há como se identificar com aquele cenário de classe média alta? Será que eles são tão inocentes assim? Não sei, Caché (outro trabalho de Haneke) nos mostrou a dificuldade de determinar quem é algoz e vítima.

Ao final, esse filme surge como um Bicho Papão para adultos ricos, mostrando que a narrativa pode se desprender por completo da verossimilhança, até mesmo porque o espectador insiste em se enganar que a projeção da tela é o próprio real. Cabe, portanto, uma correção ao preâmbulo desta crítica, o filme assusta ao travesti, a prostituta e ao detetive na mesma medida em que amedronta o burguês, isso porque o cinema é manipulação e nos faz assumir papéis que nos são estranhos.

O faz de conta convence exatamente por ser inverídico.

Cotação: Bom

Um comentário:

Observer Pereira disse...

Essa crítica está um lixo, mas todos temos nossos momentos de falta de inspiração...