terça-feira, 2 de setembro de 2008

Carnival of Souls



Carnival of souls, 1962. EUA. Harcourt Productions. De Herk Harvey

Série: filmes insólitos – n.1

Quando Parque Macabro (1998) chegou às locadoras, lembro de ter espreitado o vhs várias vezes para ler a sinopse no seu verso. Ao final, acabei por não assistir essa produção de Wes Craven intitulada Carnival of souls. Tratava-se, na verdade, do remake de um filme de 1962, dirigido por Herk Harvey e que nunca foi lançado no Brasil.

A década de noventa foi propícia para esse gênero, com exemplares de diferentes qualidades, tais como Pânico, Sexto Sentido, Bruxa de Blair e Eu sei o que vocês fizeram no verão passado – os sustos e a tensão propiciadas pelos macetosos roteiros garantiram sucesso entre os adolescente (eu, inclusive). Justamente em 1998 era lançado o fliperama CarnEvil, ligeiramente inspirado em Carnival of Souls (original e remake), com um visual interessante, onde o jogador deveria enfrentar palhaços assassinos alojados em um circo montado em um cemitério.

Muito “Filme B” pro meu gosto, embora Carnival of Souls (1962) possa até ser considerado um trabalho mediano. A história começa sem maiores preâmbulos, vemos um automóvel com três garotas despencando de uma ponte e submergindo em um rio lamacento. Os esforços para encontrar o veículo ou seus ocupantes são em vão, mas Mary Henry (Candace Hilligoss) aparece cambaleante nas margens do rio. Aparente sobrevivente do sinistro, ela parte para uma nova cidade, conseguindo o trabalho de organista em uma igreja.

Após o acidente, Mary Henry passa a ser acometida por uma sensação de estranhamento com o mundo. Naturalmente introspectiva, suas tendências anti-sociais se acentuam e a moça começa a ter visões de um homem com feições cadavéricas vindo em sua direção. Apesar dos seus esforços em levar uma vida normal, o mórbido gradualmente se apossa do seu cotidiano. Por vezes perdendo o contato por inteiro com as pessoas ao seu redor, ao ouvir uma melodia que quase a põe em transe. Recusando as superstições e mesmo a religião, Mary Henry busca solucionar seu desconforto por meio do intelecto, mas o pavor se revela mais forte e o medo da solidão faz até que ela suporte os assédios do repugnante Mr. Linder.


[Imagem acima: Mary Henry escapa da morte, mas não da influência do mundo dos mortos]

Há uma ruína nas proximidades da cidade que chama sua atenção, um parque de diversões abandonado. Seus delírios sempre a conduzem para aquele local, onde ela visualiza almas executando uma valsa ou então emergindo das profundezas de um lago. A dificuldade de se manter sintonizada com o mundo dos vivos é o elemento de maior interesse do filme, a narrativa tende a expor a subjetividade da personagem, escancarando seu crescente isolamento. No ato final, Mary desiste de solucionar seu problema no mundo dos viventes e parte em direção ao parque, completamente desiludida quanto à possibilidade de ser reintegrada à normalidade.

Trata-se de um filme menor, com todas as características de uma produção independente. A despretensão é sua maior qualidade, revelando uma direção e fotografia satisfatória as suas necessidades. A personagem, no entanto, tem um desenvolvimento rasteiro, dificultando uma melhor compreensão de seus anseios, pensamentos e decisões – prevalece, no entanto, uma sensação de absurdo e divórcio com a normalidade. Mary Hernry, por exemplo, se mostra indiferente ao acidente que matou duas de suas amigas. Seu descuido e crueldade para com as pessoas (e aqui talvez eu esteja extrapolando) me lembra a personagem principal de Lady Vingança, isso em função de sua frieza com relação a todos ao seu redor.

A idéia de um carnaval das almas é obviamente a referência ao baile de mortos entrevisto pela personagem. Trata-se de uma metáfora nada original sobre as dificuldades de driblar o inevitável, isto é, a extinção. Enquanto o cavaleiro em retorno das cruzadas ganha mais tempo de vida jogando xadrez com a morte, Mary Henry busca na luz diurna e nos fugazes relacionamentos sociais e afetivos um meio de não ser tragada pela extinção. Grande é a dificuldade para declinar um convite para a dança da morte.














[Imagens acima: Cartaz do filme (1962) e exibição do título do jogo da Midway (1998), uma diluída inspiração]

Ao que parece, o remake de 1998 introduziu o conceito de palhaços, provavelmente perdendo as sutilezas da versão original. Digo por palpite, já que não assisti a “contribuição” de Wes Craven. Resumidamente, o que pode ser ressaltado de Carnival of souls é sua atmosfera angustiante, em uma visualidade que quase se integra ao onírico. O resultado final é um terror comedido, cuja premissa e desfecho seriam copiados a exaustão nas décadas seguintes.

Cotação: regular

domingo, 31 de agosto de 2008

Andarilho


Andarilho, 2008. Brasil. Cinco em Ponto. De Cao Guimarães

O cinema e a literatura estão repletos de alusões e representações sobre os errantes. Quando pensamos na cultura norte-americana fica ainda mais fácil evidenciarmos a mística em torno desses eternos viajantes. Mark Twain, Henry Miller, Jack Kerouac e Jon Krakauer são alguns dos escritores que já abordaram o assunto. O fascino pela vida na estrada também rendeu excelentes filmes, especialmente na década de 1960, com os chamados road-movies.

Esses personagens, que decidem abandonar o conforto da vida sedentária e os valores e conformismos da “sociedade”, recebem uma caracterização romântica e heróica. São aventureiros, hippies, drogados ou desempregados, mas cientes da decadência da cidade e convencidos de que a verdadeira felicidade e paz interior só podem ser alcançadas em uma vivência do provisório.

O filme de Cao Guimarães traz uma outra identidade para esses marginalizados, em seu cru documentário o que sobressai é a solidão, provocada nem tanto pelo nomadismo, mas por uma condição de loucura. Parece que a imagem de um caminhante aventureiro e crítico não tem respaldo no imaginário coletivo brasileiro, a sugestão do louco andarilho parece mais convincente, expressões de uma cultura tão permeada pelo autoritarismo quanto a nossa. O pobre só é bem visto pelas autoridades quando indo ou regressando do trabalho, seus momentos de ócio devem ser cuidadosamente vigiados. As forças policiais estão sempre dispostas a te abordar e questionar de onde você vem e para onde vai. Restringe-se a pouca tolerância para com os andarilhos, tal opção de vida somente se justifica por se tratar de um demente, alguém que não responde pelos seus atos, merecedor de uma rápida condescendência ou esmola.

São três os andarilhos registrados no filme, e desses dois podem ser considerados pelo senso comum como loucos. O falar sozinho e o estranho gesticular comprovam suas poucas habilidades para o convívio rotineiro, portanto se vêem obrigados a procurar na estrada uma morada; difícil esta sobrevivência, marcada pela fugacidade, precariedade e sentimentos de alheamento. Por não negarem de todo o contato com outros homens eles não podem ser considerados eremitas, caminham pelas margens das rodovias, mas sem a procura por um refúgio definitivo.

O discurso estabelecido por Cao Guimarães é ambíguo, limitando-se a exibir fragmentos da vida desses caminhantes, não há o interesse pela análise ou pelo reconhecimento das identidades passadas e presentes desses homens. Nesse sentido, indiretamente, o que o diretor faz é corroborar com a imagem de pobres loucos trafegantes no norte de Minas Gerais. Vale inclusive questionar qual o direito tem o cineasta em filmar essas pessoas – em invadir seus universos particulares com uma câmera, indecorosa mas não inquiridora. Em fim, qual o compromisso do observador com o objeto observado? Às vezes parecer se limitar a um exercício de esteticização, criando planos belos e inteligentes, alegorias das subjetividades dos andarilhos. Vemos, por exemplo, a trajetória das luzes dos faróis dos automóveis se perdendo na escuridão da noite, quem as observa é um homem velho, cansado e deitado no chão de um bar perdido em lugar nenhum.

A cena final impressiona pela composição apresentada, as noções de tempo e espaço desafiam o expectador. Cenário quase infinito, capaz de engolir carros e homens, um ambiente extraterreno, inóspito e incivil. Conclui-se, portanto, que as estradas – locais de passagem – seriam abrigos somente para os anormais? Aqui está o perigo que circunda o Andarilho. Fica o risco de concluir que o lugar do louco é no hospício (ou então qualquer outro eufemismo em voga) para receber o cuidado e a vigilância necessários. Alguns se convencerão de que a vida sedentária estaria isenta de problemas e patologias, assim a via e a rua só têm como serventias a função de ligar um ponto a outro (dá casa ao shopping, por exemplo). Qualquer ato contra-hegemônico, qualquer indisposição contra as convenções da “sociedade” devem ser relevadas já que são puerilidades e excentricidades de homens que não dominam sua razão por inteiro.

O homem racional sabe de onde vem e para onde vai, traz consigo as carteiras de identidade e trabalho. Tem patrão, tem cartão de crédito, tem celular. As únicas coisas que lhe faltam são as liberdades de decidir e vislumbrar seu cativeiro cotidiano. Mas, como consolo, aos olhos dos demais, ele não é um louco que erra sem rumo ou prumo. Nesse contexto, Andarilho nos convida a pensar as relações e os limites entre a loucura e o bom senso.

Cotação: Bom

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Zohan - Um Agente Bom de Corte


Zohan - Um Agente Bom de Corte (You Don't Mess with the Zohan), 2008. EUA. Happy Madison Productions / Relativity Media. De Dennis Dugan

Hollywood sempre me surpreende, mas a surpresa dessa vez é positiva

Já no início a performance de Adam Sandler dá o tom do filme, o puro deboche situado na fronteira entre as paródias de James Bond e o humor negro. Integrante do exército israelense, o agente contra-terrorista Zohan Dvir é um sujeito durão, viril, que adora dar uns sopapos nos opositores de Israel, isto é, qualquer um que tenha aparência árabe.

Pavor dos seus inimigos, herói nacional, objeto de desejo das mulheres. Sim, este é Zohan, com seu cabelo encaracolado e suas roupas dos anos noventa – que agora, de acordo com a “Lei de Laver” é o novo ridículo da vez –, o braço duro do Estado contra as facções e os guerrilheiros.

No entanto, o engodo já se antecipa, por trás dessa versão translocada de 007 encontra-se um homem comum, cujo sonho é ser cabeleireiro. Impedido de exercer seu direito de escolha em uma sociedade que demanda guerreiros (pois todos devem servir ao exército) o personagem simula sua morte e parte para terra da liberdade (precisa dizer onde fica?), lá ele se prepara para começar outra vida, com um novo corte de cabelo tãooooooo anos noventa...

Chama-se agora Scrappy Coco, um imigrante em busca de uma oportunidade... ele segue o sonho americano... o sonho de ter um emprego subalterno. No entanto, sua antiga vida de agente secreto não está superada. Na terra do Tio Sam há vários palestinos que, mesmo vivendo em harmonia com a comunidade israelense local, devem ser vigiados, afinal, o quesito um para ser terrorista é não ser judeu. Além da busca pela profissionalização como cabeleireiro, Zohan deve se preparar para as invectivas de seu arqui-rival Phanton (John Turturro).

Está exposto o quadro, dentro desses argumentos se desenvolverão situações hilárias, caracterizadas pelo desempenho escrachado de Sandler. É o humor do insano, objetivando a ridicularização de tudo e todos. Os “extremistas” dos dois lados são os alvos preferenciais da chacota, os estereótipos vêm à tona e em seguida são ressignificados. Os sotaques, frases e trejeitos dos palestinos e israelenses, ao final das contas, assemelham-se e, para os americanos “típicos”, ambos podem ser ameaças. Em dado momento um personagem revela que a barba do outro constituía em atestado inequívoco de terrorismo: “se eu te visse sentado no avião eu desembarcaria”. Aquele a quem foi direcionado essa declaração escuta, reflete e em seguida concorda com seu conteúdo.

É engraçado porque verdadeiro, diria a velha escola de humoristas de palco.

Eis o grande mérito do filme, trata-se de um trabalho de humor, ignorem a previsível lição de moral, pedagógica e inócua, sobre a tolerância e o diálogo. Em certo sentido teríamos um filme quase político, caso entendamos a zombaria como um esboço de posicionamento crítico. Quando uma discussão sobre a contribuição de Bush para a geopolítica é insinuada, o assunto degringola para uma série de referências sexuais, como, por exemplo, as cochas (pernas) de Hillary Clinton. Explicita-se algo que muitas vezes é esquecido, a comédia não precisa assumir a condição de propaganda, basta ser engraçada.

As próprias cenas de ação soam irreais porque assim o querem, a masculinidade inconteste de Zohan se contrapõe à nova profissão por ele escolhida e tão estigmatizada como afazer afeminado. Os recursos à violência são quase redundantes, pois as questões se resolvem por sua sexualidade, antes de ser uma gente secreto Zohan Dvir é um “bond cama”. Aí está! Paródia das paródias de James Bond.

Não tenhamos ilusões, You Don't Mess with the Zohan é piada, e não discurso sobre a igualdade humana, mas ainda sim destoa do neo-conservadorismo reinante. Em épocas de trevas densas a luz de uma lamparina é quase um farol.

Cotação: Bom