sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Nosferatu (2024)

Nosferatu. De Robert Eggers, 2024.

Das três versões de Nosferatu, a releitura que chegou ao Brasil em janeiro de 2025 é a melhor delas. Sob a direção de Robert Eggers, combina com maestria elementos dos filmes de mesmo nome dos anos de 1922 e de 1979, bem como alguns detalhes do Drácula de Bram Stoker (1992). De forma primorosa, inspira-se nos antecessores, fecha pontas soltas deixadas por eles e traz novos elementos que o transformam em uma excelente opção para ser vista.

Tal como o enredo pioneiro de 1922, Eggers manteve os personagens adaptados por Friedrich Wilhelm Murnau em virtude dos impedimentos criados pela viúva de Bram Stoker, conforme já explicado em crítica anterior. Thomas Hutter, em lugar de Jonathan Harker, é um corretor de imóveis que recebe a missão de viajar para a remota e sombria Transilvânia. O objetivo era negociar a venda de uma casa em Wisborg para o misterioso conde Orlok, em lugar de conde Drácula, cuja nova residência ficaria bem em frente à casa onde vive com a esposa, Ellen, em lugar de Mina. Ao chegar ao castelo, Hutter percebe que há algo profundamente perturbador no conde. Mais aterrorizante ainda é a constatação de que o conde se mostra fascinado por Ellen e a ameaça da presença dele se estende a Wisborg, onde Hutter vive com a esposa em meio a uma união recentemente celebrada.

Knock, em lugar de Renfield, chefe de Hutter, não é um perfil assustadoramente estranho como na filmagem de 1922 nem uma mistura tragicômica de um homem claramente desnorteado como na obra de 1979. É aparentemente um homem polido, mas que no domínio privado entrega-se a rituais de magia. No decorrer da história, a instabilidade mental de Knock ganha força, incluindo os ataques em busca por sangue humano ou animal.

O castelo do conde apresenta um ambiente rústico, mostrando-se ameaçador por meio da exploração dos jogos de luz e sombra. Já o conde Orlok é menos caricato que nas outras versões: é uma sombra potente, de voz intensa, bem como grande poder psicológico, cuja aparência é desvelada aos poucos para o espectador. Quando muito é possível perceber que se trata de um homem alto, com aparência decomposta pelos séculos de existência, mas de farto bigode, poucos cabelos e a presença de uma corcunda. Não tem uma aparência agradável de ser vista, mas possui uma forte presença, capaz de impactar o espectador. Permanecem os dedos anormalmente longos, terminados em garras, comuns nas outras produções.

Há um intenso jogo de luz e sombra, recurso usado na primeira versão e aprimorado na produção de 2024. Além de explorar, portanto, a sensação de ameaça constante, muito presente no filme de 1922, torna a atmosfera densa e o conde assustador, porém impactante, sem precisar recorrer a recursos que o assemelhem a um monstrengo. Orlok denota um ser enigmático, mas na reta final, permite que entendamos em alguma medida a conexão dele com Ellen por meio de explicações sobrenaturais, ao mencionar, por exemplo, outras supostas encarnações em que conviveram. Esse detalhe também é reforçado pelo professor excêntrico que é convidado a trabalhar no caso de Ellen, que a define como alguém que poderia ter sido uma grande sacerdotisa, dadas as conexões mediúnicas que ela demonstra. No diálogo final entre Ellen e Orlok, a conversa deixa transparecer aquilo que a doutrina kardecista compreende como compatibilidade espiritual (ou fluídica) entre ambos, despertada por Ellen quando criança sem que tivesse noção da capacidade mediúnica que portava e o alcance da mesma. Tais informações não foram exploradas nas obras fílmicas anteriores.

Diferente das produções de 1922 e de 1979, quando o vampiro usa os dentes frontais para sugar o sangue das vítimas ou aqueles que posteriormente o fazem por meio dos dentes caninos, Nosferatu (2024) explora a absorção do sangue, mas não necessariamente focando no uso da arcada dentária. Como um vampiro contemporâneo, circula apenas de madrugada, diferindo do filme de 1922. De outro lado, rompendo com as releituras pós- Murnau, não concede espaço para a simbologia do morcego em associação com a presença do vampiro. Retoma, todavia, a presença dos ratos e a menção à peste que trouxeram, tal como os antecessores. Não explica, porém, a conexão dos ratos com a vitalidade do vampiro como na produção de da década de 1920.

Distinto dos antecessores, a película não só vai além das relações entre Ellen, Hutter e Orlok, abarcando os impactos da peste na população da cidade, como aprofunda outros aspectos. Detalha, por exemplo, a morte de pessoas próximas à protagonista, traz à tona diálogos sobre transformações psiquiátricas no período e explora o embate entre o conceito de ciência em fins do século XIX frente às manifestações sobrenaturais. Esses três temas são abordados como em nenhuma outra versão até agora.

Em nítido contraste com o antagonista, Hutter encarna o arquétipo de bom moço. Não é ingênuo como o de 1922, não é frágil como o de 1979 e nem totalmente incrédulo como ambos. É um homem correto, em alguma medida ambicioso, oscila entre o medo e o cumprimento do dever, a coragem e angústia do que está por vir, alguma fé e o eco das superstições, o susto e o enfrentamento da realidade. Distinto dos demais filmes, consegue fugir de forma mais ousada e é curado parcialmente em um convento de freiras católicas ortodoxas, não em um hospital. Repete a postura de interromper a própria recuperação para retornar aos braços da amada em busca de salvá-la de um mal maior. Embora perceba a possibilidade de ter sido atacado por conde Orlok enquanto foi hóspede do castelo, não se rende à condição de vampiro como na película de 1979 nem a trata de forma cômica como na de 1922. Usa essa aparente conexão como meio para localizar o antagonista em meio à caçada necessária para combatê-lo.

Assim como os filmes de 1979 e de 1922, traz a presença dos povos ciganos do leste europeu no caminho para o castelo do conde Orlok, os quais atuam como uma fonte de alertas sobre a natureza vampiresca daquele. Hutter não compreende, mas não desacredita, impelido pelo que aparenta ser a força do dever a ser cumprido. Fica dividido entre pesadelos e o medo da realidade. Reflete a confiança no mundo racional, motivado pelos avanços trazidos pelo século XIX, mas não deixa de lado a perturbação frente à inevitável presença do que não controla nem explica. Para tanto, no decorrer do enredo, abre espaço para a presença de um médico que transita entre o científico e o místico, questão essa trazida pelo filme de 1979 e aprofundada no de 2024, abrindo espaço para a única solução que para a tragédia que se avizinha: uma caçada literal ao vampiro.

Ellen, amor comum de Hutter e Orlok, distingue-se ao não apresentar nítidas perturbações como as protagonistas anteriores, mas sim um histórico que supostamente mistura melancolia e crises de sonambulismo, aspecto esse mencionado desde o início da película. No transcorrer da trama a protagonista traz características de uma suposta possessão combinada com aparente êxtase, os quais desafiam os conhecimentos psiquiátricos do período. Em comum com a mocinha das películas de 1922 e de 1979, Ellen tem olhos grandes e olheiras profundas, mas também aparenta uma firmeza de caráter que nenhuma das antecessoras demonstrou. De igual modo, aparece rodeada de um gato, rememorando a crença que remonta ao Antigo Egito de que tais felinos permanecem onde estão presentes os maus espíritos.

Semelhante à sequência de 1979, Ellen alterna entre fragilidade e enfrentamento, sobretudo na segunda metade do filme, quando passa a se comportar de forma mais assertiva com diferentes personagens que a rodeiam. Oferece, uma vez mais, a vida a Orlok visando à salvação de Hutter e estancar a disseminação da peste. O conde, como nas outras versões, sacia-se do sangue da jovem no decorrer de horas a fio, quando é surpreendido pelo cantar do galo, não percebendo o nascer do sol. Padece, assim, sob a claridade que o atinge. Tal cena tem um forte componente de sensualidade, maior do que a versão de 1979, assim como outros momentos do filme denotam uma proximidade entre algoz e vítima que vai além da conexão espiritual, mas também são marcados por forte tensão sexual.

Camila Similhana



sábado, 25 de janeiro de 2025

Nosferatu (1979)

Nosferatu - O Vampiro da Noite. Nosferatu: Phantom der Nacht. De Werner Herzog, 1979.

Lançado em 1979, Nosferatu, O vampiro da noite, dirigido por Werner Herzog, mantém o roteiro de Nosferatu, lançado em 1922, mas em meio a uma nova fase da história do cinema.  Entre 1962 e 1982, a indústria cinematográfica alemã vivenciou o florescimento do Novo Cinema Alemão, movimento impulsionado por uma nova geração de cineastas fortemente influenciados pela Nouvelle Vague francesa (baixos orçamentos, produções independentes, roteiros menos estruturados, estética experimental, montagens ousadas, foco em temas e personagens contemporâneos). Werner Herzog reinterpretou o roteiro para algo mais fiel à obra de Bram Stoker (1897). Personagens conhecidos do público, como Mina, Jonathan Harker, Renfield e o próprio Conde Drácula, foram incorporados, ao que, ao final, preservava o título Nosferatu: o Vampiro da Noite como uma lembrança da ideia original de remake e várias outras características que aqui serão analisadas.

Jonathan Harker, um corretor de imóveis, recebe a missão de viajar para a remota e sombria Transilvânia. O objetivo era negociar a venda de uma casa em Wisborg para o misterioso Conde Drácula, cuja nova residência ficaria bem em frente à casa onde vivia com a esposa, Mina. Ao chegar ao castelo do conde, Harker percebe que há algo profundamente perturbador naquela figura. A confirmação dos temores surge ao descobrir que Drácula é, na verdade, um vampiro. Mais aterrorizante ainda é a constatação de que o conde se mostra fascinado por Mina e a ameaça da presença dele se estende a Wisborg, onde vive o casal.

Renfield, chefe de Harker, não é um perfil assustadoramente estranho como na obra de 1922, mas uma mistura tragicômica de um homem claramente desnorteado.  Já o Conde Drácula continua esguio, possui nariz e orelhas pontiagudas, olhos fundos marcados por olheiras intensas e dedos anormalmente longos, terminados em garras. A diferença é que no filme de Herzog ele está mais para excêntrico do que para propriamente monstruoso. Apresenta ainda uma densidade psicológica maior que a primeira versão.

O farto jogo de luz e sombra, que contribui para a sensação de ameaça constante, muito presente no filme de 1922, está ´em menor proporção e aparece de forma descontínua no longa de 1979. O castelo do conde nessa versão parece até mais claro e menos ameaçador do que na versão anterior. Nosferatu continua, contudo, com dentes associados à sucção do sangue das vítimas na parte frontal da arcada e não na posição dos caninos, como se tornou comum posteriormente na imagem do vampiro.  Na película de Herzog, Nosferatu não tem cenas circulando de dia, diferindo da obra anterior, quando o personagem circula em alguns momentos sem temor da luz solar.

O roteiro de Herzog traz a imagem do morcego em associação à presença de Nosferatu, mas também mantém os ratos, sem explicar a conexão desses últimos com a vitalidade do vampiro como na obra de 1922. No que confere à peste trazida por Nosferatu, a obra de 1970 vai além das relações entre Mina, Harker e Drácula. Aborda os impactos da peste na população da cidade, incluindo a morte de pessoas próximas à protagonista. Chega a abarcar até um confronto de Mina no ambiente público, buscando um alerta sem sucesso em relação à conexão entre conde Drácula e a epidemia. Nesse momento, Herzog amplifica um aspecto que ficou em segundo plano na versão anterior: o embate entre ciência e superstição, ainda que de forma rápida e superficial.

Em nítido contraste com o antagonista, Harker encarna o arquétipo do herói clássico. Na película de 1979, o herói é menos ingênuo e mais desconfiado do que o de 1922. Mantém a incredulidade do antecessor, mas também é mais frágil diante de tudo o que ocorre. Embora interrompa a hospitalização de igual modo visando ao salvamento de Mina, ao retornar demonstra profunda instabilidade psíquica e ao fim do filme rende-se à condição de vampiro, algo que não ocorre em nenhuma das releituras, mesmo com os ataques noturnos de Nosferatu durante a hospedagem no castelo do conde.

A versão de 1922, assim como as demais, traz a presença dos povos ciganos no caminho para o castelo do conde Drácula, que atuam como uma fonte de alertas sobre as agruras que estão por vir. Harker, porém, ignora os avisos e também um livro sobre vampiros a ele dado, subestimando o perigo iminente. Trata-se de um reflexo da confiança no mundo racional, mas que no filme de Herzog destaca com maior ênfase o embate entre a ciência e o ocultismo.

Mina, amor comum de Harker e Drácula, apresenta claras perturbações que eram consideradas desafiadoras para os conhecimentos psiquiátricos do período, mas nessa versão explorada de forma melancólica pela intérprete. Em comum com a mocinha de 1922, a de 1979 tem olhos grandes e olheiras profundas, mas de forma bem menos expressiva.  Também aparece rodeada de um gato, rememorando a crença que remonta ao Antigo Egito de que tais felinos permanecem onde estão presentes os maus espíritos. De outro lado, alterna entre fragilidade e enfrentamento, sobretudo nos momentos finais do filme, quando passa a se comportar de forma mais assertiva se comparada à película anterior. Oferece, uma vez mais, a vida a Drácula visando à salvação de Harker e de toda a cidade atingida pela peste. A diferença é que entra em cena Abraham van Helsing, que ao constatar a problemática do sobrenatural naquele contexto, empenha-se em matar o vampiro usando estaca de madeira.

O fascínio pela figura do vampiro nas décadas de 1960 e 1970 pode ser compreendido como resultado de uma combinação de fatores culturais, históricos e sociais que dialogavam com os significados então associados a esses seres míticos. Naquele período, mudanças sociais intensas estavam em voga — como as lutas pelos direitos civis, o avanço do feminismo e as revoluções sexuais —, colocando em xeque normas tradicionais e abrindo espaço para questionamentos de campos como a sexualidade. O vampiro, de natureza ambígua e transgressora, emergia como um reflexo dessas transformações. A revolução sexual, em pleno apogeu, potencializou o forte apelo erótico dos vampiros, que passaram a desafiar tabus e a personificar o desejo de maneira mais crua e subversiva, elevando-o a um ícone de rebeldia naquele cenário.


Por fim, o interesse pelo vampiro também foi alimentado pelo fascínio crescente por mitos e arquétipos universais, que nesse caso encarnava os medos e desejos mais profundos da condição humana, simbolizando conflitos duais, tal como o contexto da Guerra Fria, como por exemplo: vida e morte, luz e escuridão, desejo e controle. Tal contexto, também permeado pelo medo da destruição nuclear, tornou o vampiro um símbolo carregado de angústia existencial. A imortalidade solitária emanada por ele ecoava as inquietações humanas sobre a efemeridade da vida. Toda essa flexibilidade simbólica convertia-o em uma válvula de escape para as inquietações sociais e um meio de explorar questões existenciais complexas, garantindo-lhe um papel central no imaginário cultural das décadas de 1960 e 1970.

Camila Similhana



segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Nosferatu (1922)

Nosferatu, Uma simfonia do Horor. Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens. De F. W. Murnau, 1922.

Lançado em 1922, Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror não é apenas um marco do Expressionismo Alemão, mas um sobrevivente improvável das tempestades do tempo. Com atmosfera densa e perturbadora, a obra quase não viu a luz do dia, tragada por disputas judiciais e a sombra de um possível esquecimento. O produtor e designer Albin Grau, que atuou como soldado durante a Primeira Guerra Mundial, foi profundamente marcado pelo tempo que passou na Sérvia, onde ouviu histórias sobre vampiros e outras criaturas sobrenaturais. Fascinado por tais lendas, retornou à Alemanha, fundou a Prana Film, uma produtora voltada ao ocultismo e ao sobrenatural. Pensou, assim, em adaptar o livro Drácula (1897), de Bram Stoker. Para tanto, contratou o roteirista Henrik Galeen (mencionado como Green em algumas fontes) e o renomado diretor F.W. Murnau. Sem a permissão da viúva do autor, Florence Stoker, a solução encontrada foi criar uma versão alternativa, trocando o conhecido Conde Drácula pelo enigmático Conde Orlok. Jonathan Harker foi rebatizado por Thomas Hutter, Mina Harker tornou-se Ellen Hutter e Abraham Van Helsing virou Professor Bulwer.

O enredo manteve a essência do romance original: Thomas Hutter, um corretor de imóveis, recebeu a missão de viajar para a remota e sombria Transilvânia. O objetivo era negociar a venda de uma casa em Wisborg para o misterioso Conde Orlok, cuja nova residência ficaria bem em frente à casa onde vive com sua esposa, Ellen. Ao chegar ao castelo, Hutter percebe que há algo de profundamente perturbador no conde. A confirmação dos temores surge ao descobrir que Orlok é, na verdade, um vampiro. Mais aterrorizante ainda é a constatação de que o conde se mostra fascinado por Ellen e a ameaça da presença dele se estende a Wisborg, onde vivem Hutter e Ellen.

A estreia foi grandiosa, mas o eco do sucesso logo alcançou Londres, onde Florence, implacável, moveu uma ação judicial por plágio. O veredito foi devastador: destruição das cópias e o fim da Prana Film. Contudo, algumas cópias resistiram ao esquecimento. Após a morte de Florence, o filme ressurgiu nos Estados Unidos. Assim, Nosferatu renasceu, consolidando-se como uma referência no cinema de horror.

A presença do vampiro Nosferatu representa uma ameaça indefinível e onipresente corroborada pelo contraste estético — luz e sombra em conflito constante —, reforçando sensações de medo e suspense que permeiam as cenas. Essa combinação é a essência do Expressionismo Alemão, um movimento artístico nascido no contexto do pós-Primeira Guerra Mundial, em que a arte, e em especial o cinema, se tornou um meio poderoso de dar voz às angústias, traumas e ansiedades de uma geração em recuperação de um enorme trauma coletivo. Assim, Nosferatu não é apenas um filme de terror, mas um reflexo das sombras que pairavam sobre a Europa daquele período.

Os expressionistas alemães não buscavam a reprodução fiel da realidade, mas sim a distorção, projetando nas telas um mundo inquietante e subjetivo, onde as formas se contorcem e ganham vida. O objetivo não era apenas narrar uma história, mas mergulhar o espectador em uma experiência emocional intensa, extraindo o medo tanto pela estética quanto pelo conteúdo. No caso de Nosferatu, o horror nasce de um visual construído com base em cenários angulosos e iluminação contrastante responsáveis por criar um ambiente macabro, alinhado à essência vampiresca da trama. Essa escolha estética amplia a tensão, já que transforma a imagem em veículo de angústia e pavor.

Do ponto de vista estético, a caracterização dos antagonistas em Nosferatu é uma verdadeira materialização do conceito expressionista de distorção e exagero. Knock, chefe de Hutter, apresenta uma figura estranha: parcialmente careca, com os poucos fios de cabelo arrepiados, corcunda, sobrancelhas densas e dentes salientes, compondo uma aparência claramente desconcertante que sugere insanidade.


Já o Conde Orlok é esguio, possui nariz e orelhas pontiagudas, olhos fundos marcados por olheiras intensas e dedos anormalmente longos, terminados em garras. Lembram associações europeias entre monstros do imaginário coletivo e características de povos semitas que assolavam o coletivo desde tempos imemoriais, mas que ganharam força nas primeiras décadas do século XX. Tratam-se de elementos pontiagudos comumente associados ao perigo e à maldade.


Cada detalhe, amplificado pela maquiagem pesada e pelo jogo de luz e sombra, contribui para a sensação de ameaça constante. Em Nosferatu, a escuridão não apenas esconde, mas revela o horror; as sombras alongadas e os contornos irregulares reforçam a ideia de que o mal não precisa ser visto por completo para ser temido — basta ser pressentido. Interessante perceber que diferente da estética que se difundiu posteriormente, os dentes associados à sucção do sangue das vítimas estão na parte frontal da arcada e não na posição dos caninos. Outro detalhe são as cenas em que o vampiro circula claramente de dia, sem temor algum da luz solar, diferente dos estereótipos que acompanharão as versões de vampiros que apareceriam depois.

Ao contrário do simbolismo contemporâneo, no filme não estão presentes morcegos como extensões dos vampiros, mas ratos, que a própria película explica serem elementos vitais, assim como a terra supostamente de origem medieval e atrelada ao período da peste bubônica, para a manutenção dos poderes sobrenaturais de Orlok. No que confere à peste trazida por Nosferatu, a obra de 1922 não explora muito a questão, concentrando-se nas relações entre Ellen, Hutter e Orlok. O que acontece na cidade e mesmo na residência que acolhe Ellen enquanto o marido viaja, fica em segundo plano, mesmo com a emergência da peste, ao contrário das releituras seguintes.

Em nítido contraste com o antagonista grotesco, Hutter encarna o arquétipo do herói clássico. Não escapa, contudo, de um certo grau de ingenuidade e até mesmo estupidez, mesmo diante dos perigos mais óbvios, escrevendo, por exemplo, cartas que beiram a idiotia ou em meio à fuga mais pueril das três adaptações (1922, 1979 e 2024) do roteiro. Nesta versão é executada por meio de poucos e frágeis lençóis alocados uns sobre os outros de modo a escapar de uma das torres do castelo do conde Orlok. A versão de 1922, assim como as demais, traz a presença dos povos ciganos no caminho para o castelo do conde Orlok, que atuam como uma fonte de alertas sobre as agruras que estão por vir. Hutter, porém, ignora os avisos e também de um livro sobre vampiros a ele dado na hospedaria, subestimando o perigo iminente. Trata-se de um reflexo da confiança no mundo racional, mas também da ingenuidade relatada.


Essa transição, da incredulidade para o horror, remete a uma metáfora da cegueira humana frente aos perigos que se aproximam de maneira invisível e insidiosa, tal como o contexto histórico que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. Reverbera, ainda ao trauma coletivo pós-confronto. A destruição causada pela guerra, é simbolizada pela figura do vampiro, que se alimenta da vida e da esperança, uma metáfora perfeita para o vazio e a incerteza que os alemães enfrentaram após a derrota. O confronto entre superstição e ciência, outro elemento de transição presente em outras adaptações do roteiro, é tímido, diferente das versões de 1979 e de 2024, em que esse diálogo é aprofundado. Do mesmo modo está a suposta caçada final ao vampiro, que ganha mais espaço nos filmes posteriores.

Ellen, amor comum de Hutter e Orlok, apresenta claras perturbações desafiadoras para os conhecimentos psiquiátricos do período, explorada de forma muita viva pelas expressões faciais da protagonista. Olhos grandes e expressivos, bem como olheiras profundas que expressam as complicações de uma proximidade cada vez maior com o sobrenatural. Dos três filmes que fazem releituras de Nosferatu (incluindo aí as películas de 1979 e de 2024), é a única que convive claramente com o vampiro na vizinhança e constante assédio da parte dele. Assim como as outras, oferece a vida a Orlok em sacrifício, visando à salvação de Hutter. Em todas as versões, a protagonista aparece rodeada de um gato, o que rememora a crença de que tais felinos permanecem onde estão presentes os maus espíritos. Essa ideia remonta ao Antigo Egito, mais precisamente à deusa Bastet, uma deidade que passou a contar com a cabeça de um felino a partir do segundo milênio antes de Cristo, comumente associada a qualidades acolhedoras, maternais e, sobretudo, de proteção.


Observa-se, assim, junto ao roteiro de Nosferatu, uma deliciosa mistura entre a inspiração motivada pela obra original e a ousadia criativa, o que resultou em um clássico atemporal, que, mesmo nascido sob uma briga judicial e as incertezas do esquecimento, definiu as bases do cinema de horror.

Camila Similhana






REFERÊNCIAS

ASSUMPÇÃO, Mariana. Nosferatu: Por que o filme original foi proibido? Disponível em https://www.ingresso.com/noticias/nosferatu-historia-filme-classico-proibido . Acesso em Janeiro de 2025.

RODRIGUES, Diogo. Nosferatu (1922) – Expressionismo alemão. Disponível em https://www.nossocinema.com.br/nosferatu-1922-expressionismo-alemao/ . Acesso em Janeiro de 2025.