sábado, 17 de outubro de 2009

Distrito 9


Distrito 9 (District 9), 2008. África do Sul. De Neill Blomkamp

Onde Slumdog de Danny Boyle falhou, esse filme acertou em sua totalidade. Há tempos que esperava ver um trabalho assim, uma relação entre a segregação social e a alteridade.

Quem não se lembra da cena do Independence Day em que a nave alienígena sobrevoa a troposfera? Mas os seres do espaço não vieram com intuitos de destruir a Casa Branca. Para o azar dos pobres ETs, a gigantesca máquina encalhou sobre Joanesburgo, com a tripulação enfraquecida e desidratada. O mundo parou para ver a cena, os primeiros contatos foram marcados por uma expectativa geral e até certa amistosidade.

Passado o contato inicial, as dificuldades de convivência se acentuaram. Aliens, estranhos demais para os padrões humanos, a começar pela própria aparência, parecendo-se com “camarões”, termo pejorativo para designar a nova raça. Excluídos da sociedade humana, passam a cometer pequenos crimes, a vasculhar lixos, transformam-se então, na linguagem política corrente, em um problema social.

O governo da África do Sul adota uma medida por eles muito conhecida: a segregação. Cria-se então o Distrito 9, área isolada para os extraterrenos. A partir de então a xenofobia e o antropocentrismo podem se desenvolver com maestria! Aspectos muito bem trabalhados, uma vez que o roteiro foi eficazmente desenvolvido de forma neorealista pelo diretor Neill Blomkamp (estreante em longas metragens), apadrinhado pelo Peter Jackson.

Vejo três temas bastante importantes no filme, em primeiro lugar a questão da segregação com o surgimento de guetos e favelas – prática desenvolvida pelos seres humanos em vários momentos da história. Aliás, são eles os executores, os agressores, os confinadores, enquanto os “estrangeiros” vivenciam uma situação de completa impotência. Dentro do Distrito 9 surgem redes de tráfico controlados por gangues nigerianas, essas vendem alimentos para os alienígenas, além de oferecerem prostitutas humanas, recebem em troca armas muito sofisticadas, porém inúteis, já que funcionam somente com a biologia alienígena.

Percebe-se que os invasores não são uma raça conquistadora, até porque perderam seus líderes durante o acidente que reteve a nave na terra. Agressivos mas desorganizados, são facilmente contidos pelas forças da ordem.

O segundo aspecto é o papel das companhias multinacionais, sobretudo a empresa de segurança privada MNU, interessada em dominar a tecnologia extraterrena. Essa ficção mostra exemplarmente as conseqüências da privatização das forças militares e de segurança pública, entidades capazes de manipulação, atrocidades e desrespeitos aos tratados internacionais – algo como o caso de Abu Ghraibe e outros escândalos do gênero visto no Iraque e no Afeganistão.

A situação perde o controle após um medíocre funcionário da MNU se contaminar com um fluido encontrado em um barracão do Distrito 9, ele sofre uma mutação, começando a se transformar em um “camarão”. A empresa passa a persegui-lo a fim de obter seu material genético, o que a habilitaria a dominar as poderosas armas, até então inacessíveis aos humanos.

Por fim, vale conferir como as impressões do mutante, Wikus Van De Merwe, se alteram ao longo da projeção. Seu etnocentrismo se abala ao se ver como uma criatura que ele desprezava, mas seu arraigado especismo o impede de tomar um posicionamento ético mais preciso. Evidentes as dificuldades de romper com o individualismo, sua preocupação é recuperar a forma humana, o “herói” do filme seria, em certo sentido, seu oposto, o alienígena Crhistopher, desejoso de libertar sua raça.

O caráter quase documental do filme funciona como uma muleta fornecendo as informações ao público, também confere um ar de urgência e perigo constante. Nada é previsível, pois intervenções militares em assentamentos de minorias são necessariamente conturbadas. Não há como não torcer pela derrota dos humanos que não fazem o menor esforço para integrar os ditos camarões, apesar de que as motivações desses últimos nunca ficam plenamente claras.

Um filme denso, que propõe uma série de reflexões, centrado na questão da dificuldade do homem em reconhecer o “outro”. Situação que se agrava por se passar na África do Sul, país que, por anos, defendeu o Apartheid. O desfecho do filme resolve os problemas levantados e convence, mas ele insiste em conceder apatia às massas de oprimidos, incapazes de uma mobilização política.

No término da narrativa, Wikus Van De Merwe não ampliou tanto assim seu aprendizado. Tal como os gorilas (humanos) e os camarões (aliens), ele se resigna a uma posição de espera. Nenhum aprendizado humanista é alcançado, a segregação parece provar sua eficácia, uma patologia política que os humanos ensinaram aos seus inconvenientes e indesejáveis hóspedes.

Cotação: Bom

17 de outubro de 2009

A Vida Secreta das Abelhas


A Vida Secreta das Abelhas (The Secret Life of Bees), 2008. EUA. De Gina Prince-Bythewood

A nossa relação com o cinema é engraçada. O que nos estimula a pensar sobre o cinema? Em que momento a crítica nasce? De onde vem a cinefilia? Há algum tempo que não escrevo, na verdade, minha ligação com a sétima diminuiu. Trabalho excessivo, incumbências e dissabores da vida cotidiana resultaram em idas rareadas ao cinema e, mesmo em casa, a disposição em assistir filmes se tornou menor.

Trabalhos consistentes, ou ao menos provocadores, como Watchmen, A Onda, Bastardos Inglórios e Adeus Solo não me motivaram ao exercício da escrita. Acho que ainda não era a hora do retorno ao “pensar o cinema”. Mas essa nulidade, The Secret Life of Bees, relembrou-me a importância de uma leitura do filme mais adensada.

Nada que mereça destaque nessa película: melodramas esquemáticos, aquelas histórias de teor feminista um tanto esquisitinhas. Mulheres (no geral negras) contra um mundo cruel e masculinizado, trata-se da busca de um lugar, onde as tessituras do segundo sexo possam se desenvolver em segredo.

O texto parece ter sido redigido por um estudante de psicanálise, os personagens apresentam uma estranha compulsão para a auto-análise. Buscam solucionar seus conflitos, sejam sociais, internos (da própria subjetividade) ou de relacionamentos por meio de insights inverossímeis, típicos diálogos que nunca vemos na vida real.

A obviedade dá o tom do filme, a começar pelo paralelo entre as abelhas, insetos laboriosos com comportamentos que nem os próprios apicultores entendem, e as irmãs Boatwright, negras trabalhadoras e instruídas, proprietárias de uma indústria caseira de mel na machista sociedade sulista. Pobres abelhinhas contra um mundo adverso, mas resistentes, devotas da Maria Negra, uma imagem que apareceu miraculosamente para dar esperanças aos oprimidos e às oprimidas (ênfase nessas últimas, por favor), além de ser o logotipo da fábrica.

No mais, tudo transcorre sem grandes surpresas, cada personagem tem uma função, a abelha rainha, August Boatwright (interpretada por Queen Latifah), June, uma orgulhosa zangão e a tolinha May, nas vezes de uma mera abelha operária. Destaque para a atriz Dakota Fanning, que interpreta a adolescente de 14 anos Lily Owens, uma jovem moça iniciada na milenar arte de “como os homens brancos são maus”.

É o cinema unidimensional, sem qual qualquer profundidade, com certa propensão para o dramazinho barato. Cinema feito para um nicho muito específico, fala-se do feminino, mais não da feminilidade, as próprias mulheres se definem em função do homem – odiá-los ou amá-los? E, se amá-los, como não ser desonradas por algo tão bruto e incompreensível? Para June, a grande vitória da sua trajetória foi romper com sua masculinidade, aceitando seu lugar de mulher no mundo – o que no caso significou um casamento... contradições Simone de Beauvoir, contradições...

Questões de gênero fazem mais sentido para aquele pensamento binário americano, mas no caso dos brasileiros, híbridos a todo instante, A Vida Secreta das Abelhas é enjoativo demais. Não digo “água com açúcar”, acho que “água com mel” seria uma definição mais apropriada.

E o blog retorna.

Cotação: Fraco

domingo, 7 de junho de 2009

A mulher invisível


A mulher invisível, 2009. Brasil. De Cláudio Torres

Um dos principais suportes para a projeção e apreensão do modelo ideal da mulher seria através do cinema. Ao bem da verdade, todas as artes já se preocuparam com a figura feminina, definindo seus atributos e as fontes de seus encantos, portanto esse filme tupiniquim trilha um caminho há muito conhecido.

A mulher invisível relata a trajetória do démodé Pedro que ao ser abandonado por sua esposa cria uma consorte imaginária, perfeita em sua corporeidade e personalidade, uma versão bad girl da “Amélia, a mulher de verdade”. No entanto, essa mulher de verdade não é real, mas ideal, ela vive somente no mundo etéreo masculino, já que as senhoras e senhoritas também possuem suas premissas quanto à natureza dos cabras-machos. Divorciar-se de marido é inclusive uma afirmação existencialista, um posicionamento perante à realidade, extirpando desta os elementos que não lhes interessam ou convêm. Justamente nesses encontros e desencontros de expectativas que a vida amorosa dos varões e das donzelas segue-se.

Aí temos a primeira contradição do filme, já que Vitória, essa sim real e vizinha de Pedro, aguarda durante toda da projeção o momento de entrar em cena. Mesmo sendo casada com um crápula não consegue se divorciar, como sua função é a de esperar, cabe a ela uma resignação, até que um infarto fulminante retire o obstáculo que a distanciava do seu “verdadeiro amor”, separados somente por uma parede, algumas alucinações coletivas e sérias fragilidades emocionais de ambas as partes.

O modelo que prevalece de mulher ainda é Amélia, fiel, conformada, amorosa, afeita ao espaço doméstico. De fato, Vitória é uma vitória para os ultrapassados anseios masculinos de controle.

Mas Amanda (hum... nome sugestivo), a mulher imaginária, é a solidificação de todas as fantasias juvenis de Pedro. Além do corpo escultural, Amanda gosta de trabalhos do lar, assistes aos “clássicos da terceirona”, tem um passado que inclui lesbianismos e, claro, sabe ser amorosa e cativante. Seu único defeito é unicamente não existir, ou talvez não, pois se vivesse uma mulher com tais configurações, provavelmente estaríamos falando de um autômato.

Entre Amanda, a que ama incondicionalmente, e Vitória, o verdadeiro troféu masculino, temos outras duas figuras paradigmáticas: Pedro “the nice” e seu amigo Carlos, um cafajeste vindo dos ano oitenta, com aquele bigodinho supostamente charmoso, mas que lembra a face de um glutão interessado em comer almôndegas de frango no bar da esquina.

Os devaneios de Pedro quase pertencem ao reino das esquizofrenias, assim A mulher invisível ficaria entre Eu, eu mesmo e Irene e Uma mente brilhante, ressalvando, no entanto, que não há nenhuma genialidade matemática em Pedro, um humilde controlador de trânsito.

Mas o filme diverte e, o mais importante, tem fôlego, sempre colocando novos desafios para o protagonista. No entanto, as conclusões apresentadas não resolvem satisfatoriamente os problemas decorrentes dos dilemas morais vivenciados pelos personagens. Pedro precisa de terapia, Vitória é uma bisbilhoteira e Carlos é o elo mais fraco da história, uma muleta para facilitar o prosseguimento da narrativa. O “encontro” final entre Pedro, Amanda, Vitória e Carlos possui a consistência de uma apresentação teatral improvisada, um anticlímax, ninguém parece empenhado em dar credibilidade ao ato. Não tem problema, entre tantos devaneios não há por que se cobrar a verossimilhança.

E aqui, o blog acaba.

Cotação: Regular

10 constatações cinematógráficas.


Os negros americanos acham Conduzindo Miss Dayse ultrajante, Morgan Freeman surge como alguém muito auto-condescendente.

Michael Bay nunca deveria ter existido, se houvesse um código de ética no cinema ele estaria longe dos portões de Hollywood. Bem, se existisse um código de ética para o cinema acho que não teríamos Hollywood.

As comédias românticas foram criadas para satisfazer as fraquezas emocionais de adolescentes gordas de 17 anos. As razões pelas quais tal produto caiu no gosto geral ainda não são inteiramente conhecidas.

O cinema americano é capaz de tudo: explosões, combates sangrentos ou anêmicos, canibalismos, insinuações sexuais das jovens lolitas, violência realista ou caricata, pelejas, patriotismo barato, redenção de vingadores, mercantilização dos corpos feminino e masculino. O cinema americano só não é capaz de lidar com a nudez masculina, nem por 10 segundos. Há que se pensar se Hollywood não terá, um dia, que deitar no divã.

A julgar pelo cinema, a América está rodeada de inimigos. Em ordem: alemães, japoneses, russos, chineses, mexicanos e árabes. Certamente, eis o fardo do homem branco (sic).

O cinema de terror/horror está em declínio, as possibilidades de assustar, incomodar e revoltar foram diluídas e adquiriram um novo formato mais palatável aos garotos espinhentos que escutam Red Hot Chili-peppers. Não se esquecer que as loiras peitudas de 18 anos continuam presentes nesse gênero: magrinhas, indefesas e com roupinhas bem insinuantes. Ai, que clichê o imaginário masculino...

A julgar pelo cinema, a América pode contar com poucos aliados. Os únicos confiáveis são os ingleses, uma vez que os franceses não passam de uns “flosôs” (sic).

Jason X nem é tão ruim, a relação fetichista entre o nerd semi-adolescente e sua dróid é bem anos oitenta.

O cinema americano deveria se circunscrever as suas especialidades e parar de biografar os devassos notários. Contos proibidos do Marquês de Sales foi constrangedor, reduziram um pensador iluminista à insanidade. O desaparecimento de Garcia Lorca nos convence do cristianismo e do “bom-moçismo” de um aguerrido dramaturgo anarquista. O Libertino faz desejarmos a monogamia e o sexo com camisinha. Por favor, que não se dediquem às vidas de Nietzsche ou de Marx!

A sala de projeção é mágica, o momento por excelência da realização cinematográfica. Também deve comportar algo de afrodisíaco, pois os casais de namorados frequentemente confundem Cineplex com motel.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Divã


Divã, 2009. Brasil. De José Alvarenga Jr.

Repica Remi, repica!

O cinema brasileiro vai bem, é o que dizem.

Como assim? Bem mal?

Repica Remi, repica!

Salas lotadas e público se identificando com as temáticas brasílicas. Viva! É a retomada do cinema nacional. Por exemplo, em Divã vemos as aventuras e os tropeços de uma respeitável senhora meia idade (sem ofensas), típica classe média. Professora particular, pintora amadora e dedicada esposa. Acompanhamos seus receios (que tédio), suas aflições (saco!) e seus desejos mais íntimos (ih…).

Repica Remi, repica!

Ela e seu marido, ela e seus filhos, ela e seus amantes (nossa, que escândalo), tudo naquela design “moderninho mas comportado”. Enquadramentos medíocres, cortes e diálogos característicos de uma telenovela. Narrativa previsível, encadeamento linear, personagens que amadurecem a partir das escolhas efetuadas e vivências experimentadas.

Repica Remi, repica!

A mulher adormecida em si mesma quer sentir novos prazeres, descobrir outros mundos. Mas e o cinema? Perguntam os desavisados. Onde está a Sétima Arte? A provocação? Quem se importa! Os diálogos são engraçados, carinhas bonitinhas na medida certa. As donas de casa recalcadas terão a oportunidade, nem que em um faz de conta bem vagabundo, de se imaginarem como transgressoras.

O ponto alto do filme: a dedicada Mercedes finalmente encontra um amante a altura. Chego a pensar (que roteiro mal feito!) que é uma de suas fantasias solitárias de 20 minutos. Nada, ela realmente traçou o bonitão do Theo, interpretado pelo Reynaldo Gianecchini, um gentil rapaz que deve visitar os sonhos de muitas quarentonas com alianças na mão esquerda. Consumado o affair, vemos na cena seguinte nossa Dona Ruanita* no salão – feliz como só as mulheres conseguem ser após uma noite de lua de mel – exclamando para seu cabeleireiro:

Repica Remi, repica!

Tão contentinha a ponto de querer um novo corte, mais coerente com sua condição de super-woman.

Repica Remi, repica!

Repica Remi, repica essa película e joga no lixo.

Ah, faz favor, repica.

* Dona Ruanita = Don Ruan

Cotação: péssimo