terça-feira, 2 de março de 2010

O Lobisomem



O Lobisomem (The Wolfman), 2010. Reino Unido/ EUA. De Joe Johnston

Lawrence Talbot é ator de teatro, especialista em interpretações shaekesperianas, faz parte de uma companhia de Nova York. Durante sua turnê pela Inglaterra recebe a notícia de que seu irmão se perdeu no bosque, ele retorna ao vilarejo onde nasceu na tentativa de ajudar nas buscas. Lawrence reencontra seu pai, um homem frio e misterioso, que comunica o falecimento do irmão, encontrado em estranhas condições, parcialmente devorado por uma fera.

Durante a noite, Talbot vai ao acampamento cigano, em busca de maiores informações, mas acaba sendo ferido pela criatura. Apesar da gravidade do ataque, recupera-se rapidamente, seu corpo sofre, no entanto, transformações, e durante a noite de lua cheia, a maldição da licantropia emerge.

Ao amanhecer, o pobre amaldiçoado é capturado por um investigador da Scotland Yard, sob a alegação de demência e múltiplos assassinatos. Lawrence Talbot é encaminhado para um sanatório, o mesmo local em que ele esteve quando criança a pedido do pai. Todos o tomam como louco, exposto ao escrutínio e escárnio público, os psiquiatras querem que Talbot veja a lua cheia para compreender o desvio da realidade que ele operou.

Inicia-se o discurso de um médico sádico sobre os significados da normalidade, uma visão oitocentista da ciência que nega o lugar do místico, uma versão bem simplificada (quase comicamente) daquilo que o censo comum chamaria de psicanálise freudiana. No entanto, a lua aponta no céu e o monstro insurge, dilacerando os arrogantes de casaca e fugindo para as ruas londrinas. Inicia-se uma perseguição, o investigador tenta acompanhar o movimento do animal e nessa trajetória ele encontra com um subordinado, ao que pergunta: “Por um acaso você não teria uma bala de prata aí?”.

Frase essencial para a compreensão do filme, de forma irônica e auto-referenciada o personagem admite a impossibilidade do fato (repetindo o que os médicos haviam dito na cena anterior), mas dessa vez vem junto uma confissão, quase um carimbo: “Este é um filme de horror”. A espontaneidade operada por esse mecanismo repete-se em outro momento, quando a heroína ao descobrir o terrível desígnio do amado, propõe-se a interceder por ele, “Se isto é possível, tudo é possível, magia é possível, Deus é possível”. Não há muito espaços para o ceticismo, não obstante a proposta pseudo-cientificista sugerida de forma rasteira.

Assim, há certa seriedade nessa película, apesar das vulgaridades estéticas e dos chavões típicos de filmes de lobisomem. A taberna de cervejeiros supersticiosos e a turba de homens enfurecidos empunhando tochas na escuridão estão, previsivelmente, presentes. Além disso, a fotografia escurecida, o ar pós-vitoriano de decadência e uma essência de ultra-romantismo démodé se constituem nos principais elementos para a construção cênica.

A representação do campo (área rural) tende para o sobrenatural, com ciganos, simulacros de Stonehenge e cenários enevoados. A cidade também mostra seu lado ameaçador, com a impessoalidade das ruas, a frialdade da iluminação a gás e a igualmente esperada fog londrina, sem se esquecer dos planos gerais nos quais vemos as chaminés das locomotivas e das indústrias expelindo uma fumaça escurecida.

A cena da perseguição na cidade sugere a noção de uma selva urbana – sendo, inclusive, um dos momentos mais consistentes do filme – que acaba por nos remeter a dois clássicos do cinema de horror, King Kong e (o dúbio, mas igualmente influente) Lobisomem Americano em Londres.

Porém, o que há de interessante em The Wolfman reside em seus subtextos, em primeiro lugar na proposta, fracassada frisa-se bem, de conferir um ar psicanalítico ao personagem. Ao voltar a sua antiga morada, seus traumas de infância retornam e ele se depara com as memórias trancadas no porão de sua mente pela terapia de choque sofrida no sanatório.

Ressalta-se também o ar hamletiano conferido, a sina autofágica inscrita na família Talbot. Há uma tragédia que só pode em compreendia em sua inteireza após a última batalha entre as criaturas noctívagas, com soluções extremadas, onde o amor não oferece espaço para a salvação. A mágoa e o rancor são, portanto, os principais efeitos da maldição da licantropia.

O incêndio da mansão dos Talbot tem uma previsibilidade irritante, típica solução para uma novela neogótica que parece parodiar (e só uso esta palavra por elegância, já que há outra mais apropriada) o conto “A casa de Usher” de Edgar Allan Poe. Todo modo, esta cena, como muitas outros possui uma textura visual eficaz. O filme como um todo é quase palpável e não há muitas intenções de amenizar os embates, sejam nos ataques das feras ou nos relacionamentos pessoais.

Fecha-se com o questionamento sobre a relação homem-fera. Onde começa um, onde termina outro? Pouco importa, pois permanece a impossibilidade da redenção.

Cotação: Regular.

01 de março de 2010

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Um Olhar do Paraíso


Um Olhar do Paraíso (The Lovely Bones), 2009. Nova Zelândia/ Reino Unido/ EUA. De Peter Jackson

O que aconteceria se Hitchcock dirigisse Ghost?

Não importa se são zumbis, elfos ou gorilas gigantes. Ou você é ou você não é.

Peter Jackson é. Simplesmente genial.

Repito meu bordão inicial, Um Olhar no Paraíso parece ser Ghost produzido do ponto de vista de Alfred Hitchock, o grande mestre do suspense. Um trabalho que apresenta uma perspectiva intimista ao recriar o universo de uma garota de 14 anos assassinada por um serial killer.

As minhas reservas iniciais quanto ao argumento – a representação de um psicopata pedófilo que se esconde no subúrbio me parece a perfeita paranóia fascista – rapidamente se esfacelaram frente à solidez do roteiro e à fluidez da narrativa.

Susie Salmon é uma adolescente bonita, inteligente e promissora, mas teve sua vida precocemente interrompida, sem se conformar com seu destino, ela acaba presa entre o mundo dos vivos e algo que poderíamos chamar de “além”. O desenvolvimento da história ganha seriedade ao acompanhar as implicações que o desaparecimento de Susie teve na vida de sua família e mesmo no cotidiano do seu assassino, uma pessoa fria e perturbada, que passa a cultivar um interesse pela irmã mais nova da vítima.

O brilhantismo da película transparece na maneira quase meticulosa do diretor em retratar as confusões da adolescente na busca por um sentido para sua breve vida. Já o pai da jovem torna-se um obcecado por vingança, buscando encontrar o assassino e fazer justiça pelas próprias mãos. Mas ao contrário do que se poderia esperar, a tessitura de Um Olhar no Paraíso é marcada pelo imprevisto, com pouco lugar para obviedades. Assim, a promessa de vingança não se completa e o sentimento de redenção (e não retaliação) estrutura todo o arco dramático. Mesmo as pendências de Susie no mundo dos vivos não possuem relação com a ânsia por uma punição, mas sim com a necessidade de um amadurecimento emocional.

Susan Sarandon também se mostra a altura do projeto, ao recriar a avó da jovem Salomon, uma mulher extremamente forte (sem com isso deixar de ser alcoólatra) que auxilia na reconstrução da família, esperadamente despedaçada e traumatizada.

As cenas que envolvem o assassino estão imersas em um tempo hitchcockiano, quando acompanhamos suas estratégias para esconder seus atos; pequenos movimentos que ocultam as provas e garantem sua impunidade. Quase implorando para ser descoberto, ele provocativamente assume o risco (fonte de prazer para todo bom psicopata do cinema de matriz hollywoodiana) em se expor e em se insinuar para a família de Susie e às autoridades.

Ainda que o “espectro” da garota assassinada odeie o executor, não há interação direta entre os dois. Nos momentos derradeiros, Susie opta somente em expressar um gesto de carinho para alguém que ela amava, desinteressando-se em denunciar seu malfeitor.

Leitura poética que entende vida/morte dentro de uma compreensão mais densa, com a noção de que “um dia todos terão que partir”, valorização do luto e do tempo como dissolventes de mágoas. O amadurecimento traz o completo descarte da vingança como norteador da vida, não obstante o "final de vilão de novela das oito" reservado ao assassino (a gordurinha desnecessária do projeto...).

Uma obra que encanta pela mensagem humanista, pela positivação dos laços afetivos e, sobretudo, pela recusa ao moralismo de tonalidades nazis tão afeito em justificar os linchamentos exemplares.

Independentemente do perecimento físico representar o término de uma etapa, a vida segue resoluta, cicatrizando feridas, tampando buracos. Lição de que o ciclo nascer/morrer sempre há de prevalecer, apesar das injustiças que atravessam nossas breves existências.

Cotação: Ótimo.

19 de fevereiro de 2010

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Zumbilândia


Zumbilândia (Zombieland), 2009. EUA. De Ruben Fleischer

Minha regra é: Não confie nas gentis donzelas.

Os zumbis estão na moda. Se há um significado mais profundo nessa constatação que aos leitores fique a tarefa de encontrá-lo.

Digo apenas que me divirto muito com essa nova onda de filmes, repetição nem tão descarada dos mesmos jargões das demais produções hollywoodianas. O individualismo, a busca da realização romântica como objetivo supremo e a o “amadurecimento interno dos personagens” permanecem como fios da narrativa.

O mundo foi ceifado pela praga dos mortos vivos, poucos são os sobreviventes, isolados e fadados a perambularem em um mundo no qual as tarefas mais simples e corriqueiras passam a demandar tantos cuidados (ir ao banheiro público e não ser atacado se tornou uma nova regra para sobrevivência). Trata-se de uma terra de ninguém, onde as pessoas podem expressar seus lados mais obscuros e sombrios.

Ou não, pois o bom mocismo parece prevalecer, mesmo que de forma irreverente. Columbus continua sendo o mesmo patético e assustado nerd que, apesar de ter uma habilidade incomum para prever perigos e coordenar o caos (através de suas regras), não consegue resistir aos encantos da vigarista Wichita, que adora armar ciladas para o sexo não frágil, sem se importar muito com as conseqüências dos seus atos. Tudo isso em nome da autopreservação e da sua querida irmãzinha, Litle Rock.

Já Tallahassee repete o arquétipo do cara durão que desconhece o medo, mas que bem no fundo tem uma alma sensível. Apesar de corajoso e destemido, seu quase parceiro (Columbus) o arrastará para situações inusitadas, exigindo desse Crocodilo Dundee do século XXI a máxima excelência em extermínio dos zumbis.

A direção é hábil, conseguindo criar boas piadas ao explorar novos aspectos do gênero, ironias com alguns dos jargões mais característicos, não passando jamais dos limites do “irreverente mas comportadinho”. O roteiro aponta os clichês dos filmes de zumbis e até certo ponto se recusa a segui-los. No entanto, a velha cartilha da comédia romântica está presente dando um forte tom a composição. Em um mundo no qual os mortos andam, o nosso herói (Regra n. 17: Não seja um herói) parece mais interessado em se despir da sua virgindade do que respeitar as sábias regras do seu manual de sobrevivência.

O capítulo final, no qual os protagonistas enfrentam os mortos vivos em um parque de diversões, revela-se eficaz do ponto de vista dos filmes de zumbis. Trata-se da exteriorização de uma evidência: os mortos vivos deixaram de ser um gênero de horror acessível aos iniciados para cair no gosto do público geral. Nada mais apropriado do que esse cenário para o conflito derradeiro. A cantilena básica da fragilidade feminina, no entanto, é “revisitada”, mocinhas espertas, mas que precisam de cavaleiros e suas espadas para serem salvas.

O ciclo se fecha com a promessa de uma unidade familiar, mesmo que atípica. Porém, o clímax (apesar de satisfatório) não consegue rivalizar com um dos atos anteriores, quando um famoso ator hoolywoodiano é visto no bairro das celebridades, gerando umas das seqüências mais divertidas da projeção.

Desejo sutil de iconoclastia X saudosismo pelas décadas passadas. Está aí a nova fórmula desses sucessos sazonais. Zumbilândia não é perene, mas convence (confiram, por exemplo, Adventureland).

Tiros, pancadaria em cima dos mortos vivos, montanha russa, twinkies, frases de efeito e a eterna busca pelo rabo de saia. Nada faz muito sentido, e nem precisa.

Talvez Hollywood queira nos dizer que no mundo do entretenimento já aceitamos nossa condição de zumbis, passivos e não pensantes, sempre dispostos a sair do cinema com um sorriso bobo nos lábios.

Cotação: Bom.

29 de janeiro de 2010