sexta-feira, 6 de junho de 2025

Heróis do Oriente

Heróis do Oriente. Zhonghua Zhangfu. De Lau Kar-leung, 1978.

Filme interessante e marcante do cinema chinês, lançado em um período em que as artes marciais estavam no auge do prestígio internacional. Heróis do Oriente oferece mais do que apenas pancadaria estilizada: parte de uma premissa curiosa e criativa, na qual os descompassos entre um jovem casal, o marido chinês e a esposa japonesa, são traduzidos em embates físicos, transformando a convivência conjugal em uma disputa sobre qual estilo de luta seria mais formidável: o kung fu chinês ou as artes marciais japonesas.

Inicialmente, a história é particularmente cativante ao usar as batalhas entre o casal como metáfora para os ajustes e atritos naturais dos recém-casados. O entusiasmo da personagem Yumiko, interpretada por Yuka Mizuno, contrasta com a altivez e teimosia de Ho Tao, vivido por Gordon Liu, que se recusa a fazer concessões à esposa ou reconhecer o valor do conhecimento que ela traz de sua cultura. Esses duelos domésticos bem-humorados evidenciam não apenas as tensões históricas entre Japão e China, mas os próprios desafios universais do casamento.

A maneira como eles se digladiam pela casa dá o tom da obra, deixando os serviçais e os parentes apreensivos. O ajudante de Ho Tao, por exemplo, sofre particularmente com isso: suas tentativas de separar as brigas acabam rendendo-lhe uma série de golpes involuntários, tanto de karatê quanto de kung fu. Esses momentos contribuem para o tom cômico do filme, mas também reforçam como os descompassos dos pombinhos.

Derrotada em todas as modalidades de kung fu apresentadas pelo marido, Yumiko foge humilhada para o Japão. Lá, retorna com um admirador e um grupo de mestres japoneses, cada um representante de uma arte marcial distinta – karatê, judô, kendo, entre outras – com o objetivo claro de provar a superioridade técnica e filosófica das tradições marciais nipônicas. A trama então se desloca para um desfile de confrontos altamente coreografados, cuidadosamente diferenciados por estilo, armamento e ritual. Nesse momento o filme perde um pouco do brilho, pois Yumiko praticamente desaparece.

Embora o filme assuma um tom pacifista, promovendo o respeito e o intercâmbio cultural, é inegável que sua narrativa pende para um viés pró-chinês. Ho Tao, mesmo descrito como um lutador apenas razoável, derrota todos os mestres japoneses que chegam para desafiá-lo. A mensagem, por vezes sutil, por vezes cômica, é direta: cuidado, mestres japoneses! Qualquer zé-ninguém nas esquinas de Xangai pode dar-lhes uns sopapos com uma boa dose de kung fu tradicional.

Não fica claro o período em que a trama se passa – talvez já no século XX. O pai de Yumiko usa ternos ocidentais, reforçando sua posição como mediador das duas culturas. Os navios apresentados nas cenas de desembarque são modernos, o que evidencia uma certa liberdade temporal por parte da produção. Não se sabe se faltaram recursos ou se simplesmente não houve preocupação em recriar embarcações da época. De todo modo, a ambientação do filme é abertamente caricata: os cenários são teatralizados, mas eficazes para estabelecer a contraposição visual entre o universo chinês e o japonês.

Essa distinção cultural é reforçada também pela fotografia. O filme aposta em uma paleta de cores saturadas e contrastes simbólicos. As cenas ambientadas na China são mais quentes, densas e urbanas, com cores vibrantes e movimento constante. Já o Japão é retratado com tons mais frios, claros e compostos – transmitindo uma sensação de ordem, silêncio e espiritualidade zen. Essa diferença cromática reforça, visualmente, o contraste entre dois mundos culturais distintos que precisam aprender a coexistir.

Produzido pela lendária Shaw Brothers Studio, Heróis do Oriente carrega muitas das marcas estilísticas que consagraram o estúdio como um dos maiores expoentes do cinema de artes marciais de Hong Kong entre as décadas de 1960 e 1980. Conhecida por seus cenários artificiais, figurinos exuberantes e abordagem teatral, a Shaw Brothers priorizava a clareza coreográfica e o impacto visual sobre o realismo histórico. Em vez de ambientações fiéis ao passado, seus filmes criavam espaços simbólicos onde os combates podiam ser lidos como metáforas culturais ou morais. Essa estética, claramente presente em Zhonghua Zhangfu, contribui para o caráter atemporal da narrativa e reforça o contraste visual e ideológico entre as tradições marciais da China e do Japão.

Logo no início do filme, já se percebe essa oposição: os chineses estranham as vestes brancas da noiva japonesa, que destoam dos trajes pretos do noivo e de seus convidados. A sequência é um microcosmo visual do que o filme desenvolverá ao longo de sua narrativa: uma dança constante entre estranhamento e tentativa de assimilação. Mas Yumiko está em desvantagem, pois o seu horizonte é da capitulação.

A primeira parte do filme é mais rica em termos de desenvolvimento narrativo, com um sabor de comédia conjugal. Já a segunda metade assume um tom quase instrucional, com demonstrações técnicas de combates, dissipando um pouco do frescor da obra. Além disso, os conflitos matrimoniais não chegam a ser plenamente resolvidos: Yumiko previsivelmente faz concessões ao retornar com trajes chineses, mas essa mudança é mais simbólica do que uma efetiva reconciliação.

Trata-se, portanto, de uma comédia divertida, engenhosa em sua premissa, mas narrativamente limitada. E, claro, não tem vergonha de aplicar um simbólico 7 a 0 para os chineses – com direito a reverência final dos derrotados. Para fãs do gênero, é uma pequena joia com sabor nacionalista e bom humor coreografado.

Cotação: ☕☕☕☕

domingo, 4 de maio de 2025

Um homem diferente

Um Homem Diferente. A Different Man. De Aaron Schimberg. 2024.

Na literatura, o duplo é um tipo de personagem que é idêntico a nós, mantendo, no entanto, uma única diferença que nos ameaça ou nos expõe. Em Um homem diferente temos essa questão levada até a última consequência: quem somos e a partir dos olhos de quem somos?

Acompanhamos Edward, um homem com neurofibromatose que tem a possibilidade de passar por um tratamento experimental a fim de eliminar as suas deformidades faciais. No entanto, o novo rosto não ameniza ou atenua seu senso de deformidade. Ele continua se vendo como um disforme, tentando não atrair a atenção do mundo para si mesmo. Tal situação se intensifica ao conhecer Oswald, outro doente de neurofibromatose, mas com uma postura completamente diferente.

O filme trabalha com várias temáticas das narrativas urbanas, tais como o anonimato e o doppelgänger, isto é, a existência de uma cópia de si existente em algum lugar na cidade. Em um dado momento, o real e a cópia se encontram (nem sempre sabemos qual é qual) e os impactos são existenciais. Aliás, a própria tessitura da cidade coloca-se como um problema da filosofia da existência, uma vez que ela se constitui em um labirinto de situações e sensações. Gradis, elevadores, restaurantes e bares fazem parte de um cosmos em que as pessoas se deslocam, por isso a sensação constante de aprisionamento.

Do metrô ao apartamento, situações da vida social se conectam ao self individual. A identidade e a individualidade surgem como frutos das negociações entre os nossos olhares e os dos outros. No limite, a monstruosidade de Edward não é externa; as pessoas podem até tratá-lo com um certo desdém ou ou nojo inicial, mas ele também cultiva um processo de autoisolamento. Seu próprio nome remete aos personagens shakespearianos (dos Ricardos aos Edwards) e à icônica figura de Tim Burton, o Edward Mãos-de-tesoura.

No fim das contas, face e rosto são dimensões distintas. Se o primeiro é superficial, o segundo se conecta com as dobras mais profundas da consciência. E o rosto, como expressão da verdade incontida, é tanto acusatório quanto auto acusatório.

Por isso o grande desespero do personagem principal é seu apego à vitimização. Nesse sentido, a narrativa brinca com didatismo e metáforas para tematizar a solidão da experiência moderna.

Cotação: ☕☕☕☕☕

domingo, 27 de abril de 2025

Sociedade dos Talentos Mortos

✈ Crítica a jato.

Sociedade dos Talentos Mortos. Dead Talents Society. De John Hsu, 2024.

Apesar de querer ser inusitado e crítico, criando um paralelo entre os vivos e os mortos, o filme carrega uma melancolia característica da cultura contemporânea. Os fantasmas, reduzidos à condição espectral, são forçados a adiar a extinção em definitivo. Nesse sentido, estão presos à demanda por entreter a plateia, amaldiçoando vivos e mortos com performances grotescas.

O filme se torna mais sério do que gostaria de ser, mas parece não se dar conta disso. Tais entidades disputam, em um plano midiático, quais seriam os mais assustadores; parecem não ter nenhuma motivação a não ser a fama infame. Há uma lembrança, inclusive, da descartabilidade das celebridades contemporâneas.

[A necessidade de assustar constantemente os vivos é uma assombro para as próprias assombrações]

Embora as interconexões entre vivos e mortos não sejam bem explicadas, o filme brinca com a noção de um crossover entre influencers e fantasmas famosos, mas tudo escoando no ralo da superficialidade vigente. Carecendo de uma dose menor de melodrama, o filme entretém, mas entrega pouco, considerando suas quase duas horas de duração. O desfecho talvez seja o mais frágil, considerando a ausência de redenção. Isso, inclusive, me lembrou o clima de naturalidade mórbida da série de anime Zombie Land Saga.

[A característica solidão dos mortos vivos]

A narrativa ecoa um desinteresse, ou pelo menos um descuido, com os personagens. Assim, sem ser cômico ou assustador, Sociedade dos Talentos Mortos é retrato de um narcisismo cadavérico típico dos tempos vigentes. No entanto, não entrega nada além de clichês, fazendo da fugacidade não só o objeto como o próprio método.

Cotação: ☕☕☕