domingo, 10 de novembro de 2024

Trap/Armadilha

Armadilha (Trap), 2024. De M. Night Shyamalan

Os vários plots twists fazem desse filme um exercício de paciência. Apreciá-lo é colocar de lado o bom senso. E para que possamos acompanhar as tentativas de captura de um perigoso e astuto sociopata teremos que fazer vistas grossas a uma série de fragilidades de um roteiro irregular.

Armadilha foca nas peripécias de Cooper Adams em esconder a sua identidade de serial killer (o Açougueiro) durante um show no qual ele assiste com sua filha. O filme é bem sucedido na criação de um vilão apto a integrar outros universos ficcionais maniqueístas de Shyamalan. Com duas vidas em paralelo, Cooper é tanto um bom pai quanto um assassino impecável. Ele foi ao show de Lady Raven para agradar a filha adolescente, mas percebe uma movimentação atípica de policiais. Sem maiores embaraços descobre, como objetivo de tudo isso, a sua própria prisão. Embora os investigadores não saibam a real identidade de Açougueiro desconfiam que ele estará no local a partir de indícios obtidos anteriormente.

Há uma construção adequada do espaço no qual desenvolve-se a trama. O estádio é o lugar da emboscada, mas o filme não se atém a tal cenário e recorre a outros ambientes como o interior de uma limusine e a própria casa do assassino. Entretanto, quando a cenas se afastam do estádio, há uma perda de impacto dramático.

A vontade de surpreender a audiência de forma constante cria inconveniências, precisando de premissas cada vez mais inesperadas e, infelizmente, absurdas. Tomar Cooper como uma pessoa inteligentíssima é aceitável, mas as autoridades em seu entorno padecem de uma falta de nteligência. Funcionários e até policiais dão dicas fundamentais para que Adams elabore suas rotas de fuga. Todo o destacamento policial é liderado por uma velhinha caquética (ai ai cultura woke) especializada no Açougueiro, mas com dificuldades de pegá-lo quando ele passa por debaixo do nariz dela.

Outras heroínas improváveis são a cantora Lady Raven (a propósito, filha do Shyamalan) e a esposa de Cooper. Raven ganha uma projeção desnecessária ao longo da narrativa e é utilizada como um enxerto. Sua participação é um “minifilme” dentro do arco principal. Só o amor paterno justificaria tamanho pedestal à canastrice...

Contando com uma estilização detalhista e uma direção madura Shyamalan faz um bom bolo a partir de ingredientes ruins. As reviravoltas na trama entregam seu “DNA” fílmico. No fim das contas tudo só se torna palatável se tomarmos o “Açougueiro” não como um típico psicopata do cinema, mas sim como o próprio mágico Houdini.

Porque fazendo o que ele faz, só com capa de invisibilidade. Senhoras e senhores eis o Mister Night Shyamalan 2024.

Assistido em 10/11/2024.

Cotação: ☕☕

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Dressed to kill/Vestida para matar

Vestida para matar (Dressed to kill), 1980. De Brian de Palma

Com uma apropriação muito pessoal de Psicose, Brian de Palma brinca em ser Hitchcock. A história do assassinato de uma mulher de alta classe permite a reelaboração do suspense em suas linhas clássicas, porém com os recursos narrativos do cinema erótico e da produção televisiva.

Vestida para matar segue, de fato, as trilhas de Psicose. Há, inicialmente, a desconstrução do protagonismo: quem pensamos ser a personagem principal morre no primeiro arco. Além disso, o psiquiatra (interpretado por Michael Caine) carrega em si uma dualidade similar ao do personagem Norman Bates, o contraponto mais evidente é entre o médico e o monstro. O assassinato de Kate Miller (paciente do médico) resulta de uma pulsão sexual não resolvida sugerindo a morbidez do voyerismo, isto é, no trabalho de escuta da paciente, o médico depara-se com um desejo inconciliável com suas questões profundas.

[A cidade é uma fonte de sedução, mas a morte ronda].

A personagem Liz Blake precisa provar a inocência: estar no lugar errado na hora errada é, também, um tema hitchcockiano. Acusada de assassinato, Liz procura pistas e para isso necessita da boa vontade do psiquiatra. Ao longo da trama nos deparamos mais de uma vez com o tema do duplo, pois o Dr. Robert Elliott é tanto o médico quanto o transsexual inconformado com seu lado masculino dominante. Essa duplicidade empalidece diante do eremitério de Norman Bates, mas retrabalha adequadamente a noção de uma personalidade dividida em duas. A tensão entre culpa e desejo gera violência.

Brian de Palma revela-se bem sucedido ao arrastar o tema da transexualidade para o ambiente urbano, conferindo à cidade os atributos de acaso e de risco iminente. Na multidão anônima, qualquer pessoa pode ser perigosa, mas a concretização dessa experiência e a constatação de sua inevitabilidade acrescentam uma camada de reflexão adicional que não havia em Psicose.

Cotação: ☕☕

sábado, 5 de outubro de 2024

A Haunting We Will Go

📺 História da animação

A Haunting We Will Go, 1939. De Burt Gillet. 7 minutos

A primeira vez que assisti essa animação foi em um DVD com vários episódios do Walter Lantz. Fiquei surpreso com os estereótipos raciais e escrevi minha primeira resenha sobre o assunto. Tentei buscar maiores informações, mas não consegui. Em meados dos anos 2000 não havia tanta informação, livros sobre a história dos desenhos animados eram pouco acessível.

Recentemente revi essa animação reiterando as minhas impressões sobre a historieta de um garoto negro sulista careca chamado de Lil’ Eightball. Ele alega não ter medo de fantasmas e acaba arrastado para um velho moinho, no qual uma horda de assombrações perseguem-no até quebrar sua resistência e deixá-lo amedrontado.

[O garoto negro x os lençois brancos. Tudo inofensivo. Confia.]

Eightball tem uma aparência peculiar, veste um tipo de camisola sem nada por baixo, ele é um sulista pobre vivendo em uma casa rural. Tem jeito de sabichão e gosta de bancar o esperto. Expressão do imaginário coletivo, o personagem evoca a visão negativa sobre os afro-americanos, sua primeira aparição na animação é com um fade-in, no qual ele sai da escuridão abrindo seus olhos. A cor da sua pele mescla-se, em um primeiro momento, à escuridão do ambiente.

Mas há, também, a denúncia quanto à perseguição e ao barbarismo impetrado contra os que na época eram chamados de “pessoas de cor”. Uma de suas frases – que pode variar a depender da tradução – é: “Não tenho medo de lençóis velhos”. Tal sentença constitui uma alusão (inconsciente) ao movimento Klu Klux Klan, pois os fantasmas agem como uma turba motivada em aterrorizar e expulsar o garoto do velho moinho. Os integrantes do movimento extremista vestem-se com roupas e capuzes brancos, nesse sentido a associação com fantasmas decorre com naturalidade. A própria paisagem da animação remete ao cenário das cidades racistas sulistas.

Na The encyclopedia of animated cartoons (LENBURG, 1999, p.89) encontramos a seguinte referência sobre personagem:

Lil’ Eightball

Former Disney protégé Burt Gillett was responsible for creating this stereotyped black youngster who, after a brifef opportunity at movie stardom, resurfaced in Walter Lantz comic books of the 1940s. Directed by Burg Gillet. Black-and-white. Voice credits unknown. A Waler Lantz Production released through Universal Pictures.

1939: “Stubborn Mule (July 3); and “Silly Superstition” (Aug. 28).

Curiosamente, o fragmento acima suprime a menção ao episódio colorizado A Haunting We Will Go (Sep. 4, 1939). De qualquer forma, não obstante os aspectos controversos do personagem a animação tem interesse diegético devido as suas ambivalências. Detém uma paleta de cores em tons esmaecidos e uma construção narrativa com aspectos surrealistas. A ontologia da imagem construída em tal animação comporta um incômodo e uma possibilidade de maravilhamento. Por fim, o tom infantil não elimina de todo o aspecto de terror da narrativa.

Cotação: ☕☕

Referências

LENBURG, Jeff. The encyclopedia of animated cartoons. 2. Ed. New York: Facts on File, 1999.