quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Dressed to kill/Vestida para matar

Vestida para matar (Dressed to kill), 1980. De Brian de Palma

Com uma apropriação muito pessoal de Psicose, Brian de Palma brinca em ser Hitchcock. A história do assassinato de uma mulher de alta classe permite a reelaboração do suspense em suas linhas clássicas, porém com os recursos narrativos do cinema erótico e da produção televisiva.

Vestida para matar segue, de fato, as trilhas de Psicose. Há, inicialmente, a desconstrução do protagonismo: quem pensamos ser a personagem principal morre no primeiro arco. Além disso, o psiquiatra (interpretado por Michael Caine) carrega em si uma dualidade similar ao do personagem Norman Bates, o contraponto mais evidente é entre o médico e o monstro. O assassinato de Kate Miller (paciente do médico) resulta de uma pulsão sexual não resolvida sugerindo a morbidez do voyerismo, isto é, no trabalho de escuta da paciente, o médico depara-se com um desejo inconciliável com suas questões profundas.

[A cidade é uma fonte de sedução, mas a morte ronda].

A personagem Liz Blake precisa provar a inocência: estar no lugar errado na hora errada é, também, um tema hitchcockiano. Acusada de assassinato, Liz procura pistas e para isso necessita da boa vontade do psiquiatra. Ao longo da trama nos deparamos mais de uma vez com o tema do duplo, pois o Dr. Robert Elliott é tanto o médico quanto o transsexual inconformado com seu lado masculino dominante. Essa duplicidade empalidece diante do eremitério de Norman Bates, mas retrabalha adequadamente a noção de uma personalidade dividida em duas. A tensão entre culpa e desejo gera violência.

Brian de Palma revela-se bem sucedido ao arrastar o tema da transexualidade para o ambiente urbano, conferindo à cidade os atributos de acaso e de risco iminente. Na multidão anônima, qualquer pessoa pode ser perigosa, mas a concretização dessa experiência e a constatação de sua inevitabilidade acrescentam uma camada de reflexão adicional que não havia em Psicose.

Cotação: ☕☕

sábado, 5 de outubro de 2024

A Haunting We Will Go

📺 História da animação

A Haunting We Will Go, 1939. De Burt Gillet. 7 minutos

A primeira vez que assisti essa animação foi em um DVD com vários episódios do Walter Lantz. Fiquei surpreso com os estereótipos raciais e escrevi minha primeira resenha sobre o assunto. Tentei buscar maiores informações, mas não consegui. Em meados dos anos 2000 não havia tanta informação, livros sobre a história dos desenhos animados eram pouco acessível.

Recentemente revi essa animação reiterando as minhas impressões sobre a historieta de um garoto negro sulista careca chamado de Lil’ Eightball. Ele alega não ter medo de fantasmas e acaba arrastado para um velho moinho, no qual uma horda de assombrações perseguem-no até quebrar sua resistência e deixá-lo amedrontado.

[O garoto negro x os lençois brancos. Tudo inofensivo. Confia.]

Eightball tem uma aparência peculiar, veste um tipo de camisola sem nada por baixo, ele é um sulista pobre vivendo em uma casa rural. Tem jeito de sabichão e gosta de bancar o esperto. Expressão do imaginário coletivo, o personagem evoca a visão negativa sobre os afro-americanos, sua primeira aparição na animação é com um fade-in, no qual ele sai da escuridão abrindo seus olhos. A cor da sua pele mescla-se, em um primeiro momento, à escuridão do ambiente.

Mas há, também, a denúncia quanto à perseguição e ao barbarismo impetrado contra os que na época eram chamados de “pessoas de cor”. Uma de suas frases – que pode variar a depender da tradução – é: “Não tenho medo de lençóis velhos”. Tal sentença constitui uma alusão (inconsciente) ao movimento Klu Klux Klan, pois os fantasmas agem como uma turba motivada em aterrorizar e expulsar o garoto do velho moinho. Os integrantes do movimento extremista vestem-se com roupas e capuzes brancos, nesse sentido a associação com fantasmas decorre com naturalidade. A própria paisagem da animação remete ao cenário das cidades racistas sulistas.

Na The encyclopedia of animated cartoons (LENBURG, 1999, p.89) encontramos a seguinte referência sobre personagem:

Lil’ Eightball

Former Disney protégé Burt Gillett was responsible for creating this stereotyped black youngster who, after a brifef opportunity at movie stardom, resurfaced in Walter Lantz comic books of the 1940s. Directed by Burg Gillet. Black-and-white. Voice credits unknown. A Waler Lantz Production released through Universal Pictures.

1939: “Stubborn Mule (July 3); and “Silly Superstition” (Aug. 28).

Curiosamente, o fragmento acima suprime a menção ao episódio colorizado A Haunting We Will Go (Sep. 4, 1939). De qualquer forma, não obstante os aspectos controversos do personagem a animação tem interesse diegético devido as suas ambivalências. Detém uma paleta de cores em tons esmaecidos e uma construção narrativa com aspectos surrealistas. A ontologia da imagem construída em tal animação comporta um incômodo e uma possibilidade de maravilhamento. Por fim, o tom infantil não elimina de todo o aspecto de terror da narrativa.

Cotação: ☕☕

Referências

LENBURG, Jeff. The encyclopedia of animated cartoons. 2. Ed. New York: Facts on File, 1999.